Natal
Mas todos acreditam
que nasceu.
É um menino e é Deus.
Na Páscoa vai morrer, já homem,
Porque entretanto cresceu
E recebeu
A missão singular
De carregar a cruz da nossa redenção.
Agora, nos cueiros da imaginação,
Sorri apenas
A quem vem,
Enquanto a Mãe,
Também
Imaginada,
Com ele ao colo,
Se enternece
E enternece
Os corações,
Cúmplice do milagre, que acontece
Todos os anos e em todas as nações.
Miguel Torga, in " Diário XIV", Coimbra, 25 de Dezembro de 1983
O poeta e o músico tecem a ternura e a beleza de Maria, a mãe de Jesus. Cúmplice de um milagre que se repete em Dezembro de cada ano, a humildade serena de Maria fez dela a sempre Bem-Aventurada.
A voz da alma | Quia respexit humilitatem | Magnificat BWV 243 , de Johann Sebastian Bach. Soprano a solo: Mojca Bitenc Križaj. Direcção musical: Maestro: Sebastian Vrhonik. Orquestra e Coro: Orquestra Barroca da Caríntia Concertino: Thomas Fheodoroff Coro da sociedade musical Glasbena Matica. Director de coro: Tanja Rupnik. Pianista : Alina Kolomiets.
Quia respexit humilitatem ancillae suae.
Ecce enim ex hoc beatam me dicent omnes generationes.
(Porque Ele olhou para a humildade da sua serva.
Pois desde agora todas as gerações me chamarão bem‑aventurada.)
Bach, Magnificat
"No coração do monumental Magnificat BWV 243, de Bach, existe um instante de uma intimidade tão profunda que o próprio tempo parece deter-se. "Quia respexit humilitatem" este é o único andamento do Magnificat em que Bach escreveu explicitamente o tempo: Adagio. Isso já revela a intenção: uma pausa sagrada, um recolhimento no meio da grandiosidade da obra. É um instante em que o esplendor barroco se suspende para dar lugar a algo vulnerável, humano e interior — o mundo íntimo de Maria. O que torna este andamento extraordinário é o que Bach ousa retirar. O primeiro andamento explode com a orquestra barroca completa e trompetes resplandecentes. Mas aqui, ele despoja tudo até à sua essência: uma única voz de soprano, um oboé d'amore solitário e o baixo contínuo. Neste belo vazio, somos convidados a entrar no mundo interior de Maria – um espaço de assombro, humildade e reverência silenciosa.
O musicólogo alemão Philipp Spitta escreveu em 1873 que "raramente a ideia de pureza virginal, simplicidade e humilde felicidade encontrou uma expressão mais perfeita do que nesta imagem alemã da Madona, traduzida para a linguagem musical". A mudança para a tonalidade menor, a voz melancólica do oboé d'amore, as linhas melódicas descendentes – cada elemento conspira para pintar a própria humildade em som.
A humildade é um gesto descendente, e Bach compõe-na com uma literalidade comovente. As linhas melódicas traçam longas curvas em forma de S que descem como alguém que inclina a cabeça em reverência, aceitação e graça. O único instrumento de sopro confere ao andamento uma ternura quase submissa, encarnando perfeitamente as palavras de Maria sobre ser olhada na sua pequenez.
A soprano e o oboé d'amore não se limitam a acompanhar-se – respiram juntos naquilo a que o maestro Michael Steinberg chama um "dueto contemplativo". Então, algo muda. Com as palavras "ecce enim ex hoc beatam" – de agora em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada – a linha vocal transforma-se. Maria já não reflecte apenas; ela proclama uma verdade que ecoará pela eternidade.
E então chega o golpe de génio mais arrebatador de Bach. O último compasso da soprano é, simultaneamente, o primeiro compasso de "Omnes generationes". Sem cesura, sem pausa, sem fôlego. Num instante, Bach lança-nos das profundezas da humildade íntima para uma celebração coral explosiva. De uma humilde serva para toda a humanidade. Do sussurro ao trovão. Da solidão à eternidade. Sem perder o ritmo.
Aqui, Bach mostra-nos algo essencial: que o poder mais profundo fala muitas vezes com a voz mais suave. Quando tudo o resto desaparece – os trompetes, o coro completo, toda a grandeza – é isto que resta: uma única voz humana, um único instrumento, e um momento de beleza pura e destilada que tem comovido os ouvintes até às lágrimas durante três séculos.
Mojca Bitenc Križaj é uma proeminente soprano europeia e uma célebre solista da Ópera e Ballet Nacional da Eslovénia (SNG). É aclamada em todo o mundo pela sua voz excepcional e pelo seu virtuosismo refinado. Concluiu o seu mestrado com a mais alta distinção, summa cum laude, e recebeu o prestigiado Prémio Estudantil Prešeren pelas suas conquistas. A sua impressionante carreira inclui actuações em festivais de renome, como o Festival de Bregenz, e em importantes palcos por toda a Europa. Colabora regularmente com orquestras de topo, incluindo a Orquestra Sinfónica de Viena, a Filarmónica da Eslovénia e a orquestra da Ópera de Budapeste. Para além da sua carreira musical, Mojca Bitenc Križaj é também licenciada em medicina, uma formação que torna a sua decisão de seguir a paixão do seu coração pela música ainda mais notável. A sua voz possui uma pureza e expressividade raras que comovem profundamente o ouvinte."
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