quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

É um menino e é Deus

Natal

Ninguém o viu nascer
Mas todos acreditam
que nasceu.
É um menino e é Deus.
Na Páscoa vai morrer, já homem,
Porque entretanto cresceu
E recebeu
A missão singular
De carregar a cruz da nossa redenção.
Agora, nos cueiros da imaginação,
Sorri apenas
A quem vem,
Enquanto a Mãe,
Também
Imaginada,
Com ele ao colo,
Se enternece
E enternece
Os corações,
Cúmplice do milagre, que acontece
Todos os anos e em todas as nações.
Miguel Torga, in " Diário XIV", Coimbra, 25 de Dezembro de 1983
 
O poeta e o músico tecem a ternura e a beleza de Maria, a mãe de  Jesus. Cúmplice de um milagre que se repete em Dezembro de cada ano,   a humildade  serena de Maria fez dela a sempre Bem-Aventurada.


A voz da alma | Quia respexit humilitatem | Magnificat BWV 243 
, de Johann Sebastian Bach. Soprano a solo: Mojca Bitenc Križaj. Direcção musical: Maestro: Sebastian Vrhonik. Orquestra e Coro: Orquestra Barroca da Caríntia Concertino: Thomas Fheodoroff Coro da sociedade musical Glasbena Matica. Director de coro: Tanja Rupnik. Pianista : Alina Kolomiets.

 
 Quia respexit humilitatem ancillae suae.
 Ecce enim ex hoc beatam me dicent omnes generationes. 
(Porque Ele olhou para a humildade da sua serva.
 Pois desde agora todas as gerações me chamarão bem‑aventurada.
)
BachMagnificat

"No coração do monumental Magnificat BWV 243, de Bach, existe um instante de uma intimidade tão profunda que o próprio tempo parece deter-se. "Quia respexit humilitatem" este é o único andamento do Magnificat em que Bach escreveu explicitamente o tempo: Adagio. Isso já revela a intenção: uma pausa sagrada, um recolhimento no meio da grandiosidade da obra. É um instante em que o esplendor barroco se suspende para dar lugar a algo vulnerável, humano e interior — o mundo íntimo de Maria. O que torna este andamento extraordinário é o que Bach ousa retirar. O primeiro andamento explode com a orquestra barroca completa e trompetes resplandecentes. Mas aqui, ele despoja tudo até à sua essência: uma única voz de soprano, um oboé d'amore solitário e o baixo contínuo. Neste belo vazio, somos convidados a entrar no mundo interior de Maria – um espaço de assombro, humildade e reverência silenciosa. O musicólogo alemão Philipp Spitta escreveu em 1873 que "raramente a ideia de pureza virginal, simplicidade e humilde felicidade encontrou uma expressão mais perfeita do que nesta imagem alemã da Madona, traduzida para a linguagem musical". A mudança para a tonalidade menor, a voz melancólica do oboé d'amore, as linhas melódicas descendentes – cada elemento conspira para pintar a própria humildade em som. A humildade é um gesto descendente, e Bach compõe-na com uma literalidade comovente. As linhas melódicas traçam longas curvas em forma de S que descem como alguém que inclina a cabeça em reverência, aceitação e graça. O único instrumento de sopro confere ao andamento uma ternura quase submissa, encarnando perfeitamente as palavras de Maria sobre ser olhada na sua pequenez. 
A soprano e o oboé d'amore não se limitam a acompanhar-se – respiram juntos naquilo a que o maestro Michael Steinberg chama um "dueto contemplativo". Então, algo muda. Com as palavras "ecce enim ex hoc beatam" – de agora em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada – a linha vocal transforma-se. Maria já não reflecte apenas; ela proclama uma verdade que ecoará pela eternidade. E então chega o golpe de génio mais arrebatador de Bach. O último compasso da soprano é, simultaneamente, o primeiro compasso de "Omnes generationes". Sem cesura, sem pausa, sem fôlego. Num instante, Bach lança-nos das profundezas da humildade íntima para uma celebração coral explosiva. De uma humilde serva para toda a humanidade. Do sussurro ao trovão. Da solidão à eternidade. Sem perder o ritmo. Aqui, Bach mostra-nos algo essencial: que o poder mais profundo fala muitas vezes com a voz mais suave. Quando tudo o resto desaparece – os trompetes, o coro completo, toda a grandeza – é isto que resta: uma única voz humana, um único instrumento, e um momento de beleza pura e destilada que tem comovido os ouvintes até às lágrimas durante três séculos. 
Mojca Bitenc Križaj é uma proeminente soprano europeia e uma célebre solista da Ópera e Ballet Nacional da Eslovénia (SNG). É aclamada em todo o mundo pela sua voz excepcional e pelo seu virtuosismo refinado. Concluiu o seu mestrado com a mais alta distinção, summa cum laude, e recebeu o prestigiado Prémio Estudantil Prešeren pelas suas conquistas. A sua impressionante carreira inclui actuações em festivais de renome, como o Festival de Bregenz, e em importantes palcos por toda a Europa. Colabora regularmente com orquestras de topo, incluindo a Orquestra Sinfónica de Viena, a Filarmónica da Eslovénia e a orquestra da Ópera de Budapeste. Para além da sua carreira musical, Mojca Bitenc Križaj é também licenciada em medicina, uma formação que torna a sua decisão de seguir a paixão do seu coração pela música ainda mais notável. A sua voz possui uma pureza e expressividade raras que comovem profundamente o ouvinte."

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