Notas de Inverno sobre Impressões de Verão
Capítulo I
À maneira de Prefácio
por Fiódor Dostoievksi
“Há já vários meses que vocês, meus amigos, insistem para
que descreva quanto antes as minhas impressões do estrangeiro, sem suspeitarem
de que com o vosso pedido me colocam simplesmente num beco sem saída. Escrever
o quê? O que hei‑de contar de novo, ainda desconhecido, que não tenha sido
contado? Quem é que entre nós, russos (isto é, aqueles que lêem ao menos as
revistas), não conhece a Europa duas vezes melhor do que a Rússia? Escrevi duas
vezes por cortesia, mas por certo conhecem‑na dez vezes melhor. Para mais, além
destas considerações gerais, vocês sabem que eu não tenho nada de
extraordinário para contar, e ainda menos para registar ordenadamente, porque
eu não vi nada e, se vi alguma coisa, não tive tempo para observar atentamente.
Estive em Berlim, em Dresden, em Wiesbaden, em Baden‑Baden, em Colónia, em
Paris, em Londres, em Lucerna, em Genebra, em Génova, em Florença, em Milão, em
Veneza, em Viena, e noutros lugares até duas vezes, e percorri tudo isso, tudo
isso em dois meses e meio! Mas será possível ver alguma coisa de maneira satisfatória,
tendo percorrido tanto caminho em dois meses e meio? Lembrem‑se, o meu percurso
tracei‑o ainda em Petersburgo. Nunca tinha estado no estrangeiro uma única vez:
ansiava por fazê‑lo quase desde a primeira infância, ainda quando, nas longas
noites de Inverno, por não saber ler, ouvia, de boca aberta e a desfalecer de
encantamento e de pavor, os meus pais lerem antes de dormir os romances de
Radcliffe, devido aos quais delirava depois febrilmente durante o sono. Parti
finalmente para o estrangeiro aos quarenta anos de idade, e, é claro, queria
não apenas ver o máximo possível, mas ver tudo, tudo sem falta, apesar do pouco
tempo. Além do mais, eu era absolutamente incapaz de escolher com calma os
lugares a visitar. Meu Deus, as coisas que eu esperava dessa viagem! «Bem posso
não ver nada em pormenor — pensava eu — mas em compensação terei visto tudo,
terei ido a toda a parte; em compensação, de tudo o que tenha visto formar‑se‑á
qualquer coisa global, um panorama geral. Todo o “país das sagradas maravilhas”
se me apresentará de uma vez, de relance, como uma terra prometida em
perspectiva, do cimo da montanha. Numa palavra, obtém‑se uma impressão nova,
singular, poderosa. Pois agora, aqui sentado em casa, de que é que tenho mais
pena, ao recordar as minhas peregrinações estivais? Não é de não ter visto nada
em pormenor, mas ter estado em quase toda a parte e não ter ido Roma, por
exemplo. E em Roma não teria talvez visto o papa…» Em suma, fui atacado por uma
espécie de insaciável sede de novidades, de mudança de lugares, de impressões
gerais, sintéticas, panorâmicas. Mas o que esperam de mim depois destas
confissões? O que lhes contarei? O que lhes representarei? Um panorama? Uma
perspectiva? Qual‑ quer coisa de relance? Mas talvez vocês sejam os primeiros a
dizer que eu voei demasiado alto. Além disso, considero‑me um homem
consciencioso, e não queria de modo nenhum mentir, nem mesmo na qualidade de
viajante. E se começo a apresentar‑lhes e a descrever nem que seja apenas um
panorama, mentirei inevitavelmente, não por ser um viajante, mas simplesmente
porque nas minhas circunstâncias é impossível não mentir. Vejam por vocês
mesmos: Berlim, por exemplo, causou em mim a mais azeda impressão, apesar de lá
ter estado apenas vinte e quatro horas. E agora sei que sou culpado para com
Berlim, que não me atrevo a afirmar que ela causa uma impressão azeda. Que seja
ao menos agridoce, e não simplesmente azeda. E a que se deveu esse meu erro
nefasto? Decididamente, a que, sendo eu um homem doente do fígado, viajei
durante dois dias no caminho‑de‑ferro, entre a chuva e o nevoeiro, até Berlim
e, ao chegar, sem ter dormido, amarelo, cansado, quebrado, notei de repente ao
primeiro olhar que Berlim é incrivelmente parecida com Petersburgo. As mesmas
ruas em cordão, os mesmos cheiros, as mesmas… (Mas de resto, não vale a pena enumerar
o mesmo!) Fu, meu Deus, pensava para comigo: valia a pena quebrar os ossos
durante dois dias na carruagem para ver as mesmas coisas de que fugi? Nem das
tílias gostei, e, para as manterem, os berlinenses sacrificam tudo o que lhes é
mais caro, incluindo talvez até a sua Constituição; e o que é mais caro para um
berlinense do que a sua Constituição? E ainda por cima os próprios berlinenses,
todos até ao último, pareciam tão alemães, que eu, apesar dos frescos de
Kaulbach (oh, horror!), esgueirei‑me rapidamente para Dresden, alimentando na
alma a profunda convicção de que é preciso habituarmo‑nos de modo especial aos
alemães e que, sem a habituação, é muitíssimo difícil suportá‑los em grandes
massas. E em Dresden até cometi uma falta para com as alemãs: assim que saí
para a rua, pareceu‑me de repente que não havia nada mais repugnante do que o
tipo de mulheres de Dresden e que até o próprio cantor do amor, Vsevolod Kresto‑
vski, o mais convicto e alegre dos poetas russos, ficaria aqui
completamente perdido e até talvez ficasse com dúvidas sobre a sua vocação. Eu,
é claro, naquele mesmo momento senti que dizia disparates e que ele não poderia
duvidar da sua vocação em circunstâncias algumas. Ao fim de duas horas, tudo me
foi explicado: ao voltar ao meu quarto de hotel e ao deitar a língua de fora em
frente do espelho, convenci‑me de que o meu juízo sobre as senhoras de Dresden
parecia a mais negra calúnia. A minha língua estava amarela, em mau estado… «E
será possível, será possível, que o homem, esse rei da natureza, dependa de tal
maneira do seu próprio fígado — pensei —, que baixeza!» Com estes pensamentos
consoladores parti para Colónia. Confesso que tinha muitas expectativas da
catedral; ainda na juventude desenhava‑a com devoção, quando estudava arquitectura.
No comboio de regresso através de Colónia, ou seja, um mês depois, quando,
regressando de Paris, avistei a catedral pela segunda vez, queria «pedir‑lhe
perdão de joelhos» por não ter compreendido a sua beleza da primeira vez, exactamente
como Karamzin4, que, com o mesmo objectivo, se ajoelhou
diante das Cataratas do Reno. No entanto, daquela primeira vez a catedral não
me agradou nada: pareceu‑me que aquilo eram apenas rendilhados, artigo de
capelista como os pesa‑papéis na escrivaninha, com setenta braças de altura.
«Majestosamente pouco» — decidi, do mesmo modo que antigamente os nossos avós
decidiam acerca de Púchkin: «Compõe com demasiada facilidade, tem pouca
elevação.» Suspeito que nessa primeira decisão influíram duas circunstâncias, e
a primeira delas: a água‑de‑colónia. Jean‑Maria Farina5 encontra‑se
ali mesmo ao lado da catedral e, em qualquer hotel em que nos instalemos, seja
qual for o nosso estado de espírito, por mais que nos escondamos dos nossos
inimigos e de Jean‑Maria Farina em especial, os seus clientes vêm encontrar‑nos
certamente, e é logo: «água‑de‑colónia ou la vie», não há outra opção. Não
posso afirmar de certeza que gritam precisamente estas palavras: «Eau de
Cologne ou la vie!», mas quem sabe — até pode ser. Lembro‑me de que então
sempre assim me parecia e ouvia. A segunda circunstância que me agastou e me
tornou injusto foi a nova ponte de Colónia. A ponte é sem dúvida magnífica, e é
com justiça que a cidade se orgulha dela, mas a mim pareceu‑me que se orgulhava
demasiado. É evidente que me irritei logo com isso. Além do mais, o colector de
moedas à entrada da ponte maravilhosa não tinha nada que me cobrar aquela
prudente taxa com o ar de quem me cobra uma multa por uma qualquer falta
desconhecida. Não sei, mas a mim pareceu‑me que o alemão está a armar‑se em
fanfarrão.
«Por certo percebeu que eu sou estrangeiro e precisamente
russo» — pensei. Pelo menos os olhos dele por pouco não disseram: «Estás a ver
a nossa ponte, russo miserável, pois tu não passas de um verme diante da nossa
ponte e diante de qualquer alemão, porque não tens uma ponte como esta.» Concordem,
isto é insultuoso. É claro que o alemão não disse nada disto, até talvez nem
tivesse isso em mente, mas vem a dar no mesmo; eu tinha então tanta certeza de
que ele queria dizer precisamente isso, que fiquei logo completamente furioso.
«Diabos te levem — pensei —, nós também inventámos o samovar… publicamos
revistas… no nosso país fazem‑se coisas para oficiais… temos…» — numa palavra,
encolerizei‑me e depois, comprando um frasco de água‑de‑colónia (ao qual já não
conseguia de maneira nenhuma escapar), parti imediatamente para Paris, na
esperança de que os franceses fossem muito mais amáveis e mais interessantes.
Agora julguem por vocês próprios: se eu me tivesse dominado, se tivesse permanecido
em Berlim não um dia, mas uma semana, em Dresden outro tanto, em Colónia
digamos uns três dias, ou pelo menos dois, por certo teria olhado uma segunda,
ou até uma terceira vez para os mesmos objectos com outros olhos e teria
formado sobre eles uma ideia mais conveniente. Até um raio de sol, um qualquer
simples raio de sol, tinha aqui muito significado: se ele brilhasse sobre a
catedral, como brilhou depois na segunda vez à minha chegada à cidade de
Colónia, o edifício por certo havia de mostrar‑se à sua verdadeira luz, e não
como naquela manhã nublada e até um pouco chuvosa, que apenas pôde suscitar em
mim um acesso de patriotismo ofendido. De resto, isto não significa, de modo
nenhum, que o patriotismo surge apenas com mau tempo. Pois bem, estão a ver,
meus amigos: em dois meses e meio é impossível ver tudo como deve ser, e eu não
lhes posso fornecer as informações mais precisas.”
Fiódor Dostoievski, in Notas
de Inverno sobre Impressões de Verão, Relógio D’Água Editores, Fev. 2022,
pp. 7-11
Sobre o Livro
"Este livro resulta da primeira viagem de Dostoievski ao
estrangeiro, efectuada em 1862.
Desafiado pelos amigos a descrever as suas impressões, o autor de Crime e
Castigo respondeu através de uma mistura de ensaio e ficção.
A obra reúne observações de viagem, esboços, comentários, que no conjunto
constituem uma tipologia mais imaginária do que real do Ocidente. Em muitas das
cenas descritas, situadas em Paris, Londres ou em carruagens de comboio,
encontramos a prosa incisiva do autor de Memórias do Subterrâneo e Os
Demónios.
Sobre o autor
Fiódor Dostoievski nasceu em Moscovo em outubro de 1821, o
segundo de sete filhos. A mãe morreu em 1837, de tuberculose, e o pai, médico,
saído da nobreza provinciana, foi assassinado dois anos depois, quando se
instalara já como proprietário rural.
Dostoievski estudou num colégio interno em Moscovo e, entre
1838 e 1843, frequentou a Academia Militar de Engenharia, onde se interessou
mais por Púchkin, Gógol e Lérmontov do que pelas disciplinas do curso. Nessa
época, leu também Shakespeare, Byron e Balzac (traduziu Eugénie Grandet),
Victor Hugo, Hoffmann, Goethe e Schiller. Publicou a sua primeira história,
«Gente Pobre» (onde a influência de O Capote de Gógol é visível), aos
vinte e cinco anos, obtendo um enorme sucesso. Em 1849, quando escrevera já uma
dúzia de contos, foi preso e condenado à morte por participar no Círculo
Petrashevski. A pena foi substituída à última hora por cinco anos de trabalhos
forçados numa prisão siberiana.
Foi agrilhoado e a caminho da Sibéria que Dostoievski recebeu um exemplar do
Novo Testamento das mãos de uma das mulheres dos Dezembristas. Não mais largou
o livro, mas a sua relação com a religião foi sempre atormentada pela rejeição
e a dúvida. Na década que se seguiu ao seu exílio, onde teve os primeiros
ataques de epilepsia, escreveu Cadernos da Casa Morta (1860), baseado na
sua experiência prisional, e Humilhados e Ofendidos. Em 1857 casou com uma
viúva, Maria Isaieva, tendo criado uma relação de amizade com o seu jovem
amante semelhante à descrita em Noites Brancas.Entre 1862 e 1863 fez
várias viagens pela Europa, onde conheceu Paulina Suslova, que serviu de modelo
para algumas das suas heroínas. Foi em Wiesbaden que se iniciou na paixão pelo
jogo (O Jogador é a obra em que ficcionou a sua atração pela roleta).Em
1866 publicou Crime e Castigo, em capítulos, na revista O Mensageiro
Russo .Em 1867 casou-se com Anna Grigorievna, a jovem estenógrafa a quem ditara O
Jogador em vinte e seis dias. O casal viria a instalar-se em Genebra, onde
teve uma primeira filha. Passado um ano, o casal viajou para Milão e Florença,
antes de regressar a Dresden. Dostoievski só voltou à Rússia em 1871. Em 1880
proferiu um discurso memorável na inauguração do monumento a Púchkin, em
Moscovo. Morreu seis meses depois, em 1881. Algumas das suas obras mais
importantes foram publicadas na década final da sua vida: Os Demónios
(1872) e Os Irmãos Karamázov (1880)."

Sem comentários:
Enviar um comentário