quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

À maneira de Prefácio

Notas de Inverno sobre Impressões de Verão
Capítulo I
À maneira de Prefácio
por Fiódor Dostoievksi
“Há já vários meses que vocês, meus amigos, insistem para que descreva quanto antes as minhas impressões do estrangeiro, sem suspeitarem de que com o vosso pedido me colocam simplesmente num beco sem saída. Escrever o quê? O que hei‑de contar de novo, ainda desconhecido, que não tenha sido contado? Quem é que entre nós, russos (isto é, aqueles que lêem ao menos as revistas), não conhece a Europa duas vezes melhor do que a Rússia? Escrevi duas vezes por cortesia, mas por certo conhecem‑na dez vezes melhor. Para mais, além destas considerações gerais, vocês sabem que eu não tenho nada de extraordinário para contar, e ainda menos para registar ordenadamente, porque eu não vi nada e, se vi alguma coisa, não tive tempo para observar atentamente. Estive em Berlim, em Dresden, em Wiesbaden, em Baden‑Baden, em Colónia, em Paris, em Londres, em Lucerna, em Genebra, em Génova, em Florença, em Milão, em Veneza, em Viena, e noutros lugares até duas vezes, e percorri tudo isso, tudo isso em dois meses e meio! Mas será possível ver alguma coisa de maneira satisfatória, tendo percorrido tanto caminho em dois meses e meio? Lembrem‑se, o meu percurso tracei‑o ainda em Petersburgo. Nunca tinha estado no estrangeiro uma única vez: ansiava por fazê‑lo quase desde a primeira infância, ainda quando, nas longas noites de Inverno, por não saber ler, ouvia, de boca aberta e a desfalecer de encantamento e de pavor, os meus pais lerem antes de dormir os romances de Radcliffe, devido aos quais delirava depois febrilmente durante o sono. Parti finalmente para o estrangeiro aos quarenta anos de idade, e, é claro, queria não apenas ver o máximo possível, mas ver tudo, tudo sem falta, apesar do pouco tempo. Além do mais, eu era absolutamente incapaz de escolher com calma os lugares a visitar. Meu Deus, as coisas que eu esperava dessa viagem! «Bem posso não ver nada em pormenor — pensava eu — mas em compensação terei visto tudo, terei ido a toda a parte; em compensação, de tudo o que tenha visto formar‑se‑á qualquer coisa global, um panorama geral. Todo o “país das sagradas maravilhas” se me apresentará de uma vez, de relance, como uma terra prometida em perspectiva, do cimo da montanha. Numa palavra, obtém‑se uma impressão nova, singular, poderosa. Pois agora, aqui sentado em casa, de que é que tenho mais pena, ao recordar as minhas peregrinações estivais? Não é de não ter visto nada em pormenor, mas ter estado em quase toda a parte e não ter ido Roma, por exemplo. E em Roma não teria talvez visto o papa…» Em suma, fui atacado por uma espécie de insaciável sede de novidades, de mudança de lugares, de impressões gerais, sintéticas, panorâmicas. Mas o que esperam de mim depois destas confissões? O que lhes contarei? O que lhes representarei? Um panorama? Uma perspectiva? Qual‑ quer coisa de relance? Mas talvez vocês sejam os primeiros a dizer que eu voei demasiado alto. Além disso, considero‑me um homem consciencioso, e não queria de modo nenhum mentir, nem mesmo na qualidade de viajante. E se começo a apresentar‑lhes e a descrever nem que seja apenas um panorama, mentirei inevitavelmente, não por ser um viajante, mas simplesmente porque nas minhas circunstâncias é impossível não mentir. Vejam por vocês mesmos: Berlim, por exemplo, causou em mim a mais azeda impressão, apesar de lá ter estado apenas vinte e quatro horas. E agora sei que sou culpado para com Berlim, que não me atrevo a afirmar que ela causa uma impressão azeda. Que seja ao menos agridoce, e não simplesmente azeda. E a que se deveu esse meu erro nefasto? Decididamente, a que, sendo eu um homem doente do fígado, viajei durante dois dias no caminho‑de‑ferro, entre a chuva e o nevoeiro, até Berlim e, ao chegar, sem ter dormido, amarelo, cansado, quebrado, notei de repente ao primeiro olhar que Berlim é incrivelmente parecida com Petersburgo. As mesmas ruas em cordão, os mesmos cheiros, as mesmas… (Mas de resto, não vale a pena enumerar o mesmo!) Fu, meu Deus, pensava para comigo: valia a pena quebrar os ossos durante dois dias na carruagem para ver as mesmas coisas de que fugi? Nem das tílias gostei, e, para as manterem, os berlinenses sacrificam tudo o que lhes é mais caro, incluindo talvez até a sua Constituição; e o que é mais caro para um berlinense do que a sua Constituição? E ainda por cima os próprios berlinenses, todos até ao último, pareciam tão alemães, que eu, apesar dos frescos de Kaulbach (oh, horror!), esgueirei‑me rapidamente para Dresden, alimentando na alma a profunda convicção de que é preciso habituarmo‑nos de modo especial aos alemães e que, sem a habituação, é muitíssimo difícil suportá‑los em grandes massas. E em Dresden até cometi uma falta para com as alemãs: assim que saí para a rua, pareceu‑me de repente que não havia nada mais repugnante do que o tipo de mulheres de Dresden e que até o próprio cantor do amor, Vsevolod Kresto‑ vski, o mais convicto e alegre dos poetas russos, ficaria aqui completamente perdido e até talvez ficasse com dúvidas sobre a sua vocação. Eu, é claro, naquele mesmo momento senti que dizia disparates e que ele não poderia duvidar da sua vocação em circunstâncias algumas. Ao fim de duas horas, tudo me foi explicado: ao voltar ao meu quarto de hotel e ao deitar a língua de fora em frente do espelho, convenci‑me de que o meu juízo sobre as senhoras de Dresden parecia a mais negra calúnia. A minha língua estava amarela, em mau estado… «E será possível, será possível, que o homem, esse rei da natureza, dependa de tal maneira do seu próprio fígado — pensei —, que baixeza!» Com estes pensamentos consoladores parti para Colónia. Confesso que tinha muitas expectativas da catedral; ainda na juventude desenhava‑a com devoção, quando estudava arquitectura. No comboio de regresso através de Colónia, ou seja, um mês depois, quando, regressando de Paris, avistei a catedral pela segunda vez, queria «pedir‑lhe perdão de joelhos» por não ter compreendido a sua beleza da primeira vez, exactamente como Karamzin4, que, com o mesmo objectivo, se ajoelhou diante das Cataratas do Reno. No entanto, daquela primeira vez a catedral não me agradou nada: pareceu‑me que aquilo eram apenas rendilhados, artigo de capelista como os pesa‑papéis na escrivaninha, com setenta braças de altura. «Majestosamente pouco» — decidi, do mesmo modo que antigamente os nossos avós decidiam acerca de Púchkin: «Compõe com demasiada facilidade, tem pouca elevação.» Suspeito que nessa primeira decisão influíram duas circunstâncias, e a primeira delas: a água‑de‑colónia. Jean‑Maria Farina5 encontra‑se ali mesmo ao lado da catedral e, em qualquer hotel em que nos instalemos, seja qual for o nosso estado de espírito, por mais que nos escondamos dos nossos inimigos e de Jean‑Maria Farina em especial, os seus clientes vêm encontrar‑nos certamente, e é logo: «água‑de‑colónia ou la vie», não há outra opção. Não posso afirmar de certeza que gritam precisamente estas palavras: «Eau de Cologne ou la vie!», mas quem sabe — até pode ser. Lembro‑me de que então sempre assim me parecia e ouvia. A segunda circunstância que me agastou e me tornou injusto foi a nova ponte de Colónia. A ponte é sem dúvida magnífica, e é com justiça que a cidade se orgulha dela, mas a mim pareceu‑me que se orgulhava demasiado. É evidente que me irritei logo com isso. Além do mais, o colector de moedas à entrada da ponte maravilhosa não tinha nada que me cobrar aquela prudente taxa com o ar de quem me cobra uma multa por uma qualquer falta desconhecida. Não sei, mas a mim pareceu‑me que o alemão está a armar‑se em fanfarrão.
«Por certo percebeu que eu sou estrangeiro e precisamente russo» — pensei. Pelo menos os olhos dele por pouco não disseram: «Estás a ver a nossa ponte, russo miserável, pois tu não passas de um verme diante da nossa ponte e diante de qualquer alemão, porque não tens uma ponte como esta.» Concordem, isto é insultuoso. É claro que o alemão não disse nada disto, até talvez nem tivesse isso em mente, mas vem a dar no mesmo; eu tinha então tanta certeza de que ele queria dizer precisamente isso, que fiquei logo completamente furioso. «Diabos te levem — pensei —, nós também inventámos o samovar… publicamos revistas… no nosso país fazem‑se coisas para oficiais… temos…» — numa palavra, encolerizei‑me e depois, comprando um frasco de água‑de‑colónia (ao qual já não conseguia de maneira nenhuma escapar), parti imediatamente para Paris, na esperança de que os franceses fossem muito mais amáveis e mais interessantes. Agora julguem por vocês próprios: se eu me tivesse dominado, se tivesse permanecido em Berlim não um dia, mas uma semana, em Dresden outro tanto, em Colónia digamos uns três dias, ou pelo menos dois, por certo teria olhado uma segunda, ou até uma terceira vez para os mesmos objectos com outros olhos e teria formado sobre eles uma ideia mais conveniente. Até um raio de sol, um qualquer simples raio de sol, tinha aqui muito significado: se ele brilhasse sobre a catedral, como brilhou depois na segunda vez à minha chegada à cidade de Colónia, o edifício por certo havia de mostrar‑se à sua verdadeira luz, e não como naquela manhã nublada e até um pouco chuvosa, que apenas pôde suscitar em mim um acesso de patriotismo ofendido. De resto, isto não significa, de modo nenhum, que o patriotismo surge apenas com mau tempo. Pois bem, estão a ver, meus amigos: em dois meses e meio é impossível ver tudo como deve ser, e eu não lhes posso fornecer as informações mais precisas.”
Fiódor Dostoievski, in Notas de Inverno sobre Impressões de Verão, Relógio D’Água Editores, Fev. 2022, pp. 7-11
Sobre o Livro
"Este livro resulta da primeira viagem de Dostoievski ao estrangeiro, efectuada em 1862.
Desafiado pelos amigos a descrever as suas impressões, o autor de Crime e Castigo respondeu através de uma mistura de ensaio e ficção.
A obra reúne observações de viagem, esboços, comentários, que no conjunto constituem uma tipologia mais imaginária do que real do Ocidente. Em muitas das cenas descritas, situadas em Paris, Londres ou em carruagens de comboio, encontramos a prosa incisiva do autor de Memórias do Subterrâneo e Os Demónios.
Sobre o autor
Fiódor Dostoievski nasceu em Moscovo em outubro de 1821, o segundo de sete filhos. A mãe morreu em 1837, de tuberculose, e o pai, médico, saído da nobreza provinciana, foi assassinado dois anos depois, quando se instalara já como proprietário rural.
Dostoievski estudou num colégio interno em Moscovo e, entre 1838 e 1843, frequentou a Academia Militar de Engenharia, onde se interessou mais por Púchkin, Gógol e Lérmontov do que pelas disciplinas do curso. Nessa época, leu também Shakespeare, Byron e Balzac (traduziu Eugénie Grandet), Victor Hugo, Hoffmann, Goethe e Schiller. Publicou a sua primeira história, «Gente Pobre» (onde a influência de O Capote de Gógol é visível), aos vinte e cinco anos, obtendo um enorme sucesso. Em 1849, quando escrevera já uma dúzia de contos, foi preso e condenado à morte por participar no Círculo Petrashevski. A pena foi substituída à última hora por cinco anos de trabalhos forçados numa prisão siberiana.
Foi agrilhoado e a caminho da Sibéria que Dostoievski recebeu um exemplar do Novo Testamento das mãos de uma das mulheres dos Dezembristas. Não mais largou o livro, mas a sua relação com a religião foi sempre atormentada pela rejeição e a dúvida. Na década que se seguiu ao seu exílio, onde teve os primeiros ataques de epilepsia, escreveu Cadernos da Casa Morta (1860), baseado na sua experiência prisional, e Humilhados e Ofendidos. Em 1857 casou com uma viúva, Maria Isaieva, tendo criado uma relação de amizade com o seu jovem amante semelhante à descrita em Noites Brancas.Entre 1862 e 1863 fez várias viagens pela Europa, onde conheceu Paulina Suslova, que serviu de modelo para algumas das suas heroínas. Foi em Wiesbaden que se iniciou na paixão pelo jogo (O Jogador é a obra em que ficcionou a sua atração pela roleta).Em 1866 publicou Crime e Castigo, em capítulos, na revista O Mensageiro Russo .Em 1867 casou-se com Anna Grigorievna, a jovem estenógrafa a quem ditara O Jogador em vinte e seis dias. O casal viria a instalar-se em Genebra, onde teve uma primeira filha. Passado um ano, o casal viajou para Milão e Florença, antes de regressar a Dresden. Dostoievski só voltou à Rússia em 1871. Em 1880 proferiu um discurso memorável na inauguração do monumento a Púchkin, em Moscovo. Morreu seis meses depois, em 1881. Algumas das suas obras mais importantes foram publicadas na década final da sua vida: Os Demónios (1872) e Os Irmãos Karamázov (1880)."

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