Neste 3º volume das suas Memórias (Acta Est Fabula) , que se completam em sete volumes, Eugénio Lisboa relata-nos momentos da sua vida entre 1955 e 1976, anos vividos em África, nomeadamente em Moçambique, onde nasceu.
“ Lanço , neste papel, memórias que me parecem importantes – a mim . Escrever memórias é tentar imprimir a marca da eternidade a momentos , para nós inesquecíveis e inesquecidos, intensos, mágicos, às vezes, quase insuportavelmente vivos...mas que serão , para outros , provavelmente despidos de interesse. Captar a atenção destes, a sua cumplicidade, atraí-los a esta narrativa de minúcias e convencê-los de que estes momentos foram realmente algo de especial – eis a tarefa gigantesca do memorialista." Eugénio Lisboa
por Eugénio Lisboa
Há muitas estradas para a felicidadese os deuses estiverem de acordo.Píndaro, Odes.
[...]"No dia 13 de
Dezembro deste ano (1959), nasceu a minha filha Maria Eugénia, em Lourenço
Marques, na Clínica da Dra. Ema Machado da Cruz. Foi, para nós, um
acontecimento. Mostrou-se, desde o início, de uma grande energia (mesmo
vocálica) e de uma enorme e atraente vivacidade. Perfeitamente intemerata,
atirava-se das grades abaixo, sem pestanejar. Quando começou a andar,
perseguia, teimosamente, as nossas chávenas de café e mostrava-se fascinada – e
nada amedrontada – pelos cactos que tínhamos na casa da Matola. De aí que eu tenha
começado a chamar-lhe Kacta e, depois, prevendo já o Acordo Ortográfico,
simplesmente, Kata , ou, nos momentos mais ternos, Katinha. Viria a tornar-se
muito popular com os guardas da instalação da Matola que, embora tivessem
instruções para a não deixarem entrar, mal ela aparecia, muito lampeira
abriam-lhe os dentes e a porta...Quando um dia, perguntei a um deles, o André Cavele,
a razão de ter autorizado a entrada da Geninha, contra as minhas instruções,
ele torceu-se e só soube responder: «Ih, a minina pidiu...» Até o jardineiro,
com cara de facínora, vigiava, com atenção meticulosa, a brincadeira da menina,
no jardim, não fosse aparecer, por ali, alguma cobra.
Às vezes, ao
fim da tarde, saíamos a dar uma volta de carro, com a Geninha, pela Matola ou
até à cidade, onde jantávamos em casa dos meus pais. Para o meu pai, a Geninha
era um brinquedo. Como, de início, era «língua de trapos», o meu pai passava a
vida a desfrutá-la. Num dia de anos, aproveitando as visitas, resolveu dar
espectáculo à custa da neta. A Geninha tinha dificuldade em pronunciar
«carrinho», dizendo «carinho», o que ao meu pai dava um gozo infinito. Nesse
dia querendo ouvi-la, mostrou-lhe um brinquedo (um pequeno carro) e
perguntou-lhe repetidamente, o que era aquilo. Percebendo a armadilha, a
Geninha fechava-se em copas. Mas a insistência foi tanta que, para pasmo do meu
pai, ela se dispôs a responder. E disse: «É um pó-pó.». Cheque-mate!"
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula - Memórias III - Lourenço Marques (1955 - 1976), Editora Opera Omnia, pp. 113-114
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