quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Livros para um Natal Gradiva/Guerra & Paz

Esta é a primeira vez que escrevo em nome da Gradiva. E, logo a seguir,a newsletter natalícia da Guerra e Paz. Com ternura, para quem gosto e para quem admiro.
Manuel S. Fonseca, Editor da Gradiva e da Guerra & Paz

Do manto de Gradiva, cinco livros de Natal
"Tenho a mão a treme
r. É a primeira vez que escrevo aos leitores da Gradiva. Se se lembram de Fanny e Alexandre, de Ingmar Bergman – é um filme de Natal, ó se é!  – lembram-se, é claro, da cena em que o pequeno Alexandre visita uma loja de brinquedos, autómatos, objectos mágicos, uma autêntica gruta de Ali Babá, guiado pelo dono, o judeu Isak Jacobi, amigo da família. É uma cena de maravilhoso puro, de desmedido deslumbramento. Assim me sinto eu, pequeno Manuel, nesta loja mágica chamada Gradiva, criada pelo meu amigo Guilherme Valente. 

O Guilherme pede-me, exige-me, que eu escolha à vontade: «Leva e lê, este Natal.» Agarro logo essa intriga de cem anos, essa viagem e  ocultação de um poema que atravessa o romance de Ian McEwanO Que Podemos Saber. Que força, que dom poético move cada um de nós, que somos afinal também personagens de McEwan, e nos permite sobreviver ao caos, à iminência da catástrofe, ao crime e à vingança, à doença e ao próprio amor? Leiam-no comigo, este Natal. 
E já o Guilherme me pede que procure outro dos seus objectos mágicos. Tropeço no Nome da Rosa, outro Nome da Rosa, aquele que ao nome de Umberto Eco junta o nome de Milo Manara, mestre do traço erótico. É uma das BD do Guilherme, dessas raridades que ele cultiva: imagino-o sentado com um Eco vindo do reino das sombras e com Manara, a pedir-lhes exuberância, riqueza criativa, mistério e desejo. Dessa matéria se faz este volume BD de O Nome da Rosa.
E sigo viagem com o meu amigo e mestre editor. Desembocamos no cosmos. Recebe-nos Stephen Hawking. Na mão, o seu A Teoria de Tudo: Origem e Destino do Universo. Como é possível que o pensamento humano seja tão claro, que alguém possa escrever argumentos tão luminosos e persuasivos, que fazem com que eu me sinta uma criança de cinco anos encantada? Talvez, afinal, o mundo da ciência seja o verdadeiro mundo do conto de fadas, com o seu universo em expansão, buracos negros e Big Bang.
«Manel – diz o Guilherme – este é para ti!» e dá-me As Lições dos Mestres, de George Steiner. E eu agradeço-lhe, intrigado com o que é o saber e como se transmite. Intrigado também com o rumor subterrâneo que liga, afinal, o saber e o poder. O que é ser um mentor? Mestres, aponta Steiner, foram Sócrates e Jesus, Confúcio, Dante ou Shakespeare. E quem foi, em filosofia o nosso mentor, Guilherme? O magnífico Trindade Santos e o Platão que ele nos ensinou a ler? E o que é ser um discípulo? Conseguirei eu ser, como editor, algo que se pareça a um teu discípulo?
Acabaria assim se Guilherme Valente, editor de meio-século, fundador desta gruta mágica, não me fizesse levantar a cabeça, obrigando-me a olhar de frente para Klara e o Sol, do Nobel Kazuo Ishiguro. Estou de olhos nos olhos com Klara, a amiga andróide. No céu, o Sol contempla-nos. Indiferente à nossa natureza, ilumina-nos, aquece-nos, dá-nos energia. Qual de nós o ama mais?
Foram estes os cinco livros de Natal que trouxe desta primeira viagem ao bosque de frutos encantados que se chama Gradiva, jardim que, com minucioso e fremente amor, Guilherme Valente criou e de que quero agora ser  fiel jardineiro.

 

Livros Guerra & Paz que serão sempre de Natal

"Há prendas, quase uma confissão sussurrada, que só se dão a quem muito se ama. Ou talvez a quem queremos que muito nos ame. Há livros que são essas prendas, suspiros de Natal, afago discreto de um dedo a deslizar na arrepiada pele. 

E se o Natal é mesmo essa onda devastadora de tudo se amar, até mesmo os inimigos, mais do que oferecer a outra face, por que não oferecer, a amigos e inimigos, a surpresa da intensa beleza que vem da China? 
Ouçam, leiam bem o título deste livro do modesto funcionário público do século XIX chinês que foi Shen FuNo Fio Inconstante dos Dias: Memórias de Uma Vida Flutuante. Quanta ternura e quanta incerteza não peregrinam por esses dias prometidos, por essa vida navegante? É uma história de amor, com concubinas e barcos de flores, com um boémio curso de vinho de arroz, e é também, em fundo, a paisagem chinesa, rios e montanhas, jardins e palácios, amor e morte.
Outra prenda, toda em veludo, é O Crisântemo e a Espada, essa declaração de amor que a antropóloga Ruth Benedict dedicou ao Japão e aos japoneses. Honra e dívida, pais e filhos, devoção filial, fica tão lindamente exposta toda a delicada reserva japonesa, a íntima filigrana de que é feito o povo do sol nascente. 
A antiquíssimas aventuras é que nos leva outra mulher, Jessie L. Weston. Escreveu Do Ritual ao Romance só para nos mostrar de quantos e tão remotos rituais vêm os nossos ideais de cavalaria, a salvação de donzelas, a morte do rei; de tão longínquo e tão enraizado paganismo vem também o que ainda nos sobra de cristianismo. Lê-se como uma novela da Távola Redonda e foi neste Do Ritual ao Romance que se inspiraram A Terra Devastada de T. S. Eliot e o Apocalypse Now, de Coppola. 
A quem queremos oferecer o corpo, a quem queremos que nos ofereça o corpo é que entregaremos a Cartografia do Desejo, o livro com as mais libérrimas fotografias de Alfredo Cunha. Não é apenas o aroma da nudez que Alfredo Cunha nos oferece: em cada fotografia sua está o essencial de um corpo, o seu movimento, e sobretudo a projecção do seu desejo. O desejo é a preto e branco, e é de lençol de seda a suavidade do papel gardapat, cama em que cada fotografia se deita. 
Para acabar, deixem-me ir buscar o sorriso de fina ironia de Agustina Bessa-Luís. Tomando nas suas mãos 12 episódios da nossa história de mil anos, Agustina somou a essa história a glória e o ciúme, a lealdade e a traição, a espada e o punhal. Agustina romanceou, delirou, dramatizou, ironizou, com liberdade prodigiosa, um dos mais espantosos e escondidos dos seus livros, Fama e Segredo na História de Portugal. Passe o Natal com este livro que até ao Menino Jesus de Caeiro arrancaria um sorriso trocista."

Manuel S. Fonseca, Editor

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Le Goncourt des Lycéens 2025



"La nuit au cœur" : la consécration d'un récit poignant.

Image de fond : Henri Rousseau, Le Rêve, 1910 (détail). Museum of Modern Art, New York.
Photo © Digital image, The Museum of Modern Art, New York/Scala, Florence.

HC m'a retournée comme un gant et dans ma chute, à mesure que je sombrais dans ses bras, molle et attendrie, je devenais indifférente à ma famille, je me désensibilisais au monde en surface, à mes amis, à mes études, à mes ambitions, et bientôt, l'échelle même de ma morale en fut restructurée. Où était le bien ? Où était le mal ? Il m'avait lavée de moi-même.
Nathacha Appanah, La nuit au cœur

Le jury du prix Goncourt des lycéens a, le jeudi 27 novembre, rendu son verdict. Toutes les équipes des Éditions Gallimard sont ravies de vous annoncer que la lauréate de cette année est Nathacha Appanah pour La nuit au cœur, déjà récompensée par les prix Femina et Renaudot des lycéens.

La nuit au cœur entrelace trois histoires de femmes victimes de la violence de leur compagnon. Sur le fil entre force et humilité, Nathacha Appanah scrute l’énigme insupportable du féminicide conjugal, quand la nuit noire prend la place de l’amour.

Découvrir le livre

« Un immense livre »
 ELLE
« Terrassant, d'une impressionnante puissance littéraire. »

Le Nouvel Obs
« Un texte absolument magnifique et très important. »

La Grande Librairie

Pensamento para hoje


Das Utopias

Se as coisas são inatingíveis... ora!
não é motivo para não querê-las.
Que tristes os caminhos, se não fora
a mágica presença das estrelas!
         Mario Quintana
(1906-07-30 Alegrete, Rio Grande do Sul, Brasil
1994-05-05 Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Memórias de Eugénio Lisboa



CONSIDERAÇÕES
por Eugénio Lisboa

Nunca falar de si próprio é uma
forma muito refinada de hipocrisia.
Nietzsche

"Neste 5º volume, transcreverei, de aqui até ao final, passagens que considero importantes, relativas ao desaparecimento de pessoas (mãe, sogro, irmão, animais domésticos), viagens que fiz (mas não todas) e uma ou outra “entrada” que me apeteça sublinhar. Tudo foram componentes desta recta final da minha vida, que se aproxima do fim: não que o sinta, mas porque é a ordem natural das coisas e a cabeça assim o aceita.
Nestes cinco volumes (de que me falta concluir este e, depois, escrever o 2º), tenho falado bastante dos outros e, também, alguma coisa, de mim. Embora um livro de memórias não seja bem uma autobiografia, não é menos verdade que contém um bom teor de valências que compõem o género autobiográfico. As memórias falam, sobretudo, dos “outros”, mas são outros que gravitam à volta de um “eu”. Não há que ter vergonha de assim se falar de si próprio. Uma certa complacência com a narrativa do próprio eu até nem será pecado de maior. Thomas Mann, num seu livro célebre – Goethe e Tolstoi – pergunta, sem pudor: “Poder-se-á distinguir o amor de si próprio do amor do próximo?” E julga poder e dever responder a esta pergunta, nestes termos: “O amor que temos por nós próprios e o amor que temos pelos outros confundem-se psicologicamente; eis por que a velha questão de se saber se o amor não passa de um sentimento egoísta em vez de ser um sentimento altruísta pôs o mais ocioso dos problemas. A oposição do egoísmo e do altruísmo é completamente suprimida no amor.” Neste mesmo livro, Mann acrescenta isto, como um suplemento de afronta aos “recatados”, que têm medo de parecerem narcisos: “Goethe vituperou, durante toda a sua vida, a afectação de recato com que se pretende interditar a complacência com o próprio eu. Dava ele a entender que tal sentimento só era bom para as pessoas a quem não assistia a mínima razão para se estimarem a si próprias. Tomou mesmo a defesa descarada da pequena vaidade corrente, declarando que a sua desaparição faria perecer a sociedade e que um snob tem ao menos a vantagem de nunca chegar a ser demasiado grosseiro.”
Com tão ilustres advogados de defesa a “protegerem” a minha desfaçatez de autobiógrafo (em cinco volumes), permito-me, pois, continuar e tentar levar até ao fim este meu empreendimento de guardador de memórias.(...)
Irei transcrever algumas passagens do meu diário, que relatam momentos fortes, ideias a reter, comentários, emoções, dias de viagem. Mas, como disse, terei de seleccionar severamente. Desde 1995, ano em que regressei a Portugal, até hoje (Março de 2015, mês em que escrevo estas palavras), viajei pela Grécia (várias vezes), pelo Peru (várias vezes), pelos Açores (várias vezes), por Londres (idem), Los Angeles, Noruega, Nova Iorque, Maputo (4 vezes), Paris (várias vezes), S.Tomé, Madrid e Córdova, Cuba, Marrocos (duas vezes)… De tudo isto, há registos, por vezes longos e minuciosos, nos vários e recheados volumes do meu diário. Como indico, estive mais de uma vez no Peru e na Grécia (de onde não trouxe uma agradável impressão sobre o comportamento dos gregos em relação aos estrangeiros) – e não falo nas inúmeras viagens que fiz, em serviço ou “pour le plaisir”, dentro de Portugal. O relato pormenorizado de toda esta agitação daria um volume de inaceitáveis dimensões e poria à prova a paciência do leitor. Terá a sua importância – assim o espero – mas terá que ser “servido” em doses faseadas e aceitáveis. Vou, portanto, fazer uma selecção de passagens que agora me apeteça mais inserir neste tomo, deixando para um volume suplementar (adenda) - a publicar ulteriormente – uma recolha seleccionada de passagens relativas às muitas viagens que fiz. O resto – a maior fatia – ficará para quando eu já não pisar o pó destes caminhos, tendo-me eu tornado, entretanto, pó dos caminhos dos outros…
Falarei, nas poucas páginas que me restam, para finalizar este 5º volume, de algumas mortes, que são, como se sabe, parte importante da vida – dos que vão e dos que ficam. E de algumas amizades que tanto vivificam a nossa vida, se assim me posso, mais ou menos pleonasticamente, exprimir. Falarei um pouco disto e daquilo, na esperança de, mesmo omitindo muito, dar uma amostra significativa do que tem sido a minha vida, desde o regresso de Londres, em 1995.
Passo, então, a transcrever algumas páginas avulsas do meu diário. Nelas falo de mim e dos outros. Quando falamos de nós, estamos sempre a falar de outros e quando falamos dos outros, estamos também a falar de nós. Será assim, para quem souber ler.

PÁGINAS DE DIÁRIO

Um homem nunca revela o seu próprio
carácter mais vividamente do que quando
está a retractar o carácter de outro.
Richter


18.03.99, Aveiro – As minhas alunas (e aluno!) ensaiam, neste momento, fabricar um comentário escrito à Solidão, da Irene Lisboa. Dei-lhes algumas pistas: vamos ver o que sai dali.
Em certo ponto da Solidão, Irene Lisboa insurge-se contra a ideia de que existe uma arte feminina. Não é a única. Entre as feministas il y en a qui sont d’accord.

16.08.99, S. Pedro – Longa ausência deste diário. Vamos ver se me torno mais assíduo. A verdade é que me não tem apetecido. O país está tão surrealista, os “colunistas” quase sempre tão “off the mark”, a classe política tão pífia e tão pirosa, que, por higiene, evito falar em tudo isto. E, para me pôr a dissertar sobre o sexo dos anjos, também não vale a pena.
Comprei, há dias, o 4º volume (Pléiade) da correspondência do Flaubert. A França de que ele fala (e que vomita) é igualmente o centro da “bêtise”, que ele não hesita em apelidar de “cafraria”. Por todas aquelas páginas vigorosas, desassombradas e vingadoras, perpassa o imenso nojo que tudo aquilo provocava no autor da Éducation Sentimentale. Como eu o compreendo!

1.01.2000, S. Pedro – Como não é de surpreender, entrámos, aqui em casa, no mítico 2000, do modo mais prosaico e anti -climático. A Geninha e as miúdas regressaram ao Porto ontem de manhã. De modo que ficámos em casa eu, a A., a minha mãe e o meu sogro. Este quis ir para sua casa, logo a seguir ao jantar. Eu, a mãe e a A. ainda brindámos ao novo ano, embora me sentisse agoniado e profundamente mal disposto. Espreitámos o fogo de artifício na marginal e regressámos a casa. A A. foi acabar de ver um filme (mau) e eu, cheio de frio, fui deitar-me a ler (pouco tempo). Aqui têm os senhores anunciadores de portentos, raios e coriscos, para este portentoso ano, o relato dos meus portentos caseiros. O novo ano não trouxe milagres nem catástrofes nem surpresas. Um calendário é um calendário. (…) Produzido por homens para uso dos homens. Não há prodígios.
Passei o dia a transportar o meu sogro entre Oeiras e S. Pedro, a almoçar, a jantar, a ouvir música e a ler (teatro de Montherlant e Adolescentes, de Casais Monteiro – para o qual vou, amanhã, redigir um prefácio.) Se eu fosse um intelectual português típico, declarava ter estado a ler a Divina Comédia ou a Odisseia ou a Bíblia (com ênfase no “Velho Testamento”). Mas li apenas aquilo que li – até porque o dia 1 de Janeiro do ano 2000 é um dia como outro qualquer, na sucessão infindável dos dias, a qual é qualquer coisa que nenhum de nós sabe muito bem o que seja: provavelmente, apenas uma criação do cérebro do homem. (Além do mais, o teatro de Montherlant não fica de todo envergonhado nem ao lado da Divina Comédia nem ao lado da Bíblia. E é, seguramente, mais empolgante do que a obra do Dante…)
Sinto-me mais velho do que há algum tempo atrás. Mas ainda cheio de energia, apesar de tudo. E com a convicção absurda de ainda não ter escrito o livro ou livros que me hão-de definir.
Dentro de três semanas, a minha mãe faz 93 anos. Os deuses não permitam que eu lhe copie a proeza. Muitas coisas ainda me apetecem, mas há limites para o apetite mais destemido.
Montherlant – um enorme escritor de que hoje ninguém fala, nem mesmo em França. Falam ainda de Sartre (embora cada vez menos). Que, como escritor, ao lado de Montherlant, simplesmente não existe. Assim vai o juízo da tão celebrada posteridade. A apreciação do mérito, hoje mais do que nunca (e a uma escala monstruosa), é obscenamente distorcida pelo mediático. Ser ou não ser mediático, eis a questão.
Luis Osório (jornalista) acaba de publicar um livro intitulado Portugueses. Trata-se de 25 portugueses supostamente significativos do nosso tempo. Desses 25, 13 são políticos ou ligados à política. Os outros são quase todos “mediáticos”. (…) Maria de Sousa, José Mattoso, Mariano Gago, (…), Sophia ou Eugénio de Andrade (…) são alegremente “descartáveis”. Mas vamos ter, em breve, com certeza, a Maria Elisa, a Catarina Furtado e o João Baião – tudo rapazes e raparigas que tornam o nobre povo imensamente imortal. Não há como saber escolher.

(….)

4.01.2000, S. Pedro – (…)
Quando Maeterlink deu à luz La Princesse Maleine, Mirbeau não esteve com meias medidas: “Enfin, M. Maurice Maeterlink nous a donné l’oeuvre la plus géniale de ce temps, et la plus extraordinaire et la plus naïve aussi – oserai-je dire? – supérieure en beauté à ce qu’il y a de plus beau dans Shakespeare.” Quem lê hoje Maeterlink? Quem fala nele? Quem o representa? Quem sabe que ele existiu? Aviso ao ego cada vez mais arrogante do Saramago – e dos seus pimpões apoderados… [2015: como se vê, a “posteridade” atira para o caixote do lixo, tanto os verdadeiramente grandes – Montherlant – como os falsos grandes – Maeterlink. Com a diferença de que, sobre Montherlant, nunca nenhum Mirbeau emitiu, em vida dele, as ejaculações exorbitantes que este dedicou ao autor do Pássaro Azul… 
P. S. – Maeterlink também ganhou o Nobel.]"

3.01.2001, S. Pedro – O Fanito [Delfim Epifânio Lisboa], que chegou do Maputo, há pouco mais de um ano, faleceu, de um ataque cardíaco, no dia 30 do mês passado. Tinha 83 anos, nascera em Moçambique, onde sempre vivera e de onde nunca saíra, até ao ano passado. Era irmão (mulato) do meu pai e vivera sempre um pouco aparte, embora acarinhado pelos irmãos e irmãs. Há pouco mais de um ano, quando fui a Moçambique, encontrei-o em pânico, a querer urgentemente vir-se embora (de facto, tinha já tudo organizado para vir para Portugal – e fê-lo, pouco depois da minha própria partida de lá.) Tinham-lhe assaltado a casa (situada numa zona periférica, a Machava), à noite, enquanto dormia, e o pânico tomou-o de assalto. (Aos 82 anos, as pessoas, com os poderes diminuídos, sentem-se intoleravelmente vulneráveis.)
Viera enterrar-se em Alverca, num meio que lhe era estranho, num clima que lhe era hostil, afastado de tudo quanto, durante 82 anos, lhe fora a própria vida. Tinha, é claro, o apoio dos filhos e netos, mas é sabido o fosso que separa os que vão morrer dos que vão continuar a viver.
O Fanito fora, para mim e para os meus irmãos, na nossa infância e alguma adolescência, aquele tio “outsider”, a que se acha uma especial graça e de quem se gosta particularmente. De vez em quando, aos sábados, eu e os meus irmãos, a vivermos na extrema ponta pobre de Lourenço Marques (na Mendonça Barreto, a perpendicular limite à 24 de Julho), descíamos a “barreira” inculta que ficava  a dois passos da nossa casa e íamos “ver o Fanito”. Que vivia numa casita pobre, de um bairro pobre e “exterior” – que nos fascinava: a galinha (mesmo pobre) da minha vizinha é sempre melhor do que a minha. Comíamos com ele e contava-nos histórias, com uma paciência de santo. Era um bom, o artigo genuíno, quimicamente puro. Um daqueles poucos seres que redimem a raça humana. Fora educado na Ilha de Moçambique, na Escola de Artes e Ofícios, onde tirou o curso de encadernador. No regresso a Lourenço Marques, com 17 anos, o meu pai arranjou maneira de o colocar na Imprensa Nacional, onde trabalhou toda a vida e onde se reformou. Era um bom profissional e tenho vários livros encadernados por ele, dos quais destaco – et pour cause! – a edição portuguesa, da Inquérito, de Le Rouge et le Noir, de Stendhal, em magnífica tradução de José Marinho; e também, três grossos volumes de A Voz de Moçambique. O mesmo é dizer que o Fanito, mesmo morto, está sempre comigo.
Tímido, até ao inconcebível, casou-se com uma mulher lindíssima e teve dois filhos.
Quando veio a independência, não quis vir para Portugal, por ter receio de que o perseguissem, ao pedir para abandonar Moçambique (e as coisas, na altura, davam para que se pensasse nisso: nascido lá, ele ficara “automaticamente” moçambicano e nunca rejeitara essa nacionalidade, o que tornava a sua situação “delicada”).
Diz-me o filho (Jorge) que o Fanito, durante este último ano, lia o tempo todo e via televisão . Mas pressinto que se terá sentido um pouco vendido neste “país incompreensível” (ver Montherlant, Le Chaos et la Nuit: o protagonista, um anarquista espanhol a viver em Paris achava a França um “país incompreensível”), com um pé cortado, devido a uma gangrena num dedo mal cuidado – herança do Maputo - , movimentos limitados e a televisão que há. Parece, no entanto, que se entretinha. E estava fora de perigo.
O destino dos Lisboas. O meu pai, oriundo de Alcobaça, viveu quase toda a vida em Moçambique (o único país, para ele, “compreensível”!) e foi, com 71 anos, morrer a Joanesburgo, onde ficou enterrado. Exílio na morte – c’est pas juste. O tio Fernando (irmão do meu pai), a mesma coisa: filho adoptivo de Moçambique – enterrado em Joanesburgo, onde viveu os últimos anos, numa espécie de exílio. O Fanito – Alverca. O meu irmão Ilídio, nascido, alimentado, educado e vivido quase até à reforma, em Lourenço Marques – morto e enterrado em Queluz. A minha tia Maria, que passou mais de 50 anos em Moçambique - enterrada em Coimbra. Até a minha gata – a esplendorosa Alexandrovna Ivanovna Petrovska Ivinskaia – que teve, comigo, um longo “love affair”, em Lourenço Marques, terra “compreensível”, acabou exilada e enterrada em Joanesburgo. [2015:Last but not least, a minha mãe nada, criada e vivida em Moçambique, veio para Portugal, com 70 anos aqui vivendo até aos 96 anos, tendo ficado sepultada em S. João do Estoril. Sem falar nas três irmãs do meu pai, trasladadas, sobre o tarde, do país “compreensível” para o país “incompreensível”, onde ficaram, para sempre, sepultadas.] Raça de exilados, mas exilados, no fim, na morte e na sepultura.
O Fanito. Conta-me a minha mãe (ainda viva, neste ano de 2001, […]), conta-me a minha mãe que o Fanito, quando era garoto, se estava com febre e lhe dava o frio [paludismo?], ia para o sol aquecer-se. Isto, não sei porquê, põe-me um nó na garganta. Que mundo é este?
Segundo uma filosofia vigente, a única qualidade digna de nota, isto é, de visibilidade, é a dos políticos e a dos mais ou menos mundanos colunáveis (nestes se incluindo, com imensa notoriedade, os futebolistas, treinadores e presidentes de clubes de futebol). O discreto mas profundo investigador, o escritor de grande gabarito mas não “best-seller” (ou, se preferirem, “besta célere”) – não são dignos de nota, isto é, de pequeno écran. De aí, a enormidade proferida, há dias, por Edite Estrela (e corroborada por Jorge Coelho), a propósito da actividade jornalística de Carrilho. Segundo ela, Carrilho não existia – porque não existia, mediaticamente – antes de a política o fazer existir. O que fizera como académico e investigador não contava mediaticamente. E, não contando, mediaticamente, não contava tout-court. Portanto, Carrilho estaria a “aproveitar-se” de uma visibilidade política de curta duração, para continuar a existir, sem direito a isso, agora que já não era ministro. O mérito outro que ele tivesse e que a actividade política apenas revelara era inexistente e não colunável. O comentário político que ele agora fazia – de modo acutilante e brilhante – dava-lhe uma notoriedade que era uma usurpação. É muito curioso este ponto de vista, altamente revelador da sociedade em que vivemos. Segundo este critério de avaliação, Bárbara Guimarães ou Catarina Furtado ou Teresa Guilherme são mais importantes do que Alexandre Quintanilha ou Sousa Sobrinho. É a televisão que, em última análise, consagra os cidadãos – sobretudo a assiduidade na aparição no “petit écran”. Fora da televisão e, em menor grau, dos jornais (sobretudo, dos piores), não há vida ou, pelo menos, não há glória. É isto que se pretende passar, subliminarmente, para o subconsciente das pessoas. E tem passado. E como!
É daqui que resulta o espectáculo patético dado pelos que, tendo valor real e profundo, acham, que lhes é necessário aparecerem várias vezes por semana (nos jornais – vários - , na rádio, na televisão), sob risco de “anéantissement” (…). Eles sabem que o seu reconhecimento, melhor, a sua certidão de vida depende destes critérios produzidos por outros que lhes são inferiores. Mas, entrando no jogo, ajudam a perpetuar as regras vigentes. (É um espectáculo de um grotesco eminentemente fruível assistir ao namoro que tantos “scholars” de valor fazem aos media ou àqueles que, nos media, parecem ter poder.)"
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula- Memórias- Regresso a Portugal (1995-2015), Editora Opera Omnia, Outubro de 2015, pp. 230-240