terça-feira, 10 de novembro de 2020

Gare Marítima


Gare Marítima
por João de Melo
"O correspondente do jornal no arquipélago leva‑a de carro até ao forte de São Brás, de onde ela seguirá ao encontro do terrorista. Deixa-a ao virar da esquina, a pouca distância da entrada para o cais da cidade. Não falam, nada mais têm a dizer um ao outro. Mas a jornalista sabe que os olhos do Gil lhe mentem: nem por um momento acreditam que ela, a enviada especial do Quotidiano, se sinta tão calma quanto aparenta à partida para a missão que a trouxe de Lisboa até à ilha. Entrevistar um tal Mariano Franco, outrora o operacional mais temido da Frente de Libertação dos Açores. Recuperar a história, ainda hoje obscura, desse homem de armas e ideias, um militante de proa da causa independentista, mais tarde contestatário da organização e, por fim, seu dissidente. Um anarquista à solta e em rebelião contra os órgãos de cúpula da FLA.
 Mais de vinte anos volvidos sobre as derivas e os boatos insones da política, com o separatismo morto ou mal sepultado, logo havia de ocorrer ao casmurro David Matos, chefe de redacção em Lisboa, dedicar-lhe um suplemento dominical do jornal! Que não existia outro igual a ele, o único capaz de aclarar esse passado de equívocos, sombras e meias-palavras. Apesar de ter abandonado a política e a cidade para ir viver no campo, continuava a ser o elemento histórico da FLA a quem atribuíam tudo e mais alguma coisa: posse e uso de materiais explosivos, armas de guerra, tiros de pistola e rajadas de metralhadora contra pessoas e alvos oficiais, actos de violência sobre gente perseguida durante o inferno perfeito da Revolução dos Cravos nos Açores – até à madrugada em que foi preso, levado para a Terceira e daí para Lisboa.
 Matos insistira com ela para que o questionasse acerca de tudo, a começar pelas coisas mais elementares: os comunicados anónimos em nome da FLA, porém atribuídos a Mariano, e os manifestos e artigos de opinião vindos a público nos jornais das ilhas, já com a assinatura dele. Desafiá-lo a confirmar a prática de sevícias sobre continentais e insulares que se opunham à independência – alguns embarcados à força para Lisboa em aviões civis e militares, quais degredados sem culpa nem crime, a caminho do exílio. Teve a honradez de não lhe omitir nenhum pormenor dessa missão na ilha, a começar pelo mais delicado: as condições impostas por Mariano para conceder a entrevista ao jornal. Primeira condição: que ambos se dessem a conhecer apenas no interior do porto, indo Cláudia Lourenço à frente e até a um sítio da doca que lhe seria indicado. Segunda condição: que aceitasse ser conduzida, sozinha com ele, a um local à escolha do homem, como garantia da clandestinidade do encontro.
 Vendo-a ficar apreensiva com esta última exigência, Matos apressou-se a garantir que estivesse tranquila, tudo não passava de uma encenação, uma coisa mal-amanhada, obra de um amador. O jogo dele consistia em conferir solenidade a uma operação de rotina jornalística: um misto de enigma ingénuo e de prova do vazio – como nas matrioscas russas e nas caixinhas chinesas. Não se impressionasse ela com o secretismo nem com as manobras do Franco. Retirado na sua casa das Capelas, reassumira a condição de grande senhor, dono de terras, matas e manadas – a fazer lembrar o tempo em que uma gente do campo, rota e descalça, servira os pais dele de sol a sol, ao frio e à chuva, até emigrar e dizer adeus para sempre aos Açores.
 – É o mormaço da tarde e o cais sem vivalma que me fazem sentir aziago – lamenta-se Gil, que ainda ali permanece, de braços cruzados e com vontade de chorar, ao vê-la afastar-se lá para dentro e sem olhar uma única vez para trás.
 O mar cavado, as suas sete ondas a baterem contra o exterior da muralha e a virem quebrar-se no calhau rolado. Nuvens, poucas e altas, e paradas no firmamento quais penedos dele suspensos. Um ruído de mastros a bater nas alturas. A água a saltitar, a arremeter contra o casco das embarcações. Gil estranha não ver ninguém de serviço ao cais: nem guarda na guarita da entrada, nem vigias às mercadorias descarregadas no chão da doca, nem plantões de sentinela à Fortaleza ou a tripulação do cargueiro ancorado que espera a ordem de largada. Só a leveza porosa da tarde, com a sua luz crua, talvez pouco fiável no Outono das ilhas.
 E lá estão as casas da cidade, as da primeira linha do mar e outras por detrás. Seguem o meio arco da Avenida Marginal contornando a baía, os comércios, as mansões de portas e janelas fechadas e as esplanadas desertas. Lá para diante, a costa marítima: a Calheta, o ilhéu de São Roque com o seu rosto de cão desdentado, a praia do Pópulo, a Atalhada e a Lagoa a esbater- se na neblina. Tudo isso Gil lhe fora mostrar na volta rápida à ilha. A paisagem que dali se avista sugere um biombo aberto sobre os campos de trevo, com as eternas vacas neles pousadas na erva, tal como pousam os melros negros e os pombos a debicar os bichos da terra. Sobem vales e bosques vivos que findam a meia-encosta. A partir daí, só as montanhas – encadeadas em espinha sobre o dorso pré-histórico da ilha. Nada mais existe digno de um olhar.
Minto: existe o vento. E ele não serve para nada, a não ser para levar consigo as nuvens e dispersá-las pelo espaço fora, já desfiguradas; e ei-lo que se derriça nos cabelos de Cláudia, que bate nas folhas e copas das árvores, que levanta no ar a espuma das ondas.
 «Não deve haver lugar mais sombrio» – pensa para consigo a jornalista, à vista do cais.
Um corpo estranho à própria cidade branca com telhados vermelhos, às suas fachadas debruadas por frisos de basalto e às linhas harmónicas dos edifícios públicos. Lá mais ao fundo, são os braços nus dos guindastes sobre o quebra-mar, que ali trava a braveza das vagas. O porto é a melancolia e a desolação, e a fealdade da pedra cor de chuva, há tantos anos por caiar.
Apesar de não ver ninguém, persiste nela a sensação de estar a ser seguida e espiada. «O Diabo vem atrás de mim.» Um Diabo espião, com os seus passinhos de lã – correndo de meda em meda e de monte em monte de carga marítima. Amontoados de toros foram presos por cintas metálicas, os contentores selados a cadeado, e há volumes envoltos por amarras; e medas de sacas de ráfia, que a seu tempo seguirão viagem. Um pouco mais à frente, jazem lado a lado duas grandes boxes de madeira com escritos à vista, enormes caixas cheias de roupa da América. Alguém as reclamará na alfândega e as destinará à casa de uma gente emigrada que decidiu regressar de vez à ilha. Volta trazendo consigo os móveis de estimação, roupas do frio que cheiram a naftalina, mechins domésticos e brinquedos americanos para as crianças da família.
Quando já nem a avista lá para o fundo do cais, Gil põe-se de volta à cidade. Deserto por emborcar um bom copo de uísque. Beber sozinho com os seus pensamentos, com o vazio da partida de Cláudia a ensombrar-lhe o coração. Habituara-se a contemplar a sua velha tristeza no fundo dos copos, com o tilintar das pedrinhas de gelo contra o vidro e elas a minguar, a dissolver-se na lenta corrosão da bebida. Nada melhor do que o silêncio e o uísque para apagar os rastos deixados na lama dos caminhos.
Porque se embeiçara por ela, e logo ao primeiro olhar, a ponto de lhe ter apetecido chorar ao vê-la partir para aquele finisterra do mundo sobre o mar? Fora em tempos um rapaz feliz na sua alegre cidadezinha da Horta, com a montanha em frente, tão perto que parecia entrar-lhe pela janela. O mar do Canal entre as duas ilhas, Faial e Pico, trazia de manhã a montanha de lá para cá e levava-a de volta ao fim do dia. O sonho dele sempre fora viver ali, na ilusão verdadeira dessa paisagem. Veio um dia a São Miguel a uma entrevista de emprego numa agência de viagens, e foi o escolhido. Quando almoçava numa esplanada, alguém lhe apresentou a Etelvina, que também trabalhava na agência. Trocou um sonho por outro: cedeu-o a uma ilha muito maior do que a sua. Depois, o jornalismo. Tendo sabido que o jornal Quotidiano estava a recrutar um correspondente na região, meteu-se no primeiro voo para Lisboa. Entrevistado por um homem bilioso, um tal David Matos, que o massacrou com exigências de rigor e recomendações sobre os modos de escrita, veio de lá afinal com um contrato de trabalho e de credencial na mão.(...)" 
João de Melo, in Livro de Vozes e Sombras, Publicações Dom Quixote, Junho 2020, pp.17--21

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