quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Coisas que só eu sei II


Coisas que só eu sei ( cont.)
por Camilo Castelo Branco
IV
"Eram três horas.
Henriqueta disse que se retirava, depois de vitimar com seus ligeiros, mas pungentes gracejos, alguns daqueles muitos que provocam o sarcasmo só com a presença, só com o vulto corporal, só com a sensaboria de um remoque parvo e pretensioso. O Carnaval é uma exposição anual destes infelizes.
Carlos, ao ver que Henriqueta se retirava com um segredo que tanto irritara a sua curiosidade, instou com delicadeza, com meiguice, e até com ressentimento, pela realidade de uma esperança, que fizera a sua felicidade de algumas horas.
— “Eu não me arrependo” - disse ele - “de ter sido a voluntária testemunha de teus desforços… Ainda mesmo que me tivessem conhecido, e tu fosses uma mulher licenciosa e depravada, não me arrependeria… Ouvi-te, iludi-me na esperança vaidosa de conhecer-te, tive orgulho de ser o escolhido para sentir de perto as pulsações vertiginosas do teu coração… Estou recompensado de mais… Ainda assim, Henriqueta, eu não tenho pejo de abrir-te a minha alma, confessando-te um desejo de conhecer-te que não posso iludir… Este desejo vais-mo tu convertendo numa dor; e será logo uma saudade insuportável, que te faria compaixão se soubesses avaliar o que é na minha alma um desejo impossível. Se tu mo não dizes, que me dirá o teu nome?”
— “Não sabes que sou Henriqueta?”
— “Que importa? E serás-tu Henriqueta?”
— “Sou… Juro-te que sou…”
— “Não basta isto… Ora diz-me… Não sentes a precisão de ser-me grata?”
— “A quê, meu cavalheiro?”
— “Grata ao melindre com que te tenho tratado, grata à delicadeza com que te peço uma revelação da tua vida, e grata a este impulso invencível que me manda ajoelhar-te… Será nobre zombar de um amor que involuntariamente fizeste nascer?”
— “Não te iludas, Carlos” - replicou Henriqueta num tom de seriedade, semelhante ao de uma mãe que aconselha seu filho. “O amor não é isso que pica a tua curiosidade. As mulheres são fáceis de transigir de boa fé com a mentira, e, pobres mulheres!… Sucumbem muitas vezes à eloquência artificiosa de um conquistador. Os homens, fartos de estudarem as paixões na sua origem, e enfadados das rápidas ilusões que eles choram todos os dias, estão prontos sempre a declararem-se afectados de cólera-paixão, e nunca apresentam carta limpa de cépticos. De maneira que o sexo frágil das quimeras sois vós, criancinhas de toda a vida, que brincais aos trinta anos com a mulher como aos seis brincáveis com os cavalinhos de pau, e os fradinhos de sabugo! Olha, Carlos, eu não sou ingrata… Vou-me despedir de ti, mas hei-de conversar contigo ainda. Não instes; abandona-te à minha generosidade, e verás que alguma coisa lucraste em me encontrar e em me não conhecer. Adeus.
Carlos acompanhou-a com os olhos, e permaneceu alguns minutos numa espécie de idiotismo, quando a viu desaparecer à saída do teatro. O seu primeiro pensamento foi segui-la; mas a prudência lembrou-lhe que era uma indignidade. O segundo foi empregar a intriga astuciosa até roubar alguma revelação àquela Sofia da primeira ordem ou à Laura da segunda. Não lhe lembraram recursos, nem eu sei quais eles poderiam ser. Laura e Sofia, para dissiparem completamente a esperança ansiosa de Carlos, tinham-se retirado. Era necessário esperar, era necessário confiar naquela mulher extraordinária, cujas promessas o alvoroçado poeta traduzia em mil versões.
Carlos retirou-se, e esqueceu não sei quantas mulheres, que ainda, na noite anterior, lhe povoaram os sonhos. Ao amanhecer, ergueu-se, e escreveu as reminiscências vivas da cena, quase fabulosa, que lhe transtornava o plano de vida.
Não houve nunca um coração tão ambicioso de futuro, tão fervente de poesia, e tão fantástico de conjecturas! Carlos adorava seriamente aquela mulher! Como estas adorações se afervoram com tão pouco, não sei eu : mas que o amor é assim, vou eu jurá-lo, e espero que os meus amigos me não deixem mentir.
Imaginem, portanto, a inquietação daquele grande espiritualista, quando viu passarem, vagarosos e enfadonhos, oito dias, sem que o mais ligeiro indício lhe viesse confirmar a existência de Henriqueta! Não direi que o desesperado amante apelou para o supremo tribunal das paixões impossíveis. O suicídio não lhe passou nunca pela imaginação; e muito sinto que esta verdade diminua as simpatias que o meu herói poderia granjear. A verdade, porém, é que o apaixonado mancebo vivia sombrio, isolava-se contra os seus hábitos socialmente galhofeiros, abominava as impertinências de sua mãe que o consolava com anedotas trágicas a respeito de rapazes cegos de amor, e, enfim, sofrera a ponto tal que resolvera abandonar Portugal, se, no fim de quinze dias, a fatídica mulher continuasse a ludibriar a sua esperança.
Diga-se, porém, em honra e louvor da astúcia humana : Carlos, resolvido a partir, lembrou-se de pedir a um seu amigo, que, na gazetilha do Nacional, dissesse, por exemplo, o seguinte :
“O Sr. Carlos de Almeida vai, no próximo paquete, para Inglaterra. S. Sa tenciona observar de perto a civilização das primeiras capitais da Europa. O Sr. Carlos de Almeida é uma inteligência, que, enriquecida pela instrução prática da sua visita aos focos da civilização, há-de voltar à sua pátria com fecundo cabedal de conhecimentos em todos os ramos das ciências humanas. Fazemos votos por que S. Sa se recolha em breve ao seio dos seus numerosos amigos.”
Esta notícia  bem podia ser que chegasse às mãos de Henriqueta. Henriqueta bem podia ser que conjecturasse o imperioso motivo que obrigava o infeliz a buscar distracções longe da pátria, onde a sua paixão era invencível. E, depois, nada mais fácil que uma carta, uma palavra, um raio de esperança, que lhe transtornasse os seus planos.
Era esta a infalível tenção de Carlos, quando ao décimo quarto dia lhe foi entregue a seguinte carta :
V
“Carlos.
Sem ofender as leis da civilidade, continuo a dar-te o tratamento do dominó, porque, em boa verdade, eu continuo a ser para ti um dominó moral, não é assim?”
Passaram-se catorze dias, depois que tiveste o mau encontro de uma mulher, que te privou de algumas horas de deliciosa intriga. Vítima da tua delicadeza, levaste o sacrifício a ponto de te mostrares interessado na sorte dessa célebre desconhecida que te mortificou. Não serei eu, generoso Carlos, ingrata a essa manifestação cavalheirosa, embora ela será um rasgo de artista, e não um desejo espontâneo.
Queres saber porque tenho demorado catorze dias este grande sacrifício que vou fazer? É porque ainda hoje me levanto de uma febre incessante, que me insultou naquele camarote da segunda ordem, e que, neste momento, parece declinar.
Permita Deus que seja longo o intervalo para ser longa a carta : mas eu sinto-me tão pequena para os sacrifícios grandes!… Não te quero responsabilizar pela minha saúde; mas, se o meu silêncio de longos tempos suceder a esta carta, conjectura, meu amigo, que Henriqueta caiu no leito, donde há-de erguer-se, se não é graça que os mortos hão-de erguer-se um dia.
Queres apontamentos para um romance que terá o mérito de ser português? Vou dar-tos.
Henriqueta nasceu em Lisboa. Seus pais tinham o lustre dos brasões, mas não brilhavam nada pelo ouro. Viviam sem fausto, sem história contemporânea, sem bailes e sem bilhetes de boas-festas. As visitas que Henriqueta conhecia eram, no sexo feminino, quatro velhas suas tias, e, no masculino, quatro caseiros que vinham anualmente pagar as rendas, com que seu pai regulava economicamente uma nobre independência.
O irmão de Henriqueta era um moço de talento, que granjeara uma instrução, enriquecida sempre pelos desvelos com que afagava a sua paixão única. Isolado de todo o mundo, o irmão de Henriqueta confiou a sua irmã os segredos do seu muito saber, e formou-lhe um espírito varonil, e inspirou-lhe uma ambição faminta de ciência.
Bem sabes, Carlos, que falo de mim, e não posso, nesta parte, engrinaldar-me de flores imodestas, se bem que não me faltariam depois espinhos que me desculpassem as vaidosas flores…
Eu cheguei a ser o eco fiel dos talentos do meu irmão. Nossos pais não compreendiam as práticas literárias com que aligeirávamos as noites de Inverno; e, mesmo assim, folgavam de nos ouvir, e via-se-lhes nos olhos aquele rir de bondoso orgulho, que tanto inflama as vaidades da inteligência.
Aos dezoito anos achei pequeno o horizonte da minha vida, e enfastiei-me da leitura, que mo fazia cada vez amesquinhar-se mais. Só com a experiência se conhece o quanto a literatura modifica a organização de uma mulher. Eu creio que a mulher, apurada na ciência das coisas pensa de um modo extraordinário na ciência das pessoas. O prisma das suas vistas penetrantes é belo, mas as lindas cambiantes do seu prisma são como as cores variegadas do arco-íris, que anuncia tempestade.
Meu irmão lia-me os segredos do coração! Não é fácil mentir ao talento com as hipocrisias do talento. Compreendeu-me, teve dó de mim.
Meu pai morreu, e minha mãe pediu à alma de meu pai que lhe alcançasse do Senhor uma vida longa para meu amparo. Ouviu-a Deus, porque eu vi um milagre na rápida convalescença com que minha mãe saiu de uma enfermidade de quatro anos.
Eu vi um dia um homem no quarto de meu irmão, onde entrei como entrava sempre sem receio de encontrar um desconhecido. Quis retirar-me, e meu irmão chamou-me para me apresentar, pela primeira vez na sua vida, um homem.
Este homem chama-se Vasco de Seabra.
Não sei se por orgulho, se por acaso, meu irmão chamou a conversa ao campo da literatura. Falava-se em romances, em dramas, em estilos, em escolas, e não sei que outros assuntos ligeiros e graciosos que me cativaram o coração e a cabeça.
Vasco falava bem, e revelava coisas que me não eram novas com estilo novo. Naquele homem, via-se o género aformoseado pela arte que só na sociedade se adquire. Em meu irmão faltava-lhe o relevo de estilo, que se lapida ao trato dos maus e dos bons. Bem sabes Carlos, que te digo uma verdade, sem pretensões de bas-bleu, que é de todas as misérias a mais lastimosa miséria das mulheres cultivadas.
Vasco retirou-se, e eu quisera antes que ele se não retirasse.
Disse-me meu irmão que aquele rapaz era uma inteligência superior, mas depravada pelos maus costumes. A razão por que ele viera a nossa casa era muito simples; encarregara-o seu pai de falar com meu irmão a respeito da remissão de uns foros.
Vasco passou nesse dia por debaixo das minhas janelas : fixou-me, cortejou-me, corei, e não me atrevi a segui-lo com os olhos, mas segui-o com o coração. Que suprema miséria, Carlos! Que renúncia tão impensada faz uma mulher da sua tranquilidade.
Voltou um quarto de hora depois : retirei-me, sem querer mostrar-lhe que o percebia; fiz-me distraída, por entre as cortinas, a contemplar a marcha das nuvens, e das nuvens descia um olhar precipitado sobre aquele indiferente que me fazia corar e sofrer. Viu-me, adivinhou-me, talvez, e cortejou-me ainda. Eu vi o gesto da cortesia, mas fingi-me e não lhe correspondi. Foi isto um heroísmo, não é verdade? Seria; mas eu tive remorsos, apenas ele desaparecera, de o tratar tão grosseiramente.
Demorei-me nestas puerilidades, meu amigo, porque não há nada mais grato para nós que a recordação dos últimos instantes de ventura a que se prendem os primeiros instantes da desgraça.
Aquelas linhas fastidiosas são a história da minha transfiguração. Aí principia a longa noite da minha vida.
Nos dias imediatos, a horas certas, vi sempre este homem. Concebi os perigos da minha fraqueza, e quis ser forte. Resolvi não vê-lo mais : revesti-me de um orgulho digno da minha imodesta superioridade às outras mulheres : sustentei este carácter dois dias; e, ao terceiro, era fraca como todas as outras.
Eu já não podia divorciar-me da imagem daquele homem, daquelas núpcias infelizes que meu coração contraíra. O meu instinto não era mau; porque a educação tinha sido boa; e, não obstante a humildade constante com que sempre sujeitei a minha mãe os meus inocentíssimos desejos, senti-me então, com mágoa minha, rebelde, e capaz de conspirar contra a minha família.
A frequente repetição dos passeios de Vasco não podia ser indiferente a meu irmão. Fui suavemente interrogada por minha mãe a tal respeito, respondi-lhe com respeito, mas sem temor. Meu irmão pressentiu a necessidade de matar aquela inclinação nascente, e expôs-me um quadro feio dos costumes péssimos de Vasco, e o conceito público em que era tido o primeiro homem a quem eu tão francamente me oferecia em namoro. Fui altiva com o meu irmão, e adverti-lhe que os nossos corações não tinham contraído a obrigação de se consultarem.
Meu irmão sofreu; eu também sofri; e, passado o momento da exaltação, quis cerrar a ferida que abrira naquele coração, desde a infância identificado com as minhas vontades.
Este sentimento era nobre; mas o do amor não era inferior. Se eu pudesse reconciliá-los ambos! Não podia, nem sabia fazê-lo! Uma mulher, quando principia a sua dolorosa tarefa do amor, não sabe mentir com aparências, nem calcula os prejuízos que pode evitar com um pouco de impostura. Eu fui assim. Deixei-me ir abandonada à correnteza da minha inclinação; e, quando forcei por me tornar tranquila, à isenção da minha alma, não pude vencer a corrente.
Vasco de Seabra perseguia-me : as cartas eram incessantes, e a grande paixão que elas exprimiam não era ainda igual à paixão que me faziam.
Meu irmão quis tirar-me de Lisboa, e minha mãe instava pela saída, ou pela minha entrada a toda a pressa nas Salésias. Informei Vasco das intenções de minha família.
No mesmo dia, este homem, que me pareceu um cavalheiro digno de outra sociedade, entrou em minha casa, pediu-me urbanamente a minha mãe, e foi urbanamente repelido. Eu soube-o, e torturei-me! Não sei do que seria então capaz a minha alma ofendida! Sei que foi capaz de tudo que pode caber em forças de uma mulher, contrariada nas ambições que nutrira, sozinha consigo, e conjurada a perder-se por elas.
Vasco, irritado num nobre estímulo, escreveu-me, como quem me pedia a mim a satisfação dos desprezos da minha família. Respondi-lhe que lha dava plena, como ele a exigisse. Disse-me que fugisse de casa, pela porta da desonra, e muito cedo entraria nela com a minha honra ilibada. Que desgraça! Naquele tempo até as pompas de estilo me seduziam!… Respondi que sim, e cumpri.
Meu amigo Carlos. Vai longa a carta, e a paciência é curta. Até ao correio que vem.
Henriqueta.” 
VI
Carlos relera, com sôfrega ansiedade, a singela expansão de uma alma que, talvez, nunca se abrira, se a não rasgasse o espinho de um martírio surdo. Henriqueta não escrevia assim uma carta a um homem, que pudesse consolá-la. Afeita a gemer no silêncio, e na solidão, tornava-se como egoísta das suas dores, e supunha que divulgá-las era esfolhar a mais bela flor da sua coroa de mártir. Escreveu, porque a sua carta era um mito de segredo e publicidade; porque a sua aflição não rastejava pelos queixumes lamuriantes e triviais de um grande número de mulheres, que não choram nunca a viuvez do coração, e lastimam sempre a demora das segundas núpcias; escreveu enfim, porque a sua dor, sem desonrar-se com uma publicidade estéril, interessava um coração, esposava uma simpatia, um sofrimento simultâneo, e, quem sabe mesmo, se uma nobre admiração! Há mulheres vaidosas - deixem-me assim dizer - da fidalguia do seu sofrer. Risonhas para o mundo, é muito sublime aquela angústia represada que só pode extravasar os sobejos do seu fel  numa carta anónima. Lacrimosas para si, e fechadas no círculo estreito que a sociedade lhes traça como o compasso inexorável das conveniências, essas sim, são duas vezes anjos despenhados!
Quem pudesse receber na taça de suas lágrimas algumas que aí se choram, e que a opulência material não enxuga, experimentaria consolações de um sabor novo. O padecimento que se esconde impõe o respeito religioso do augusto mistério desta religião universal, simbolizada pelo sofrimento comum. O homem que pudesse verter uma gota de orvalho na aridez de algum coração, seria o sacerdote providencial no tabernáculo de um espírito superior, que velasse a vida da terra para que tamanhas agonias não fossem estéreis na vida do céu. Não há na terra mais gloriosa missão.
Carlos, portanto, sentiu-se feliz deste orgulho santo que enobrece a consciência do homem que recebe o privilégio de uma confidência. Esta mulher, dizia ele, é para mim um ente quase fantástico. Alívios quais são os que eu posso dar-lhe?… Nem ao menos escrever-lhe!… E ela… Em que fará consistir o seu prazer?! Deus o sabe! Quem pode explicar, e mesmo explicar-se a singularidade de um proceder, às vezes, inconcebível?
No correio próximo, recebeu Carlos a segunda carta de Henriqueta :
“Que imaginaste, Carlos, depois da leitura da minha carta? Adivinhaste o resto, com presteza natural. Recordaste mil aventuras deste género, e amoldaste a minha história às legítimas consequências de todas as aventuras. Julgaste-me abandonada pelo homem com quem fugira, e chamaste a isto, talvez, uma dedução contida nos princípios.
Pensaste bem, amigo, a lógica da desgraça é essa, e o contrário dos teus juízos é o que se chama sofisma, porque eu estou em pensar que a virtude é o absurdo da lógica dos factos, é a heresia da religião das sociedades, é a aberração monstruosa das leis, que regem o destino do mundo. Achas-me metafísica de mais? Não te impacientes. A dor refugia-se nas abstracções, e encontra melhor pábulo na Loucura de Erasmo, que nas sisudas deduções de Montesquieu.
Minha mãe estava reservada para uma grande provação! Amparou-a Deus naquele golpe, e permitiu-lhe uma energia que não era de esperar. Vasco de Seabra bateu às portas de todas as igrejas de Lisboa, para me apresentar, como sua mulher, ao cura da freguesia, e achou-as fechadas. Éramos perseguidos, e Vasco não contava com a sua superioridade sobre meu irmão, que lhe fizera certa e infalível a morte, onde quer que a fortuna lho deparasse.
Fugimos de Lisboa para Espanha. Um dia entrou Vasco, alvoroçado, pálido e febril daquela febre de medo, que, realmente, era, até então, a única face prosaica do meu amante. Emalámos a toda a pressa, e partimos para Londres. É que Vasco de Seabra vira meu irmão em Madrid.
Vivemos  num bairro retirado de Londres. Vasco tranquilizou-se, porque lhe afiançaram de Lisboa a volta de meu irmão, que perdera as esperanças de encontrar-me.
Se me perguntas como era a vida íntima destes dois fugitivos, aos quais não faltava condição alguma das aventuras românticas de um rapto, dir-ta-ei em poucas linhas.
O primeiro mês das nossas núpcias de emboscada foi um sonho, uma febre, uma anarquia de sensações que, levadas ao extremo do gozo, pareciam tocar as raias do sofrimento. Vasco parecia-me um Deus, com as sedutoras fraquezas de um homem; queimava-me com o seu fogo, divinizava-me com o seu espírito; levava-me de mundo em mundo à região dos anjos onde a vida deve ser o êxtase, o arroubamento, a alienação com que a minha alma se derramava nas sensações ardentíssimas daquele homem.
No segundo mês, Vasco de Seabra disse-me pela primeira vez “que era muito meu amigo”. O coração pulsava-lhe vagaroso, os olhos não faiscavam electricidade, os sorrisos eram frios... Os meus beijos já os não aqueciam naqueles lábios! 'Sinto por ti uma sincera estima.' Quanto isto se diz, depois de um amor vertiginoso, que não sabe as frases triviais, a paixão está morta. E estava…
Depois, Carlos, falávamos em literatura, analisávamos as óperas, discutíamos os méritos dos romances, e vivíamos em academia permanente, quando Vasco me não deixava quatro, cinco e seis horas entregue às minhas inocentes recreações científicas.
Vasco cansara-se de mim. A consciência afirmou-me esta verdade atroz. Sufoquei a indignação, as lágrimas e os gemidos. Sofri sem limites. Abrasou-se-me na alma um inferno que me coava fogo nas veias. Não houve nunca mulher assim desgraçada!
E vivemos assim dezoito meses. A palavra “casamento” foi banida de nossas curtas conversações… Vasco desquitava-se de compromissos, que ele chamava parvos. Eu mesma, de bom grado, o remia de ser o meu escravo, como ele intitulava o néscio que se deixava algemar às obscuras superstições do sétimo sacramento… Foi aí que Vasco de Seabra encontrou a Sofia que te apresentei no Real Teatro de S. João, na primeira ordem.
Comecei então a pensar em minha mãe, em meu irmão, na minha honra, na minha infância, na memória deslustrada de meu pai, na tranquilidade de minha vida até ao momento em que me atirei à lama e salpiquei com ela a face da minha família.
Peguei na pena para escrever a minha mãe. Escrevera a primeira palavra, quando compreendi o vexame, a degradação e a vilania com que ousava apresentar-me àquela virtuosa senhora, com a face manchada de nódoas contagiosas. Repeli com nobreza esta tentação, e desejei, naquele instante, que minha mãe me julgasse morta.
Em Londres vivíamos numa hospedaria, depois que Vasco perdeu o medo a meu irmão. Viera aí hospedar-se uma família portuguesa. Era o visconde do Prado, e sua mulher, e uma filha. O visconde relacionou-se com Vasco, e a viscondessa e sua filha visitaram-me, tratando-me como irmã de Vasco.
Agora, Carlos, esquece-te de mim, e satisfaz a tua curiosidade na história desta gente, que já conheceste no camarote da segunda ordem.
Mas não posso agora dispor de mim… Saberás, alguma vez, a razão por que não pude continuar esta carta.
Adeus, até outro dia.
Henriqueta.”
Camilo Castelo Branco, in "Coisas que só eu sei", Editora Relógio D'Água.

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