quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Coisas que só eu sei I

Coisas que só eu sei - I
"Conto de Camilo Castelo Branco originalmente publicado em 1853, no jornal  político e industrial, O Portuense, em que Camilo colaborou regularmente até 1854.
"Coisas que só eu sei " foi depois republicado no jornal « A Concórdia» e mais tarde inserido na miscelânea  "Cenas Contemporâneas," onde se manteve mesmo depois da autonomização editorial de alguns contos e novelas que dela faziam parte.
Pelo interesse que qualquer obra de Camilo Castelo Branco desperta e por se tratar de um texto longo, será publicado em  quatro partes , em dias consecutivos.

I
"Na última noite do Carnaval, que foi justamente aos 8 dias do mês de Fevereiro, do corrente ano, pelas 9 horas e meia da noite entrava no Teatro de S. João, desta heróica e muito nobre e sempre leal cidade, um dominó de cetim.
Dera ele os dois primeiros passos no pavimento da plateia, quando um outro dominó de veludo preto veio colocar-se-lhe frente a frente, numa contemplação imóvel.
O primeiro demorou-se um pouco a medir as alturas do seu admirador, e virou-lhe as costas com indiferença natural.
O segundo, momentos depois, aparecia ao lado do primeiro, com a mesma atenção, com a mesma penetração de vista.
Desta vez o dominó-cetim aventurou uma pergunta naquele desgracioso falsete, que todos nós conhecemos :
— Não quer mais do que isso?
— Do qu'isso!…” - respondeu uma máscara que passava por casualidade, esganiçando-se numa risada que raspava o tímpano. - Olha do qu'isso!… Já vejo que és pulha!…”
E retirou-se repetindo - Do qu'isso… do qu'isso.
Mas o dominó-cetim não sofreu, ao que parecia, a menor contrariedade com esta charivari. E o dominó-veludo nem sequer acompanhou com os olhos o imprudente que viera embaraçar-lhe uma resposta digna da pergunta, fosse ela qual fosse.
O cetim (fique assim conhecido para evitarmos palavras e tempo, que é um preciosíssimo cabedal), o cetim, desta vez, encarou com mais alguma reflexão o veludo. Conjecturou suposições fugitivas, que se destruíam mutuamente. O veludo era forçosamente uma mulher. A pequenez do corpo, cuja flexibilidade o dominó não encobria; a delicadeza da mão, que protestava contra o ardil mentiroso de uma luva larga; a ponta de verniz, que um descuido, no lançar do pé, denunciara debaixo da fímbria do veludo, este complexo de atributos, quase nunca reunidos num homem, captaram as sérias atenções do outro, que, incontestavelmente, era um homem.
— Quem quer que sejas - disse o cetim -, não te gabo o gosto! Tomara eu saber o que vês em mim, que tanta impressão te faz!
— Nada - respondeu o veludo.
— Então, deixa-me, ou diz-me alguma coisa ainda que seja uma sensaboria, mais eloquente que o teu silêncio.
— Não te quero embrutecer. Sei que tens muito espírito, e seria um crime de lesa-Carnaval se te dissesse alguma dessas graças salobras, capazes de fazer calar para todo o sempre um Demóstenes de dominó.
O cetim mudou de opinião a respeito do seu perseguidor. E não admira que o recebesse com rudeza no princípio, porque, em Portugal, um dominó em corpo de mulher, que passeia “sozinha” num teatro, permite umas suspeitas que não abonam as virtudes do dominó, nem lisonjeiam a vaidade de quem lhe recebe o conhecimento. Mas a mulher em quem recai semelhante hipótese não conhece Demóstenes, nem diz lesa-Carnaval, nem aguça a frase com o adjectivo salobras.
O cetim arrependeu-se da aspereza com que recebera os atenciosos olhares daquela incógnita, que principiava a fazer-se valer como tudo aquilo que apenas se conhece por uma face boa. O cetim juraria, pelo menos, que aquela mulher não era estúpida. E, seja dito sem tenção ofensiva, já não era insignificante a descoberta, porque é mais fácil descobrir um mundo novo que uma mulher ilustrada. É mais fácil ser Cristóvão Colombo que Emílio Girardin.
O cetim, ouvida a resposta do veludo, ofereceu-lhe o braço, e gostou da boa vontade com que lhe foi recebido.
— “Conheço” - diz ele - “que o teu contacto me espiritualiza, belo dominó…”
— “Belo, me chamas tu!… É realmente uma leviandade que te não faz honra!… Se eu levantasse esta sanefa de seda, que me faz bonita, ficavas como aquele poeta espanhol que soltou uma exclamação de terror na presença de um nariz… que nariz não seria, santo Deus!… Não sabes essa história?”
— “Não, meu anjo!”
— “Meu anjo!… Que graça! Pois eu ta conto. Como o poeta se chama não sei, nem importa. Imagina tu que és um poeta, fantástico como Lamartine, vulcânico como Byron, sonhador como MacPherson e voluptuoso como Voltaire aos 60 anos. Imagina que o tédio desta vida chilra que se vive no Porto te obrigou a deixar no teu quarto a pitonisa descabelada das tuas inspirações, e vieste por aqui dentro a procurar um passatempo nestes passatempos alvares de um baile de Carnaval. Imagina que encontravas uma mulher extraordinária de espírito, um anjo de eloquência, um demónio de epigrama, enfim, uma destas criações miraculosas que fazem rebentar uma chama improvisa no coração mais de gelo, e de lama, e de toucinho sem nervo. Ris? Achas nova a expressão, não é assim? Um coração de toucinho parece-te uma ofensa ao bom senso anatómico, não é verdade? Pois, meu caro dominó, há corações de toucinho estreme. São os corações, que resumam óleo em certas caras estúpidas… Por exemplo… Olha este homem redondo, que aqui está, com as pálpebras em quatro refegos, com os olhos vermelhos como os de um coelho morto, com o queixo inferior pendente, e o lábio escarlate e vidrado como o bordo de uma pingadeira, orvalhada de banha de porco… Esta cara não te parece um grande rijão? Não crês que este baboso tenha um coração de toucinho?”
— “Creio, creio; mas fala mais baixo que o desgraçado está gemer debaixo do teu escalpelo…”
— “És tolo, meu cavalheiro! Ele entende-me lá!… É verdade, aí vai a história do espanhol, que tenho que fazer…”
— “Então queres deixar-me?”
— “E tu?… Queres que eu te deixe?”
— “Palavra de honra que não! Se me deixas, retiro-me…”
— “És muito amável, meu querido Carlos…”
— “Conheces-me?!”
— “Essa pergunta é ociosa. Não és tu Carlos!”
— “Já falaste comigo na tua voz natural?”
— “Não; mas começo a falar agora.”
E com efeito falou. Carlos ouviu um som de voz sonora, metálica e insinuante. Cada palavra daqueles lábios misteriosos saía vibrante e afinada como a nota de uma tecla. Tinha aquele não-sei-quê que só escuta nas salas onde falam mulheres distintas, mulheres que obrigam a gente a prestar fé aos privilégios, às prerrogativas, aos dons muito peculiares da aristocracia do sangue. Todavia, Carlos não se recordava de ter ouvido semelhante voz, nem semelhante linguagem.
“Uma aventura de romance!” dizia ele lá consigo, enquanto o dominó-veludo, conjecturando o enleio em que pusera o seu entusiasta companheiro, continuava a fazer gala do mistério, que é de todas as alfaias aquela que mais alinda a mulher! Se elas pudessem andar sempre de dominó! Quantas mediocridades em inteligência rivalizariam com Jorge Sand! Quantas fisionomias infelizes viveriam com a fama da mulher de Abal el-Kader!
— “Então quem sou eu?” - prosseguiu ela. - “Não me dirás?… Não dizes… Pois então, tu és Carlos, e eu sou Carlota… Fiquemos nisto, sim?”
— “Enquanto eu não souber o teu nome, deixa-me chamar-te de “anjo”.”
— “Como quiseres; mas sinto dizer-te que não és nada original! Anjo!… É um apelido tão safado como Ferreira, Silva, Souza, Costa… et cetera. Não vale a pena questionarmos : baptiza-me à tua vontade. Ficarei sendo o teu “anjo de Entrudo”. E a história?… Imagina que te possuías de um amor impetuoso por essa mulher, que fantasiaste linda, e insensivelmente lhe curvaste o joelho, pedindo-lhe uma esperança, um sorriso afectuoso através da máscara, um aperto convulsivo de mão, uma promessa, ao menos, de se mostrar um, dois, três anos depois. E essa mulher, cada vez mais sublime, cada vez mais literata, cada vez mais radiosa, protesta eloquentemente contra as tuas instâncias, declarando-se muito feia, indecentíssima de nariz, horrível até, e, como tal, pesa-lhe na consciência matar as tuas cândidas ilusões, levantando a máscara. Tu que a não crês, instas, suplicas, abrasas-te num ideal que toca as extremas do ridículo, e estás capaz de lhe dizer que te abolas o crânio com um tiro de pistola, se ela não levanta a cortina daquele mistério que te dilacera uma por uma as fibras do coração. Chamas-lhe Beatriz, Laura, Fornarina, Natércia, e ela diz-te que se chama Custódia, ou Genoveva para te aguar a poesia desses nomes, que, na minha humilde opinião, são completamente fabulosos. O dominó quer fugir-te ardilosamente, e tu não lhe deixas um passo livre, nem um dito espirituoso a outro, nem um lançar de olhos para as máscaras, que a fixam como quem sabe que está ali uma rainha, envolta naquele manto negro. Por fim, a tua perseguição é tal que a desconhecida Desdémona finge assustar-se, e sai contigo ao salão do teatro para levantar a máscara. Arfa-te o coração na ansiedade de uma esperança : sentes o júbilo do cego de nascimento, que vai ver o sol; estremeces como a criança a quem vão dar um bonito, que ela não viu ainda, mas imagina ser quanto o seu coração infantil ambiciona neste mundo… Ergue-se a máscara!… Horror!… Vês um nariz… Um nariz-pleonasmo, um nariz homérico, um nariz maio que o do duque de Choiseul, onde cabiam três jesuítas a cavalo!… Recuas!… Sentes despregar-se-te o coração das entranhas, coras de vergonha e foges desabridamente…”
— “Tudo isso é muito natural.”
— “pois não há nada mais artificial, meu caro senhor. Eu  conto-lhe o resto, que é o mais interessante para o mancebo que faz do nariz de uma mulher o termómetro de avaliar-lhe a temperatura do coração. Imagina, meu jovem Carlos, que saíste do teatro depois, e entraste na Águia de Ouro a comer ostras, segundo o costume dos elegantes do Porto. E quando pensavas, ainda aterrado, na aventura do nariz, te aparecia o fatídico dominó, e se assentava ao teu lado, silencioso e imóvel, como a larva das tuas asneiras, cuja memória procuravas delir na imaginação com os vapores do vinho… Perturba-se-te a digestão, e sentes contracções no estômago, que te ameaçam com o vómito. A massa enorme daquele nariz figura-se-te no prato em que tens a ostra, e já não podes levar à boca um bocado do teu apetitoso manjar sem um fragmento daquele fatal nariz à mistura. Queres transigir com o silêncio do dominó; mas não podes. A inexorável mulher aproxima-se de ti, e tu, com um sorriso cruelmente sarcástico, pedes-lhe que te não entorne com o nariz o copo de vinho. Achas isto natural, Carlos?”
— “Há aí crueldade de mais… O poeta devia ser mais generoso com a desgraça, porque a missão do poeta é a indulgência não só para as grandes afrontas, mas até para os grandes narizes.”
— “Será; mais o poeta, que transgrediu a sublime missão de generosidade para com as mulheres feias, vai ser punido. Imagina que aquela mulher, pungida pelo sarcasmo, levanta a máscara. O poeta ergue-se, e vai fugir com grande escândalo do dono da casa, que naturalmente tem a sorte do boticário de Nicolau Tolentino. Mas… Vingança do céu!… aquela mulher ao levantar a máscara arranca do rosto um nariz postiço, e deixa ver a mais famosa cara que o céu alumia há seis mil anos! O espanhol quer ajoelhar àquela dulcíssima visão de um sonho, mas a nobre andaluza repele-o com um gesto, onde o desprezo está associado à dignidade mais senhoril.
II
Carlos cismava na aplicação da anedota, quando o dominó lhe disse, adivinhando-lhe o pensamento :
— “Não creias que eu seja mulher de nariz de cera, nem me suponhas capaz de assombrar-te com a minha fealdade. A minha modéstia não vai tão longe… Mas, meu pacientíssimo amigo, há em mim um defeito pior que um nariz enorme : não é físico nem moral; é um defeito repulsivo e repelente : é uma coisa que eu não sei exprimir-te com a linguagem do inferno, que é a única e mais eloquente que eu sei falar, quando me lembro que sou assim defeituosa!”
— “És uma enigma!…” - atalhou Carlos, embaraçado, e convencido de que encontrara um tipo maior que os moldes tacanhos da vida romanesca em Portugal.
— “Sou, sou!…” - acudiu ela com rapidez - “sou aos meus próprios olhos um dominó, um continuado carnaval de lágrimas… Está bom! Não quero tristezas… Se me tocas na tecla do sentimentalismo, deixo-te. Eu não vim aqui fazer papel de dama dolorida. Soube que estavas aqui, procurei-te, esperei-te mesmo com ansiedade, porque sei que és espirituoso, e podias, sem prejuízo da tua dignidade, ajudar-me a passar algumas horas de ilusão. Fora daqui, tu ficas sendo Carlos, e eu serei sempre uma incógnita muito grata ao seu companheiro. Agora acompanha-me : vamos ao camarote 10 da segunda ordem. Conheces aquela família?”
— “Não.”
— “É uma gente da província. Não digas tu nada; deixa-me falar a mim, e verás que não passas mal… É muito orgulho, não achas?”
— “Não acho, não, minha querida; mas eu antes queria não desperdiçar estas horas porque fogem. Tu vais falar, mas não é comigo. Sabes que tenho ciúmes de ti?”
— “Sei que tens ciúmes de mim… Sabes tu que eu tenho um profundo conhecimento do coração humano? Já vês que não sou a mulher que imaginas, ou quererias que eu fosse. Não comeces a desvanecer-te com uma conquista esperançosa. Faz calar o teu amor-próprio, e emprega a tua vaidade em bloquear com ternuras calculadas uma inocente a quem possas fazer feliz, enquanto a enganas…”
— “Julgas, portanto, que te minto!…”
— “Não julgo, não. Se mentes a alguém é a ti próprio : bem vês que não te creio.. Tempo perdido! Anda, vem comigo, senão…”
— “Senão.. O quê?”
— “Senão… Olha.”
E a melindrosa desconhecida largou-lhe o braço com delicadeza, e retirara-se, apertando-lhe a mão.
Carlos, sinceramente comovido, apertou aquela mão, com o frenesi apaixonado de um homem que quer suster a fuga da mulher por quem se mataria.
— “Não,” - exclamou ele com entusiasmo - “não me fujas, porque me levas a esperança mais bela que o meu coração concebeu. Deixa-me adorar-te, sem te conhecer!… Não levantes nunca esse véu… Mais deixa-me ver a face da tua alma, que deve ser a realidade de um sonho de vinte e sete anos…”
— “Estás dramático, meu poeta! Eu sinto realmente a minha pobreza de palavras garrafais… Queria ser uma vestal de estilo fervente para sustentar o fogo sagrado do diálogo… O monólogo dever cansar-te, e a tragédia desde Sófocles até nós não pode dispensar uma segunda pessoa…”
— “És um prodígio…”
— “De literatura grega, não é verdade? Ainda sei muitas outras coisas da Grécia. A Lais também era muito versada, e repetia as rapsódias gregas com um garbo sublime; mas a Lais era… Sabes tu o que ela era?… E serei eu o mesmo? Já vês que a literatura não é sintoma de virtudes dignas da tua afeição…”
Tinham chegado ao camarote na segunda ordem. O dominó-veludo bateu, e a porta foi, como devia ser, aberta.
A família que ocupava o camarote compunha-se de muitas pessoas, sem tipo, vulgaríssimas, e prosaicas de mais para captarem a atenção de um leitor avesso a trivialidades. Todavia, estava aí uma mulher que valia um mundo, ou coisa maior que o mundo - o coração de um poeta.
As rosas purpurinas dos vinte anos tinham-lhe sido crestadas pelo hálito abrasado dos salões. A placidez extemporânea de uma vida agitada via-se-lhe no rosto protestando não contra os prazeres, mas contra a debilidade de um sexo que não pode acompanhar com a matéria as evoluções desenfreadas do espírito. Mas que olhos! Mas que vida! Que electricidade no frenesi daquelas feições! Que projecção de uma sombra azulada lhe descia das pálpebras! Era uma mulher em cujo rosto transluzia a soberba, talvez demasiada, da sua superioridade.
O dominó-veludo estendeu-lhe a mão, e chamou-lhe Laura.
Seria Laura? É certo que ela estremeceu, e recuou a mão repentinamente como se uma víbora lha tivesse mordido.
Aquela palavra simbolizava um mistério dilacerante : era a senha de uma grande luta em que a pobre senhora devia sair escorrendo sangue.
— “Laura,” - repetiu o dominó - “não me apertas a mão? Deixa-me ao menos sentar-me perto… Muito perto de ti… Sim?”
O homem que mais próximo estava de Laura afastou-se urbanamente para deixa aproximar uma máscara, que denunciara o sexo pela voz, e a distinção pela mão.
E Carlos nunca mas despregou os olhos daquela mulher, que revelava a cada instante um pensamento nas variadas fisionomias com que queria disfarçar a sua angústia íntima.
A desconhecida fez sinal a Carlos para que se aproximasse. Carlos, enleado nos embaraços naturais daquela situação toda para ele enigmática, recusava cumprir as imperiosas determinações de uma mulher que parecia calcar todos os melindres. Os quatro ou cinco homens, que pareciam familiares de Laura, não deram muita importância aos dominós. Conjecturaram, primeiro, e quando supuseram que tinham conhecido as visitas, deixaram em plena liberdade as duas mulheres, que se falavam de perto como duas amigas íntimas. O cavalheiro passou por um tal Eduardo, e a desconhecida tiveram-na por uma D. Antónia.
Laura humedecia os lábios com a língua. As surpresas pungentes produzem uma febre, e aquecem o mais belo calculado sangue-frio. A incógnita, profundamente conhecedora da situação da sua vítima, falou ao ouvido de Carlos :
— “Estuda-me aquela fisionomia. Eu não estou em circunstâncias de ser Max… Sofro demasiado para contar as pulsações deste coração. Se te sentires condoído desta mulher, tem compaixão de mim, que sou mais desgraçada que ela.”
E voltando-se para Laura :
— “Procuro, há quatro anos, uma ocasião de prestar homenagem à tua conquista. Deus, que é Deus, não despreza os incensos do verme da terra, nem esconde à vista dos homens a sua fronte majestosa num manto de estrelas. Tu, Laura, que és mulher, embora os homens te chamem anjo, não desprezarás vaidosa a homenagem de uma pobre criatura, que vem depor a teus pés o óbolo sincero da sua adoração.”
Laura não levantava os olhos do leque; mas a mão, que o sustinha, tremia; e os olhos, que o contemplavam, pareciam absortos num quadro aflitivo.
E o dominó continuou :
— “Foste muito feliz, minha cara amiga! Eras digna de o ser. Colheste o fruto abençoado da abençoada semente que o Senhor fecundou no teu coração de pomba!… Olha, Laura, deves dar muitas graças à Providência, que velou os teus passos no caminho do crime. Quando devias resvalar no abismo da prostituição, subiste, radiante de virtudes, ao trono das virgens. O teu anjo da guarda foi-te leal! És uma excepção a milhares de desgraçadas, que nasceram em estofos de damasco, cresceram em perfumes de opulência. E, quanto mais, minha ditosa Laura, tu nasceste nas palhas da miséria, cresceste nos andrajos da indigência, ainda viste com os olhos da razão a desgraça sentada à cabeceira do teu leito… e, contudo, eis-te aí rica, honrada, formosa, e soberba de encantos, com que podes insultar toda essa turba de mulheres, que te admiram!… Há tanta mulher infeliz!… Queres saber a história de uma?…”
Laura, contorcendo-se como se fosse de espinhos a cadeira em que estava, não tinha ainda balbuciado um monossílabo; mas a urgente pergunta, duas vezes repetida, do dominó, obrigou-a a responder afirmativamente com um gesto.
— “Pois bem, Laura, conversemos amigavelmente.”
Um dos indivíduos, que estava presente, e ouvira pronunciar Laura, perguntou à mulher que assim era chamada :
— “Elisa, ela chama-te Laura?”
— “Não, meu pai…” - respondeu Elisa, titubeando.
— “Chamo Laura, chamo… e que tem lá isso, Sr. Visconde?” - atalhou a incógnita, com afabilidade, erguendo o falsete para ser bem ouvida. - “É um nome de Carnaval, que passa com os dominós. Quarta-feira de cinza torna a filha de V. Exa. a chamar-se Elisa.”
O visconde sorriu-se, e o dominó continuou, baixando a voz, e falando naturalmente :
III
— “Henriqueta…”
Esta palavra foi um abalo que fez vibrar todas a fibras de Elisa. O rosto incendiou-se-lhe daquele encarnado do pudor ou da raiva. Esta sensação violenta não podia ser desapercebida. O visconde, que parecia estranho à conversação íntima daquelas supostas amigas, não o pôde ser à agitação febril de sua filha.
— “Que tens, Elisa?!” - perguntou ele sobressaltado.
— “Nada, meu pai… Foi um ligeiro incómodo… Estou quase boa…”
— “Se queres respirar vamos ao salão, ou vamos para casa…”
— “Antes para casa” - respondeu Elisa.
— “Eu vou mandar buscar a sege” - disse o visconde; e retirou-se.
— “Não vás, Elisa…” - disse o dominó, com uma voz imperiosa, semelhante a uma ameaça inexorável. - “Não vás… Porque, se vais, contarei a todo o mundo uma história que só tu hás-de-saber. Este outro dominó, que tu não conheces, é um cavalheiro : não temas a menor imprudência.”
— “Não me martirizes!” - disse Elisa. - “Eu sou infeliz demais, para ser flagelada com a tua vingança… Tu és Henriqueta, não és?”
— “Que te importa a ti saber quem eu sou?!…”
— “Importa muito… Sei que és desgraçada!… Não sabia que vivias no Porto; mas palpitou-me o coração que eras tu, apenas me chamaste Laura.”
O visconde entrou afadigado, dizendo que a sege não podia tardar, e convidando a filha para dar alguns passeios no salão do teatro. Elisa satisfez a carinhosa ansiedade do pai, dizendo que se sentia boa, e pedindo-lhe que se demorasse até mais tarde.
— “Onde julgavas tu que eu existia? No cemitério, não é assim?” - perguntou Henriqueta.
— “Não : sabia que vivias, e profetizava que devia encontrar-te… Que história me queres tu contar?… A tua? Essa já eu sei… Imagino-a… Tens sido muito infeliz… Olha, Henriqueta… Deixa-me dar-te esse tratamento afectuoso com que nos conhecemos, com que fomos tão amigas, alguns fugitivos dias, no tempo em que o destino nos marcava com o mesmo estigma de infortúnio…”
— “O mesmo… Não!…” - atalhou Henriqueta.
— “O mesmo, sim, o mesmo… E se me forças a contradizer-te, direi que invejo a tua sorte, seja ela qual for…”
Elisa chorava, e Henriqueta emudecera. Carlos estava impaciente pelo desfecho desta aventura, e desejava, ao mesmo tempo, reconciliar estas duas mulheres, e fazê-las amigas, sem saber a razão por que eram inimigas. A beleza impõe-se à compaixão. Elisa era bela, e Carlos era de uma sensibilidade extremosa. A máscara poderia ser, mas a outra era um anjo de simpatia e formosura. O espírito gosta do mistério que esconde o belo; mas decide-se pela beleza real, sem mistério.
Henriqueta, depois de alguns minutos de silêncio, durante os quais não era possível avaliar-lhe o coração pela exterioridade da fisionomia, exclamou com ímpeto, como se despertasse de um sonho, daqueles íntimos sonhos de dor, em que a alma se reconcentra :
— “O  teu marido?”
— “Está em Londres.”
— “Há quanto tempo o não viste?”
— “Há dois anos.”
— “Abandonou-te?”
— “Abandonou-me.”
— “E tu?… Abandonaste-o?”
— “Não concebo a pergunta…”
— “Ainda o amas?”
— “Ainda…”
— “Com paixão?”
— “Com delírio…”
— “Escreves-lhe?”
— “Não me responde… Despreza-me, e chama-me Laura.”
— “Elisa!” - disse Henriqueta, com a voz trémula, e apertando-lhe a mão com entusiasmo nervoso - “Elisa! Perdoo-te… És bem mais desgraçada que eu, porque tens um homem que pôde chamar-te Laura, e eu não tenho senão um nome… Sou Henriqueta! Adeus.”
Carlos pasmou do desenlace cada vez mais embrulhado daquele prólogo de um romance. Henriqueta tomou-lhe o braço com precipitação, e saiu do camarote baixando levemente a cabeça aos cavalheiros, que se davam tratos por adivinhar o segredo daquela conversa.
— “Não pronuncies o meu nome em voz alta, Carlos. Sou Henriqueta; mas não me atraiçoes, se queres a minha amizade.”
— “Como hei-de eu atraiçoar-te, se não sei quem és? Podes chamar-te Júlia em vez de Henriqueta, que, nem por isso te fico conhecendo mais… Tudo mistérios! Tens-me, há mais de uma hora, num estado de tortura! Eu não sirvo para estas emboscadas… Diz-me quem é aquela mulher…”
— “Não viste que é D. Elisa Pimentel, filha do visconde do Prado?”
— “Não a conhecia…”
— “Então que mais queres que eu te diga?”
— “Muitas outras coisas, minha ingrata. Quero que me digas quantos nomes tem aquela Laura, que se chama Elisa. Fala-me do marido daquela mulher…”
— “Eu te digo… O marido daquela mulher chama-se Vasco de Seabra.. Estás satisfeito?”
— “Não… Quero saber que relações tens tu com esse Vasco ou com aquela Laura?”
— “Não saberás mais nada, se fores impaciente. Imponho-te mesmo um profundo silêncio a respeito do que ouviste. À menor pergunta que me faças, deixo-te ralado por essa curiosidade indiscreta, que te faz parecer uma mulher de soalheiro. Eu contraí contigo a obrigação de te contar a minha vida?”
— “Não; mas contraístes com a minha alma a obrigação de eu me interessar na tua vida e nos teus infortúnios desde este momento.”
— “Obrigado, cavalheiro! - Juro-te uma sincera amizade. - Hás-de ser o meu confidente.
Estava, outra vez, na plateia. Henriqueta aproximou-se do quarto camarote da primeira ordem, firmou o pé de fada na frisa, segurou-se ao peitoril do camarote, e travou conversação com a família que o ocupava. Carlos acompanhou-a em todos esses movimentos, e preparou-se para um novo enigma.
Segundo o costume, as mãos de Henriqueta passaram por uma análise rigorosa. Não era possível, porém, fazê-la tirar a luva da mão esquerda.
— “Dominó, porque não deixas ver este anel?” - perguntava uma senhora de olhos negros, e vestida de negro, como uma viúva rigorosamente enlutada.
— “Que te importa o anel, minha querida Sofia!?… Falemos de ti, aqui em segredo. Ainda vives melancólica, como a Dido da fábula? Fica-te bem essa cor de esquifes, mas não sustentas o carácter artístico com perfeição. A tua tristeza é fingida, não é verdade?”
— “Não me ofendas, dominó, que eu não te mereço essa injúria… A desgraça nunca se finge…”
— “Disseste uma verdade, que é a tua condenação. Eu, se tivesse sido abandonada por um amante, não vinha aqui dar-me em espectáculo a um baile de máscaras. A desgraça não se finge, é verdade; mas a saudade esconde-se para chorar, e a vergonha não se ostenta radiosa desse sorriso que te brinca nos lábios… Olha, minha amiga, há umas mulheres que nasceram para esta época, e para estes homens. Há outras que a Providência caprichosa atirou a esta geração corrompida como os imperadores romanos atiravam os cristãos ao anfiteatro dos leões. Felizmente que tu não és das segundas, e sabes harmonizar com o teu génio folgazão e desleixado uma hipocrisia que te vai bem num sofá de penas, onde tu recostas com um perfeito conhecimento das atitudes lânguidas das mulheres cansadas do Balzac. Eu, se fosse homem, amava-te por desfastio!… És a única mulher para quem este país é pequeno. Devias conhecer o Regente, e Richelieu, e os abades de Versalhes, e as filhas do Regente, e as Heloísas desenvoltas dos abades, e as aias da duquesa do Maine… et cetera. Isto por cá é pequeníssimo para as Frineias. Uma mulher da tua índole morre asfixiada neste ambiente pesado em que o coração, nas suas expansões românticas, encontra, quase sempre, a mão burguesa das conveniências a tapar-lhe os respiradouros… Parece que te enfadas de mim?”
— “Não te enganas, dominó… Obsequeias-me se me não deres o incómodo de te mandar retirar.”
— “És muito delicada, minha nobre Sofia!… Já agora, porém, deixa-me dar-te uma ideia mais precisa desta mulher que te enfada, e que, apesar das tuas injustiças, se interessa na tua sorte. Diz-me cá… Tens uma sincera paixão, uma saudade pungente por aquele belo capitão de cavalaria que te deixou, tão sozinha, com as tuas agonias de amante?”
— “Que te importa?…”
— “És cruel! Pois não ouves o tom sentimental com que te faço esta pergunta?… Quantos anos tens?…”
— “Metade e outros tantos…”
— “A resposta não me parece tua… Aprendeste essa vulgaridade com a filha do teu sapateiro?… Ora olha : tu tens 38 anos, a não ser mentiroso o assento de baptismo, que se lê no cartório da freguesia dos Mártires em Lisboa.
Aos vinte anos amavas com ternura um tal Pedro Sepúlveda. Aos vinte e cinco, amavas com paixão, um tal Jorge Albuquerque. Aos trinta, amavas com delírio, um tal Sebastião de Meireles. Aos trinta e cinco, amavas, em Londres, com frenesi um tal… Como se chamava… Não me recordo.. Diz-me, por piedade, o nome desse homem, que, senão, fica o meu discurso sem o efeito do drama… Não dizes, má?… Ai!… Eu tenho aqui a mnemónica…”
Henriqueta tirou a luva da mão esquerda, e deixou ver um anel… Sofia estremeceu, e corou até às orelhas.
— “Já te recordas?… Não cores, minha querida amiga… Que não fica bem ao teu carácter de mulher que conhece o mundo pela face positiva… Deixa-me agora arredondar o período, como dizem os literatos… Ora tu, que amaste desenfreadamente cinco antes do sexto homem, como queres fingir, debaixo desse vestido negro, um coração varado de saudades e órfão de consolações?… Adeus, minha bela hipócrita…”
Henriqueta desceu elegantemente do seu poleiro, e deu o braço a Carlos." (cont.)
Camilo Castelo Branco, in "Coisas que só eu sei", Editora Relógio D'Água.(Texto-base digitalizado pelo voluntário: Jean-Luc Dubas Matoury) .

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