Teixeira Gomes - Dias de Londres
por Eugénio Lisboa
"No dia 7 de Abril de 1911, à tarde, isto é, seis meses
após a proclamação da República em Portugal, Manuel Teixeira-Gomes chega a
Londres, onde irá ser acreditado como Ministro de Portugal, na capital
britânica.
A escolha do escritor
algarvio, doublé de homem de negócios de considerável fortuna, não fora
pacífica. O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Bernardino Machado, procurara
outro nome que correspondesse, segundo ele, a um maior número de qualidades
adequadas ao cargo. Estas qualidades definidoras do “perfeito diplomata” têm
sido motivo de especulação, ao longo dos séculos e, por vezes, o caderno de
encargos previsto chega a roçar o delírio. Ottaviano Maggi, por exemplo,
publicou em 1596 uma tese intitulada De Legato, na qual sustentava que
um enviado diplomático deveria ter formação teológica, conhecimento dos
filósofos gregos e ser especialista nas ciências matemáticas, incluindo-se
nestas a arquitectura e a física; deveria ainda ser competente em direito,
música e poesia e ser especialmente conhecedor de ciência militar; sem esquecer
proficiência em Grego, Latim, Francês, Alemão, Espanhol e Turco, deveria, além
disso, ser aristocrata, de nascimento, rico e bem parecido. Está-se mesmo a ver
que nem Teixeira-Gomes nem ninguém do seu tempo ou de qualquer outro tempo
poderia jamais responder positivamente a um tão sumptuoso caderno de encargos.
Teixeira-Gomes, à primeira
vista, não mostrava sequer o perfil mínimo requerido: pouco versado em política
– que lhe não interessava por aí além -, sem curso superior concluído, homem de
negócios activo e eficaz mas também viajante compulsivo e impecável gozador dos
“alimentos terrestres”, imoralista assumido, mas de maneiras irrepreensíveis,
que lhe davam o perfil de “a very distinguished gentleman”, que, todavia, se
não exprimia em inglês, escritor aos quarenta anos e criador, na década que precedeu a sua
nomeação para Londres, de uma espécie de produto literário que não apontava
para o perfil mais exigido ao diplomata (elegante, hedonista, desbocado e
frontal, assumidamente “sem moral nenhuma”), o autor de Sabina Freire
(1905) ofereceria pois algum fundamento à relutância de Benardino Machado. Mas
um homem arguto e experimentado nas lides da diplomacia, o Ministro da
Grã-Bretanha em Lisboa, Sir Lancelot Carnegie, acolheu calorosamente o nome de
Teixeira-Gomes, “quase garantindo”, informa Norberto Lopes, na sua biografia do
escritor- diplomata, “[quase garantindo] que o seu governo daria, com
satisfação, o desejado agrément.”
O famoso – e notório –
diplomata Harold Nicholson, no seu livro Diplomacy, inventaria, mais
modestamente, apenas quatro qualidades requeridas por um bom diplomata:
veracidade, precisão, calma e despretensiosidade. São poucas, mas boas. De
notar, sobretudo, uma que parece desmentir a cínica sabedoria corrente:
refiro-me à “veracidade”, qualidade de que o diplomata português usaria
sempre, recusando, na sua bagagem, as clássicas “manha” e “duplicidade”,
vulgarmente tidas como fazendo parte do equipamento diplomático.
Teixeira-Gomes, de-resto, faria uso sistemático das quatro vantagens enumeradas
por Nicholson: veracidade, precisão, calma e despretensiosidade. Elas
seriam instrumentais na sua final e decisiva aceitação por parte do
establishment inglês.
Como tantos, antes e depois
dele, Teixeira-Gomes não pensava que o posto em Londres viesse a ser de
trabalho absorvente. Talvez ali pudesse dar continuidade aos trabalhos
literários a que se entregara, com prazer, nos últimos dez anos. Como se
enganava! A sinecura entrevista afinal não o era e o homem de acção, que também
havia nele, aliado ao profissional consciencioso, iria abater uma média de
dezoito horas de trabalho por dia, com a luz do seu gabinete na missão de
Londres ainda acesa bem para além da meia-noite. De tudo isto dá o diplomata
conta, numa admirável carta que, com data de 20 de Abril de 1927, escreve de
Túnis, a João de Barros: “Pensava, no entanto, a caminho da Inglaterra”,
observa o escritor, “que a missão não seria de tal modo absorvente, que me
impedisse de continuar os trabalhos literários, a que por via de regra, e por
tradição, quase todos os diplomatas se dedicam e pensava, sobretudo, em
terminar um livro, Londres Maravilhosa, cujo primeiro capítulo aparecera
no único número da revista intitulada Vida Nossa ou coisa semelhante –
que o Fialho publicara. Mas depressa me desiludi ao perceber a situação em que
tinha de me desenvencilhar, e
compreendia a hostilidade da corte, do governo, da imprensa, e do público
inglês; as maquinações do ilustre, mundano e influente Soveral, a acção de
presença de D.Manuel e D. Amélia; e as intrigas dos numerosíssimos emigrados
realistas, que tinham assentado barraca em Londres, entre os quais havia gente
activa e inteligente, e que dispunha de dinheiro, e forma de o empregar em
proveitosa propaganda.”
Eram, de facto, três
obstáculos de monta: a Inglaterra e os ingleses, com o seu peculiar modo de
ser; a monarquia inglesa e os realistas portugueses emigrados em Londres
(incluindo o ex-rei e o ex-ministro de Portugal em Londres, Marquês de
Soveral). Mesmo para um espírito cosmopolita e culto, como Teixeira-Gomes, o
solo inglês não era o seu habitat preferido: dera-se sempre melhor com a luz, o
colorido e a vivacidade dos países do meio-dia: Itália, Espanha e Portugal,
desde que, por Portugal, se entendesse, sobretudo, o Algarve. Os ingleses,
enfim, tinham, é claro, qualidades. Mas era uma “gente singular” – de uma
singularidade diferente daquela que o escritor descodificara no seu conto
célebre. Não gostavam de mudanças e os portugueses acabavam de mudar tudo em
Portugal, de havia seis meses àquela parte. “Deplorar a mudança é o imutável
hábito de todos os ingleses”, disse-o um inglês, Raymond Postgate. Primeiro
agravo. Havia também, é provável, a comida: o diplomata português não era um
comilão, mas tinha o paladar sofisticado e exigente dos alados fruidores dos
alimentos terrestres – que trincara, com gosto, em Portugal e na Itália. Ora a
Inglaterra disse-o já Jackie Mason, “é o único país do mundo em que a comida á
mais perigosa do que o sexo.”
Havia também a conversa:
embora distinto de maneiras e discreto q.b., Teixeira-Gomes era português e
algarvio – amava o comércio social e, em viagem pelo estrangeiro, nunca lhe
custou entabular relações com estranhos ou, sendo necessário, relações íntimas
com estranhas. Ora, disse-o o poeta alemão, Heinrich Heine, “o silêncio pode
definir-se como uma conversa com um inglês.” Havia também, naquela gente, o
recato, a famosa reserva, o gosto exagerado da privacidade, a recusa quase
mórbida do brilho e do talento cintilante: “Os ingleses admiram instintivamente
quem quer que não tenha talento e seja modesto a esse respeito”, dizia esse
escritor, grande crítico de teatro e de literatura, e espírito pecaminosamente
fulgurante, que se chamou James Agate.
Ainda um ponto: o trincador
dos frutos da terra, habituado a viver em boas moradias e a frequentar, em
viagem, hotéis confortáveis, estranharia não pouco o inglês, uma criatura que,
nas palavras escarninhas de George Bernard Shaw, “pensa estar a ser virtuoso
quando está simplesmente a sentir-se inconfortável”.
Havia, no outro prato da
balança, alguns sinais “mais”. Ao longo da obra do diplomata-escritor, são
várias as passagens dedicadas às diversas seduções da capital britânica. Nas Cartas
sem Moral Nenhuma, por exemplo, refere-se à “relva – esse «green» túpido e
macio, que é uma das incomparáveis especialidades inglesas” e, ainda neste mesmo
livro, refere a cidade de Johnson, em termos inesquecíveis: “Com um francês da
minha amizade, [ao tempo destemido decadentista e faustoso deformador à maneira
de Beardsley – hoje de um classicismo cristalino -] me encontrei a miúdo em
Londres no decorrer de dum Verão abafado, sufocante, afumegado, como só nas
fabulosamente povoadas margens do Tamisa a humanidade suporta. Nem por isso a
babilónica metrópole – Londres estarrecedora, Londres incalculavelmente
múltipla, desvairadamente infinita, misteriosa, tentacular, hermética,
derradeiro refúgio da Esperança que o
mundo inteiro baldasse, etc. [...] – nem por isso perdia qualquer das suas
seduções nas inumeráveis, iriadas cambiantes da arte e da luxúria.” Não devem
também esquecer-se as páginas admiráveis com que abre o livro Londres
Maravilhosa, nas quais, depois de tecer uma comparação bem recortada entre
a esbelteza cartesiana e ampla de Paris, e as seduções ínvias, tortuosas e
perturbantes de Londres, acaba por concluir: “Toda a gente gosta de discretear
a respeito de Paris; eu prefiro lembrar-me de Londres...”
Isto, em resumo muito
resumido, quanto à Inglaterra e os ingleses. Depois, havia a monarquia. Os
ingleses têm o hábito intrigante de achar que, sem a monarquia, não há uma
Inglaterra viável. O mais extraordinário é que muito trabalhista de topo de
gama partilha deste dogma bizarro. Os ingleses agarram-se à monarquia como a um
hábito perverso. Já no final do século XX, o actual príncipe Carlos – eterno
rei adiado – achava maneira original e desastrada de defender o regime, dizendo
que “a monarquia é a profissão mais antiga do mundo.” E ao simpático Rei Jorge
VI, que tão galhardamente se comportou durante a 2ª Guerra Mundial,
escorregou-lhe um dia o pèzinho, sem se aperceber bem do alcance do que dizia:
“Nós [a família real] não somos uma família: somos uma firma.” Como firma bem
gerida, ela cuida, fundamentalmente, dos seus próprios interesses, pondo-os
ocasionalmente acima dos interesses nacionais. O que não perturba, por aí além,
o país que tão bem glosa os “british interests”, pondo-os acima dos interesses da
humanidade em geral e até da ética mais corrente. É verdade que a pompa e
circunstância, tão bem orquestradas pelo compositor Elgar, mais do que
deslumbrar os inocentes, serve também como boa forma de rendimento: os pacóvios
de todo o mundo acotovelam-se diariamente às portas do palácio de Buckingham, para
assistirem ao patusco render da guarda e, se possível, espreitarem a fímbria de
um vestido de Sua Majestade. Seja como for, a monarquia é, ali, para ser levada
a sério. Como muito bem postulou Lord Birkenhead, “nos homens como nos cavalos,
o princípio hereditário quer dizer alguma coisa.” O que terá levado o
inevitável e sempre arreliador George Bernard Shaw a retorquir: “Os reis não
nascem reis, são fabricados por alucinação artificial.”
Foi contra esta “alucinação”
que teve de confrontar-se Teixeira-Gomes, representante de um país que acabara
de mandar pela borda fora uma monarquia que tantos amigos contava na congénere
inglesa. Disse um francês que “uma raça
de deuses e de deusas desceu do Olimpo aterrando na Inglaterra.” Estes deuses e
deusas, ainda por cima, ricos e com “interesses” em Portugal, não acharam graça
nenhuma à mudança de regime nem à entrega do poder aos fraldiqueiros da
República: ficavam ameaçados, de uma só vez, o dinheiro e as boas maneiras.
E chegamos ao terceiro
obstáculo que o diplomata português teve que afrontar: os realistas portugueses
emigrados em Londres, a que Teixeira-Gomes se refere, na aludida carta de 20 de
Abril de 1927, dirigida a João de Barros: o próprio ex-rei D. Manuel, D. Amélia
e, entre os vários monárquicos que por ali se agitavam, intrigavam e
conspiravam, o ex-Ministro de Portugal em Londres, Luis Maria Pinto de Soveral,
marquês, competente, inteligente, brilhante e estragado com mimos.
Na primeira biografia de
fundo dedicada ao grande diplomata português a quem Teixeira-Gomes sucedeu,
Paulo Lowndes Marques, com objectividade, brilho e humor, recria, para nós, O
Marquês de Soveral – Seu Tempo e Seu Modo. Dele recolho esta curta passagem
acutilantemente definidora: “Soveral, hábil e inteligente, sabia fazer grande
uso da sua capacidade de criar relações próximas, até íntimas, com os grandes
do seu tempo, em especial com as figuras reais. Foi o seu acesso rápido aos
centros do poder que lhe deu o seu grande prestígio profissional e o tornou um
instrumento tão útil como importante da política externa do seu país.
Verificámos já essa habilidade em Berlim, como em Madrid, e também em Lisboa,
onde se revelou tão íntimo de todos, nomeadamente do rei D. Carlos. Mas
Londres, foi onde Soveral sublimou esta «arte», chegando ao cúmulo de se tornar
o amigo mais próximo do príncipe de Gales, mais tarde, em 1901, rei Eduardo
VII. Na verdade, era não só amigo no sentido convencional, como companheiro de
muitas pândegas e aventuras, sobretudo no capítulo feminino. Eram ambos exímios
coureurs de femmes, não só conquistadores de mulheres bonitas da alta
sociedade, como clientes das afamadas «maisons closes» da Belle Époque
parisiense.” O que, se era geralmente aceite e confirmado, lhe suscitava também
algumas invejas e remoques, na imprensa, onde era alcunhado de “the blue
monkey”. Eram farpas ocasionais mas, de um modo geral, o marquês era adulado,
admirado e invejado. Carlos Lima Mayer, citado por Lowndes Marques, escrevia,
de Londres a um amigo: “Luiz Soveral”, dizia, “é um autêntico “enfant miracle”:
está a caminho de colocar na lapela toda a alta sociedade de Londres [...]. É
íntimo do Ritz, cozinheiro do Jockey – o que é um triunfo mundano; e joga o
bilhar com o Príncipe de Gales – o que é apenas um triunfo político.” Mas os
seus triunfos de diplomata não se resumiram a isto. Foi, por exemplo, à sua
intimidade com D. Carlos e com Eduardo que se deveu ter podido impedir que os
domínios ultramarinos portugueses fossem partilhados entre a Inglaterra e a
Alemanha. Ser aristocrata, ser importante socialmente, ajudava, nesta altura.
Sir John Ure, que foi
embaixador britânico em vários países e desempenhou o importante cargo de
Comissário Geral do Reino Unido na Exposição de Sevilha, em 1992, no seu livro
interessante, bem informado e extremamente divertido, intitulado Diplomatic
Bag – An Anthology of Diplomatic Incidents and Anecdotes from the Renaissance
to the Gulf War, afirma ter existido “uma autêntica maçonaria
internacional de diplomatas oriundos da aristocracia que tinham,
frequentemente, mais em comum com os seus homólogos de outros países do que com
os seus próprios compatriotas”. Isto, como é óbvio, foi motivo de preocupação,
nas democracias modernas, e não pouco foi feito para pôr cobro a esta situação,
até no Reino Unido onde, actualmente, ser aristocrata não figura nas especificações
que tornam elegível, para o cargo, qualquer aspirante a diplomata. Mas Soveral
foi ainda do tempo em que vigorava esta “maçonaria internacional” e não pouco
lhe deve ter doído ver, como sucessor seu, um burguês como Teixeira-Gomes,
mesmo endinheirado e de distintas maneiras. Deste ressentimento terá derivado o
acinte que, segundo o autor de Agosto Azul, teria posto na intriga que
moveu ao primeiro enviado da República, em Londres. De pouco – ou por pouco
tempo – lhe valeu. Teixeira-Gomes não levaria muito a impor-se junto do Foreign
Office e da família real. Sir John Ure, no livro que já citámos, confirma o que
muitos outros diplomatas, de Talleyrand para cá, têm vindo a sustentar,
nomeadamente, que a diplomacia não é feita de conversa suave e rendilhada, nem
de astúcia e duplicidade. Sir John identifica quatro qualidades insignes que
deve ter o grande diplomata: imaginação, engenho, integridade e inteligência.
Saliente-se, mais uma vez, a tónica na integridade, de que
Teixeira-Gomes fez grande uso na sua vida profissional em Londres. Com
determinação, trabalho, coragem e seriedade, foi-se impondo. E viria, ele
próprio, a dizer: “No Foreign Office, com o andar do tempo, estreitei
amizades, das quais algumas ainda subsistem e outras foi a morte que as rompeu;
o inglês, se é amigo, é-o para sempre, de uma forma igual e inalterável, embora
sem as manifestações excessivas que são habituais aos latinos.” O próprio
Soveral, fino apreciador do mudar dos ventos, acabaria por se render, enviando
a Teixeira-Gomes um livro, assim como quem fuma o cachimbo da paz. Mas o seu
prestígio não se ficou pelo Foreign Office: estendeu-se à sociedade
aristocrática e à da própria Casa Real. Norberto Lopes, na sua preciosa
biografia, nota: “Outra prova do prestígio que gozava na Corte inglesa e do
apreço em que era tido o seu gosto em matéria de arte consiste no facto de a
rainha Alexandra ter pedido a Teixeira-Gomes que dirigisse a decoração do seu
gabinete oriental no Palácio de Buckingham, o que fez morrer de inveja os
melhores decoradores e antiquários de Londres, que nunca tinham conseguido
transpor os umbrais desse misterioso santuário.”
Teixeira-Gomes desempenhou
um papel ímpar na defesa dos interesses de Portugal, no contexto europeu,
apesar de todas as intrigas e até torpezas que teve que defrontar, num período
especialmente difícil para a afirmação da jovem República. Intrigas feitas, não
só nos meios ingleses e na imprensa inglesa, mas igualmente na portuguesa. Numa
carta de desagravo dirigida ao ministro dos estrangeiros, Teixeira de Queirós,
em 1915, o grande escritor e diplomata, reagindo aos ataques malévolos de certa
imprensa portuguesa, faz, de caminho, um inventário eloquente do seu trabalho
diplomático, nos anos de estadia em
Londres: “Tenho seguido com muita curiosidade”, observava, “a campanha
ultimamente movida contra mim na imprensa portuguesa e não posso deixar de
exprimir a V. Exa. a minha surpresa pela ignorância em que os meus acusadores
se encontram a respeito da forma como me tenho desempenhado do alto e tão
honroso como difícil cargo em que me investiu o Governo Provisório.
“No dizer dos meus
detractores tem sido constantemente nociva aos interesses da República a acção
do homem que tratou do reconhecimento das novas instituições pelo Governo
inglês, conseguindo que este resolvesse a Alemanha, a Áustria, a Itália e a
Espanha a acompanhá-lo no reconhecimento; que obteve de Sir Ed. Grey
declarações claras e precisas no Parlamento acerca da existência e natureza do
trabalho de aliança; que obteve do Governo inglês a sua nota cominatória e
decisiva ao Governo Espanhol quando este pretendeu apossar-se das ilhas
Selvagens; que na questão esclavagista levou o governo inglês a substituir-se
ao nosso próprio governo para nos defender em repetidos «Livros Brancos» e no
Parlamento das piores acusações que nos assacavam os nossos adversários, os
quais, para que a dificuldade fosse maior, eram vultos de grande importância no
seu próprio partido; que, apesar da oposição da corte inglesa, obteve deste
Governo, em Outubro de 1917, que ordenasse a ida a Lisboa de um navio de guerra
(...) embora os monárquicos afirmassem que nunca o conseguiríamos e para o
impedir despendessem toda a sua influência; que levou Sir Edward Grey, a
declarar no Parlamento que o governo não interviria no caso dos prisioneiros
políticos, quando a opinião inglesa na sua parte mais influente e importante
reclamava essa intervenção; que impediu a assinatura do tratado anglo-alemão de
1898 sobre as nossas colónias africanas, o qual o parentesco e amizade das
famílias reinantes nos dois países e a influência de que dispunha o marquês de
Soveral não conseguira evitar; que de sua iniciativa diligenciou e obteve que
se efectuasse em nome do Governo da República um tratado de arbitragem com a
Inglaterra, tratado que, anteriormente feito em nome do rei de Portugal, fora
ruidosamente reclamado pelos monárquicos como penhor exclusivo das vantagens
que a Realeza trazia ao País; e que, finalmente (para encurtar esta resenha que
desejo cingir só a factos capitais), quando as circunstâncias da presente
guerra tornaram inevitável a nossa participação
activa, solicitou e recebeu das mãos de Sir Ed. Grey o memorando de 10 de
Outubro invocando a aliança e encarecendo a importância do nosso auxílio em
termos tais que o Sr. João Chagas, no seu recentíssimo folheto Portugal
perante a Guerra, declara ser esse o documento mais honroso para Portugal
que existe no arquivo do nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros.”
Teixeira-Gomes foi realmente
a quem se ficou devendo, por influência pessoal e firmeza de negociador, a
salvaguarda dos interesses portugueses em África, pagos à custa da entrada de
Portugal no apocalipse de 14-18.
Saído de Londres em 1923 e
após dois agónicos anos como Presidente da República, Teixeira-Gomes resignou o
cargo, por cansaço e desgosto insuperável causado pelos partidos desavindos, a
bagunça parlamentar e a verificação da impossibilidade de aplacar cobiças,
ambições e mais do que alguma falta de mínimo sentido cívico dos gladiadores de
serviço. Alijado o peso das responsabilidades cívicas, partiu em viagem e, por
fim, para o exílio. Mas, no lastro abandonado, ia muito mais do que
responsabilidades do cidadão – ia quase tudo. “Saí de Portugal”, dirá ele, “sem
um livro, sem um papel, sem um apontamento ou nota; nada que, de longe ou de
perto, recordasse o antigo literato ou o político; abri na vida uma página
perfeitamente em branco. Pouco ou nada leio; como e bebo com apetite e
proveito, durmo a noite em dois sonos de pedra; faço todas as manhãs um hora de
ginástica e à tarde dou um passeio regulamentar de dez quilómetros; os museus,
as igrejas, os monumentos, abrem-se-me como outras tantas portas para o paraíso;
o espectáculo das ruas nunca me embasbacou e surpreendeu como agora; olho para
o céu, para o mar, para as montanhas, para a paisagem, com a encantada
curiosidade de um ressuscitado; e escrevo a alguns amigos com a abundância – a
incontinência – que sabe. O que lhes digo é leve e inconsistente, como é a
minha bagagem literária. Vou consumindo, à semelhança de certos animais que
hibernam, a própria enxúndia, adquirida com o magro chorume das leituras
passadas e repito, invariavelmente, ao fim de cada dia: «este já ninguém mo
tira»” No exílio, publicará seis livros – mais um do que os que escrevera antes
de partir de para Londres: Cartas a Columbano (1932), Novelas
Eróticas (1935), Regressos (1935), Miscelânea (1937), Maria
Adelaide (1938) e Carnaval Literário (1939).
O lugar escolhido para o
retiro final, depois de anos de deambulação por Itália, pelo norte de África,
foi Bougie, a 250 Kms de Argel. Deste ancoradouro final, dirá Norberto Lopes,
que ali visitou o ex-Presidente, em 1939, que era “a cidade mais graciosa, mais
alegre, mais verde, mais florida, mais bem situada do norte de África”. O
grande esteta, o grande fruidor sempre soubera escolher. Em Bougie, passaria os
últimos dez anos da sua vida, olhando a magnífica baía, passeando a pé,
encharcando-se de sol. E recordando os bons momentos que a vida lhe dera – e
não foram poucos. Ali recordaria, por certo, os onze anos passados em Londres,
onde representara, galhardamente, uma República frágil e desarrumada. A qual
defendera, com honra, trabalho árduo, competência, coragem e elegância.
Recordaria a Londres do bom combate diplomático, mas também a outra, da qual
escrevera: “Sim, não oferece dúvida, em Londres é que se vêem os mais formosos
cabelos do mundo inteiro, e era com uma dessas prestigiosas comas – mas douradas
ao gosto da moda nos moldes do penteado grego – que a menina inglesa,
extremamente gentil, por detrás de quem o acaso me colocara, no concerto do
Sarasate, me tirava a luz dos olhos e me açambarcava a atenção que eu deveria
consagrar, ciosamente, à música.”
Estes momentos, em que
recordava os frutos da terra, que outrora trincara, com delícia, amaciavam-lhe,
por certo, o envelhecer e faziam-no aceitar, com sagesse, a morte que se
aproximava. E que veio buscá-lo, em 18 de Outubro de 1941, no seu isolamento multiplamente
populado. Teixeira-Gomes sempre se dissera “suficientemente apetrechado para a
existência solitária”. Com tais “apetrechos”, mesmo em Londres, mesmo manietado
pela necessária discrição e reserva a
que o votava o protocolo diplomático, Teixeira-Gomes achara modo de se deixar
seduzir pelos alimentos terrestres – que lhe iriam mais tarde, recordando-os,
junto ao soberbo mar africano, povoar prodigiosamente uma solidão que o não
era. "
Eugénio Lisboa
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