A Ladainha da dor
por Eça de Queiroz
(Ao Sr. A. A. Teixeira de Vasconcelos)
«O músico Berlioz, ao voltar das bandas moles da Itália e das ilhas da Grécia de lívidos escarpamentos, sem serenidades idílicas e sem mitos — recebeu nas ruínas das Sorveiras, junto de Nizza, onde trabalhava na sua sinfonia de Harold, toda cheia de mar, esta carta vinda de França:
"O pintor Lyser voltou da Boémia com a sua doidice elegíaca. Pedi- lhe o retrato de Paganini como tu querias, mas ele disse-me, em segredo, que fora o diabo que lhe guiara a mão naqueles traços, e queria conservar essa lembrança do diabo, um velho amigo. Tem esse cartão numa pasta, entre um desenho do velho Cláudio Loreno e um retrato de Dante.
Ontem, ao cair da tarde, estávamos ambos sentados junto da janela. O ar entrava todo emaranhado nos cordões verdes das trepadeiras; nós estávamos calados e abandonados à doçura divina das coisas.
O pobre Lyser, com os seus grandes cabelos caídos, tomou o retrato de Paganini e desenhou, em volta, toda a sorte de entrelaçamentos de folhagens, de penumbras delicadas, de dissipações de nuvens: e, entre aquelas eflorescências, escreveu os nomes de Dante, de Hamlet, de Romeu e de Sancho Pança, dizendo com a sua voz dolente: "Paganini tinha alguma coisa de todos estes homens". Depois, no cimo do cartão, desenhou a figura. de Ofélia levada pela corrente, e um morcego, com as asas dobradas, e olhando tristemente, de entre as canas debruçadas sobre o rio, o corpo branco sumir-se, levado serenamente como no seu elemento, e os grandes cabelos louros emaranhados nos musgos da água: e por baixo escreveu: "Duvida Ofélia do meu amor, da verdade luminosa das estrelas, dos coloridos das folhas, da luz branca e séria do sol". E depois, com a voz séria: "Paganini sobretudo era um morcego..."
É assim aquele pobre Lyser com a sua triste loucura. Sabes que lhe morreu a irmã? No dia do enterro, Lyser acompanhou o corpo com a sua rabeca debaixo do braço e fustigando com o arco as ervas molhadas. O dia estava nublado. " Minha pobre irmã ,disse ele, que nem pode levar presa no seu lindo vestido uma réstia de sol!" Sabes a religião que Lyser tem pelo Sol. Passa dias inteiros deitado entre as frescuras dos caminhos, sob a grande luz sonora do sol. Nessa noite em que a irmã foi enterrada, foi sentar-se junto da cova tocando as velhas árias de Lully, e, de vez em quando, compunha as dobras de um xale que tinha lançado sobre a sepultura. Assim esteve perdido numa saudade mais doce que a lua, e mais profunda que a noite. Como o céu estava nublado, ele dizia, de vez em quando, à morta:" Não tenhas pena, cá fora nem estrelas há ".
Foram-no buscar de madrugada, e ele vinha lento, dependurando-se do fato do coveiro como uma criança, para ouvir os uivos dos cães e o chiar dos carros.
Dias depois, voltou ao cemitério e o coveiro não o deixou entrar; o pobre Lyser ficou junto das grades com os olhos cheios de lágrimas. "É uma coisa de pressa que tenho a dizer a minha irmã", afirmava ele com a voz passada de suplicações. O coveiro estava dentro falando com uma mulher de cabelos cor de vinho; e como a quisesse prender num abraço bárbaro e rijo, a rapariga, ao fugir-lhe, caiu sobre uma sepultura toda coberta de violetas; o coveiro ergueu-a, sacudiu-lhe a terra dos vestidos, e deu com o pé rude na terra da sepultura resmungando: "Malditos tropeços!"
Por fim, veio abrir a grade enferrujado ao pobre Lyser e com uma grande voz: "Vá, que já são horas de entrar sem licença." Lyser sumiu-se entre os ciprestes, debruçou-se sobre a cova e escreveu na brancura da pedra: "Luísa, se lá em cima encontrares a estrela Vésper, pergunta-lhe de que tintas se faz o cor-de-rosa da tarde e os seus reflexos de roxo-pálido; preciso sabê-lo. Ontem dei o teu xale branco a uma pobre: diz-me se queres que te traga alguns dos teus vestidos. Olha, se passares de noite por estas alamedas, não te aproximes da casa do coveiro, vive lá uma má mulher."
Dias depois chamou-me e disse-me. " Sabe? começo a acreditar que minha irmã morreu. Por isso, peço-lhe uma coisa: quando tiver alguma camélia não a esmague, talvez seja feita do seio, da pobre rapariga." E afastou-se, arrastando os seus sapatos como se estivessem pesados de água: mas de repente voltando-se e com a voz cheia de suplicações, acrescentou: "Nem as violetas; talvez sejam feitas dos olhos dela!" Então, tomou-me pela manga e levou-me para entre árvores onde havia o sol, o coro das colmeias, os cheiros de feno e os coloridos frescos dos frutos: ele ia com a face toda tomada pela cor quente e fecunda da vida.
" Não sabe? dizia-me o pobre Lyser com a sua voz lenta e doce como um escorrer de mel; não sabe? Muita rapariga, que dizia as cantigas das eiras e dançava debaixo dos plátanos, morre nos frios de Fevereiro. Há de ter visto, por esse tempo, os pobres namorados que andam chorando sobre as covas, com os cabelos caídos. Então aqueles corpos das raparigas desfazem-se. Alguém, que sabe e que vê, aproveita aquelas formas e aqueles coloridos; da pele do seio, fazem-se pétalas de camélia, dos olhos tristes fazem-se violetas, da cor dos lábios fazem-se os rainúnculos, dos hálitos perdidos fazem-se os cheiros bons, e do olhar, da meiguice, do desejo delas faz-se a Primavera, o doce ar das madrugadas de Maio. De modo que de noite as flores que estão nos vasos, na sombra das alcovas, conversam das suas existências passadas; falam das danças ruidosas à guitarra; daquela manhã em que a ponta do seio veio espreitar, pela abertura do vestido, os olhos do namorado; daquela tarde em que a face se vestiu de cor-de-rosa para receber a visita de um bigode louro; daquela noite em que as pálpebras castas acudiram aos olhos, que estavam perdidos e quase a dizer sim. E se uma noite espreitar as flores que estão nos castos paraísos das alcovas, há de vê-las sair dos vasos, entrelaçarem as formas e os coloridos e fazerem na sombra a vaga semelhança de um corpo feminino."
É assim o pintor Lyser. Fez-se noite naquela alma, e, por isso, ela tem todas as qualidades da noite: o sombrio, o vago, o negro, o azul, o lânguido, o estrelado.
Agora deseja morrer e ser enterrado numa paisagem casta, assoalhada, murmurosa, para se julgar protegido e coberto pela alma errante do seu amigo Gáudio Loreno.
Quando a luz do sol se retira, prende-se, como um manto de seda que se arrasta entre ervas secas e ramagens, ao dorso de uma onda, ao cimo ruidoso de uma árvore, à proa de uma barca de pesca; assim aquele espírito ao retirar-se daquele corpo, se prende ainda a tudo o que na vida é superior, e elevado, e meigo - ao amor, à melancolia, à compaixão, à arte.
Quando cheguei do Báltico soube que Paganini se retirara de França: tive a respeito dele grandes conversações com o rabequista Sica, que pensa em fazer para o Verão unia peregrinação pela Síria.
Estávamos horas debaixo das tílias, falando do quimérico espírito de Paganini, até que as estrelas apareciam, contemplativas e augustas. Sica contou-me toda a legenda idílica e bárbara de Paganini: os seus amores em Verona, aquela cantora enfezada, de mãos macias e sentimentos velados, envolta em grandes sedas, e aquele abade de fivelas luzentes, com quem ela ia debaixo dos veludos silenciosos, num entrelaçamento de braços, em doce e azulada viagem pelo país de Citera. Depois contou-me toda a sua trabalhosa odisseia, de prisões e de degredos: aquelas noites em que ele, poderoso e solitário, entrava na confidência dos negros soluços do mar: noites dolorosas de lágrimas, em que aquele trágico homem, enroscado nas palhas do seu cárcere, olhava ao longe o mar Mediterrâneo, amolecido por aquela moleza que escorre dos astros, e da voluptuosidade da noite desconhecida e fecunda.
Dizia-me Sica que Paganini lhe contava que, sempre às horas escuras, via as fivelas do abade luzirem na noite. " Às vezes o remorso é bondoso, afirmava ele, encarna-se em coisas que têm uma vida, uma carnação, um sangue, uma moleza, que se podem abrandar, a quem se pode suplicar; mas aquelas fivelas metálicas, inertes, rígidas, eram um remorso frio, surdo, inflexível, faziam-me subir ao rosto o suor do antigo Josafá."
Dizia também Paganini, que uma das suas grandes torturas, no cárcere, fora assistir pela visão, à decomposição fria do corpo da pobre cantora Marietta. Ele via aquele corpo sem óleos, nem sacramentos, debaixo das terras limosas e túmidas de seiva, esverdear-se entre as ossadas. Via de noite, perto de si, aquela terrível decomposição das carnes, aquelas brancuras inertes, aquelas moles curvas sugadas pela terra. Via, aterrado, os cardos, as papoulas, as gramíneas, os ciprestes serenos comerem a sua bem-amada fria, muda, esverdeada e inchada!
Então, ali, tomou o ódio da Natureza: ele atravessava sempre as frescas fecundidades, as searas, todas as verdes formas da vida, os campos e as granjas, com um horror judaico e místico. Só perdoava ao mar: e às vezes, depois, na Dinamarca, ia para junto das águas do mar do Norte, tocar na rabeca as velhas cantigas escandinavas e as baladas rúnicas; e desejava que, depois de morto, o seu corpo pudesse nadar, durante a eternidade, nos verdes embalos da água.
Foram terríveis todos aqueles anos de prisão.
O rabequista Sica contou-me depois todas as viagens de Paganini; com os estudantes da nova Alemanha, indo pelos burgos, pelos povoados, pelas cabanas de lareiras sonolentas, cantando às estrelas e dizendo, na sua rabeca, sob a lucidez do céu do Norte, as velhas baladas da Turíngia.
Contou-me o amor da duquesa de Weimar por Paganini; e como uma noite de concerto, em duas cordas da rabeca, ele disse o diálogo misterioso de duas vozes que se falavam debaixo do arvoredo, depois entre as sedas de cortinas, ao fresco ar dum balcão, e depois ainda na terra, debaixo das raízes dos ciprestes, e, por fim, indefinidas, tênues, luminosas, entre o encruzamento sagrado dos raios dos astros.
Era uma alusão desconhecida, que encheu de lágrimas a duquesa de Weimar.
Aquele homem, ultimamente, tinha o peito cheio de mortos. Dele retirara-se o elemento humano: já não tinha a compaixão, o riso, o amor, a indignação, a paternidade, a emoção.
Lento, com os seus cabelos caídos, lívido, com as terríveis rugas da face semelhantes aos ff duma rabeca, com as mãos transparentes, cheias de agilidade e de deslocações com os seus grandes casacos escuros de pregas hieráticas, atravessava os povoados, os silêncios, as cenas resplandecentes, poderoso e solitário, procurando, sempre, aos pés, uma cova onde não se esfolhassem árvores, onde não nascessem ervas, sem saber que na noite, na humidade, nas choças, nas pedreiras, nas estradas, nas costas, há uma raça que sofre, e que há beiços lívidos da fome, e que há febres silenciosas, e amores desertos, e suores de angústia, e apodrecimentos de honras, e uivos de almas aflitas, e lentos e frios esvaecimentos de pudores e de belezas.
Sica contou-me também o grande poder musical de Paganini e a sua atitude nos concertos, cheia de abaixamentos e servilidades; e contou-me também, meu amigo, aquela noite gloriosa e flamejante em que se tocava a tua sinfonia de Romeu e Julieta, e em que ele veio, entre os aplausos e as vozes de coroação, ajoelhar e beijar-te as mãos, dizendo com os olhos cheios de água :— Sois outro Beethoven!
Ultimamente, como sabes, tinha uma doença de garganta que o emudeceu; trazia então um livro branco em que escrevia o que pensava nas conversações da noite; aquela doença não o vergou mais; ele tinha já o silêncio - estoicismo da alma, e refugiou-se na mudez - estoicismo do corpo.
Passava então com o rabequista Sica horas inteiras tocando rabeca ou guitarra.
Ultimamente preocupava-o muito o ter de deixar a sua rabeca só, depois de morrer; e escrevia no seu livro: " Quando eu estiver para morrer, pensar que a hei de deixar aqui, entre estas mulheres de aço, estes jornalistas lívidos e os agiotas calvos, no meio desta multidão esfomeada de materialidades! que se há de encher de pó a um canto, ela, cheia de alma e de legenda!"
No entanto, ele acreditava que, no dia em que morresse, a sua rabeca havia de estalar e os pedaços, apodrecidos na terra ir-se-iam confundir com o corpo dele nos átomos das árvores, ou das estrelas, ou das águas. E escrevia então: "Que felicidade poder ter a mesma folhagem, dar a mesma luz, lançar a mesma espuma!"
Mas, por fim, olhava para a rabeca com um ar triste e descrente; às vezes tomava a guitarra e ia tocar nela para junto da rabeca, com um gesto de carícias brandas, com um lento correr de dedos, como se estivesse vestindo as cordas com a harmonia viva que tirava da alma; ele queria pôr todos os seus interiores divinos naquele gemer de guitarra, para fazer morrer de ciúmes a sua velha rabeca abandonada.
Por esse tempo, um dia que ele estava com Sica, escreveu assim: "Já me não fio na minha rabeca; acredito que ela não há de lamentar a minha morte. Não morre, não! Há de dar-se ao primeiro que a tomar nos braços; há de dar-se com sufocações lascivas, e dizer-lhe os mesmos segredos místicos, voluptuosos e iluminados que me dizia a mim... Que importa à rabeca que o pobre músico apodreça debaixo da terra?! "
Ultimamente o músico Sica necessitou d ir à costa normanda, porque tinha lá seu pai, velho marinheiro, morrendo junto das águas; e quando voltou coberto de lutos e soluços, disseram-lhe que Paganini tinha partido para o Sul.
" Adeus, não te demores em Nizza, acaba depressa a tua sinfonia do Harold e recomenda-me ao nosso velho amigo — o Mar."
Tempo depois, o homem que tinha mandado esta carta, recebeu estoutra de Berlioz:
"Estou ainda todo frio das visões desta noite.
Sabes que moro nas Sorveiras, que são umas ruínas junto do mar, pedras bem conhecidas por toda a populaça do ar: abrigam-se ali, como numa pousada, os viajantes sombrios da atmosfera, que são as chuvas esguedelhadas, os ventos uivadores, os granizos , as moles brumas e os nevoeiros. Em redor estão espalhados os casebres dos pescadores todos conchegados, como as ovelhas, quando anda temporal no monte; a costa é terrível e, no entanto, o mar tem , às vezes, serenidades só semelhantes ao calmo olhar dum idiota.
Este povo trigueiro de pescadores sai, logo de madrugada ,para os balouços da água nas suas lanchas esguias, carunchosas, todas cheias de legenda e do cheiro das pescas: logo na alvorada se sente em baixo, junto da voz da maresia, aquelas cantigas fortes de deitar redes, robustas como calabres, e sãs como o sol. É uma bela vida!
Durante o Verão, nas sestas silenciosas do mar, todos andam na pesca, os velhos, as crianças rotas, resplandecentes e sujas, e as mães de forte seio - essas belas mulheres da costa da Itália ,que eram tão desejadas pelos marinheiros gregos e fenícios, que tinham visto Mileto e Abido e Corinto.
Agora que o Outono começa, esta pobre gente deixa as redes rasgarem-se ao vento, e vai para o interior dos povoados juntar-se nos campos à pobre gente curvada, que lavra e que semeia.
Ontem fui, numa barca de pescador, até ao ponto em que o Var desagua. Sabes que é neste tempo que as pombas emigram para o Sul; reúnem-se em bandos gemedores e vão, por cima do Mediterrâneo, fazendo nódoas brancas pelo ar azulado. Quando voltei, o Sol descia: o barco vinha levado de um modo silencioso e casto pelos serenos embalos ondulosos. O mar tinha uma serenidade olímpica.
Eu havia-me abandonado às molezas da tarde, e, todo estirado à popa, via o céu cobrir-se de uma cor rosada, como dum rubor de castidade. As estrelas começavam a aparecer. Donde vinham elas? E donde é que vem a noite de tão longe que vem suada de luz? Eu via- as tremer e pensava que elas deviam ter frio e medo, lá em cima, nas solidões, sem deuses. Àquelas horas também aparecem as ondinas na água; quem sabe se as estrelas são mulheres de um elemento desconhecido, que vêm de noite em teorias sagradas, celebrando um rito elegíaco? Quem sabe se são árvores agitadas por um vento, que deixam cair estes negros frutos - a melancolia, o amor, a sensualidade?
Depois ri-me destas imaginações; mas nas águas do Mediterrâneo, ao anoitecer, num barco de pesca, vendo ao longe as linhas moles da costa de Itália, e sobre os montes os fogos dos pastores, não podia ver as estrelas como nas verdades e nos positivismos modernos, e esqueci Arago, Berthelot e o velho Laplace.
E depois pensava como desejava morrer, que era nos braços da bem- amada, sol da minha natureza, sem dores mordentes, sem febres silenciosas, e ir assim entre as fulgurações do desejo e os deslumbramentos da alma, e os beijos vermelhos e transfiguradores, e os entrelaçamentos divinos, sob o seu olhar santo, ir, num lento desmaio da carne, para a frialdade da terra e ali sentir-me ,lentamente, dissolver pelas humidades fecundas, pelas seivas brancas, pelas espumas das nascentes, pelas raízes das florescências!
Ora, quando assim vínhamos, vi, na linha escura e áspera da costa, uma massa de arvoredos e, por entre a sombra, uma luz elegíaca.
– Que luz é aquela, meu velho? — disse eu da popa.
O pescador suspendeu as rijas ondulações dos remos, que ficaram direitos, escorrendo, todos esverdeados dos musgos da água.
– Aquela luz, senhor, é da casa das Serenas. A estas horas está ali, abandonado, um pobre homem que morreu lá ontem. Tinha chegado aqui há pouco, e era mais amarelo que a cera do altar; até na costa diziam os velhos que ele se vendera ao Diabo! Deus me perdoe por falar assim nisto, de noite, em cima das águas. Ah! senhor, diziam que tocava na sua rabeca maldita que nem o Céu… Chamavam-lhe Paganini.
E o pescador meteu os remos na água, cantando com um embalo da voz:
Altra volta gieri bele,Blanch’e rossa com’un fioreMa ora nó. Non san piu bieleConsumatc dal’amore.
E depois, voltando-se e com a voz ensurdecida pelo clamor das marés, continuou:
– E os padres agora não lhe querem cantar as suas ladainhas e enterrá-lo em terra santa. Se fosse meu parente e tal sucedesse, ia para o fundo do mar. Debaixo da água anda muito corpo de patrões e pilotos: eles não morreram, não; andam ainda vivos; e, quando um pobre homem que tem mulher e filhos deita as suas redes, em dia de vento, quando o peixe anda arredio, eles costumam afugentar a pescaria, com ramos de coral para as bandas da rede!… O pescador falava assim, lentamente, com a voz pesada da religião das legendas.
Eu levava os olhos rasos de água e pensava que nunca tinha ouvido tocar o triste Paganini: sempre que ele deu os seus concertos, eu estava longe da França.
Entrei nas Sorveiras com o peito cheio de friezas e de mortalidades. Quis trabalhar, mas sentia-me dissolvido na pesada materialidade das coisas.
Tomaram-me uns moles cansaços e fiquei sem pensamento, sem desejos, inerte e silencioso como um pombal donde fugiram todas as pombas. Sentia apenas o miar dos gatos lascivos e o uivar dos cães que andam de noite na praia, esfomeados. O mar estava pesado de gemidos, sob a noite lenta e mística.
Ora , quando assim estava, ouvi, distante, como vindo dos lugares hieráticos das nuvens e das vias-lácteas, o gemido de uma rabeca. — Quem é que, àquelas horas, numa costa áspera de ventos imensos, quando os pescadores dormem nas frialdades da cinza da lareira enrodilhados nos farrapos dos mantéus - tocava assim rabeca junto do mar?
Fui, amedrontado ao meu antigo balcão gótico e olhei pelas transparências da noite. Nada. As ondas choravam o seu choro místico e as estrelas estavam na sua imobilidade donde se exalam religiões. Cerrei as portadas e voltei, com o peito sacudido por um soluço de medo, para junto do braseiro: então ouvi de novo aquele som triste da rabeca estender-se lentamente pelo mar, como uma névoa sonora. Fiquei todo tomado de tremores e de frios: e ouvi então, distintamente, com os ouvidos da carne, a música de uma rabeca, acompanhada, surdamente, pelo mar.
Ao princípio foi uma melodia de fresca serenata, que a água acompanhava com um marulho húmido e alegre: e ao mesmo tempo, ao longe, havia o gemer rítmico do vento.
Então, durante uns momentos, eu ouvi unia música estranha da rabeca, acompanhada pelo mar, onde havia gemidos, dilacerações e vozes pesadas de lágrimas, e melodias trágicas com dores da Natureza, e sempre, por entre os sons alegres e meigos, uma tristeza surda e lenta corria, como a água corre, lodosa, entre os juncos e os canaviais.
Havia vozes de rabeca, aflitas e bárbaras: e às vezes doces mugidos sinistros do mar, pareciam presos por uma melodia da rabeca, delgada, ténue, clara, como um fio de som. Eu não te sei dizer o que era aquela música sobrenatural, elegíaca, selvagem, trágica, suave, e escarnecedora!
Por fim, de repente, toda aquela orquestra poderosa se calou, como um bando de abutres e aves de noite gritando aflitas, com trágicas palpitações de asas, que vêm pousar, num silêncio, sobre um rochedo das águas. Então senti, de entre aquela amontoação apocalíptica de harmonias, desprender-se, solitária, a voz da rabeca, e vir, de leve tocar, junto do meu balcão com meiguice, com moleza, com volúpia — as variações do Carnaval de Veneza.
Ninguém me pode tirar do coração, que foi a alma de Paganini que deixou o seu corpo na natureza solitária das Serenas, e veio dizer o adeus da música ao seu velho amigo.
"Adeus, meu meigo artista! Sofre e transfigura-te pela dor: eu aqui estou, cheio de saudade da nossa doce França, junto das águas tristes do Mediterrâneo.
Creio que depois da noite de ontem, nunca mais terei o riso sonoro e são. Adeus! dei os teus recados ao Mar, que te manda, como voz de saudação, o terrível temporal que, agora, vai na costa.”
O homem a quem esta carta foi escrita, era um artista, um pintor como Lantara, vivendo, descuidado, na boémia errante das misérias, das jovialidades e das primaveras. Mas a alma não se maculou com os contactos do corpo: no meio daquelas loucuras esteve sempre como uma pomba adormecida. Aquele pobre rapaz vivia numa trapeira, onde trabalhava sem sol, naquelas alturas silenciosas e castas onde vivem e crescem as flores do bem: depois enlouqueceu e foi recolhido a um hospital: e ali era sagradamente velado por uma enfermeira doce, delicada e branca como uma Virgem de ouro fino de um livro de legendas: o pintor, que, como o seu amigo Lyser, ainda depois de doido desenhava, pediu um dia à enfermeira a sua touca engomada e lisa, e com um lápis desenhou ali, como um agradecimento de alma, toda a sorte de delicadas imaginações — asas abertas, coroas de folhagens, ondas que vinham beijar um pé branco, coroações de caridades.
Uma noite, a enfermeira ouviu um gemido, e veio encontrar o pobre pintor com as mãos postas diante de um retábulo alumiado; a doce rapariga cuidou, no seu coração, que ele se encomendava à Virgem; escutou: o pobre rapaz doido estava rezando ao seu velho amigo Cláudio Loreno. Quando sentiu a enfermeira, voltou-se, e disse-lhe quase a chorar: " Deixo o meu corpo aos rios, às árvores, às abelhas, aos montes, às searas, a toda a Mãe-Natureza." Depois curvou-se, beijou a orla do vestido da enfermeira e ficou-se enroscado no chão, frio e inerte.
A enfermeira pousou a luz do retábulo junto do corpo, tirou a toalha da Virgem e estendeu-a sobre a face pálida do triste, transfigurada pela beleza sagrada e espiritual da morte.
Ao outro dia de madrugada, quatro homens que riam das farsas da taberna, e cantavam más cantigas, levaram aquele branco corpo à vala dos pobres.»
Eça de Queiroz, in Prosas Bárbaras,, Lello &Irmão Editores, Porto, pp.81-97
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