Desafios da filosofia no século XXI: ciência e sabedoria
por Ivan Domingues
"Nos tempos antigos, se a meditação acerca da experiência da dor, da morte e do sofrimento levou a um saber dos limites e à afirmação do homem como ser mortal e finito, como nas tragédias ao associar os temas do destino e do quinhão, não é menos verdade que os seres humanos foram vistos ainda como a mais divina das criaturas e mesmo como verdadeiros semi-deuses: tal é o caso dos heróis dos jogos olímpicos até hoje, capazes num átimo, com seus pés alados e mãos divinas, de desintegrar o corpo e vencer a matéria. Na idade média, com o exemplo de Cristo e o ensinamento da tradição sapiencial do antigo testamento levando a um saber dos limites, sendo Deus o limite e mesmo o limite dos limites, pois é quem dá e tira a vida, com seu quinhão, sua grandeza e sua miséria, a experiência da dor é vista como provação, a terra um vale de lágrimas e o homem um ser dual, meio anjo e meio besta, que só atingirá a imortalidade depois do resgate e fora deste mundo decaído. Nos tempos modernos tudo mudou: não há destino, Deus não governa mais o mundo e a vida das pessoas, a natureza foi instrumentalizada e é judiada de dar dó, não há mais quinhão e nem há limites. Logo, tudo é possível, a morte não faz sentido, se alguém adoece e se dá mal, a culpa não é do destino ou da natureza, que falhou, mas do indivíduo, e a busca da eternidade não é uma quimera, coisa de religião e promessa de elixir, mas assunto da ciência e matéria da tecnologia: margarinas sem gorduras trans, ovos com ômega três, cervejas sem álcool, bancos de células-tronco, chips de memória, pílulas de juventude etc. – tudo já está aí à nossa disposição, bem como gadgets, engenhocas e dispositivos para nos distrair de nós mesmos e potencializar os prazeres da vida boa e fadada a ser cada vez mais longa: mas longa para quê? para sofrer mais? Em contraste com o admirável mundo novo das tecno-ciências, o nihilismo campeia no mundo moral e promove estragos terríveis, deixando o indivíduo desamparado e incapaz de enfrentar as adversidades: olhem o caso de Katrina, depois que o furacão arrasou Nova Orleans, nos Estados Unidos – milhares de indivíduos obesos, estatelados, gritando: "estamos com fome!". Mais do que nunca, a filosofia deverá ter uma mensagem para essas coisas, ajudar a elaborar nossas experiências e nos livrar dessa situação: mostrar por exemplo que é preciso morrer, para renascer a vida, como a borboleta ao sair da crisálida.
Daí a centralidade da questão antropológica na metafísica e na filosofia: afinal quem põe e tira o sentido nas e das coisas é o homem. Porém, o que é, quem é e o que será do homem? Onde começa seu império e onde termina? O que é sábio buscar e renunciar?
Vimos com Jó e o Eclesiastes que a sabedoria é o conhecimento dos limites e temor a Deus. Vivemos hoje num mundo sem Deus – o que não quer dizer que não haja limites: este está na natureza e também no homem.
O homem é um ser de natureza e ser de artifício e de invenção – disto sabemos desde Platão no Banquete – e a vida humana está polarizada – tal é a nossa condição segundo as sagradas escrituras – pela grandeza e pela miséria. Mas não é só: haveria muito a ser dito e nuançado ainda, alargando a experiência antropológica e problematizando a condição humana."
Ivan Domingues, Professor titular de filosofia da UFMG, excerto da Conferência publicada na Revista de Filosofia Kriterion, volume 47, nº 113,Brasil.

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