ALBERTO
DE LACERDA:
A
MARAVILHA DA VIDA E O HORROR DA VIDA
por Eugénio Lisboa
"Quando conheci Alberto de Lacerda, em Lourenço
Marques, em meados dos anos quarenta (do século passado), havia, entre nós, um
factor comum: gostávamos ambos de ler e líamos tudo a que podíamos deitar mão.
Mas havia também uma diferença : o Alberto lia sobretudo poesia e eu lia
sobretudo ficção, teatro e História. Não que a poesia me não atraísse : o Só
de António Nobre chegara-me, com alarme, às mãos, bem como o Fel, de
José Duro (que me pus a imitar, naquela espécie de atracção-repulsão que a
morte exerce sobre os adolescentes). Mas não tinha poesia facilmente à mão. Os Poemas
de Deus e do Diabo, difíceis de encontrar no mercado local, ouvi-os, lidos
por amigos que se deixavam facilmente fascinar pela eloquência sulfúrica (e
bela) do bardo de Portalegre. De Fernando Pessoa, chegaram-me, também de
ouvido, as heresias de Caeiro e os histerismos de Campos. E pouco mais. Com o
Alberto, era diferente: dois anos mais velho, dispondo de muito mais tempo
porque o liceu lhe interessava pouco e era faltão, dotado de um apetite
insaciável pela poesia (que desencantava, por compra, por empréstimo ou em casa
do pai), pela arte e pela vida, ferido de ambição desmedida e daquele modicum
de megalomania que aflige tanto adolescente e não é mal por aí além, o Alberto devorava
poesia, escrevia poesia e falava – já então – admiravelmente de poesia. Era um
conversador extraordinário, cheio de caprichos, de paixões, de rejeições, de
convicções em itálico bem acentuado, de ironias desmedidas, de achados
inesquecíveis... Como poucos, sabia ser afrontoso, com um toque de maldade de
uma elegância florentina. Mas não era nunca pedante e tinha um horror sagrado
pelos valores “estabelecidos” e pomposos, por títulos, por “importâncias”. Lia
o que lia e descobria o que descobria, pisando, por si próprio, terreno ainda
novo e inexplorado.
Como todos os adolescentes, tinha conflitos interiores e familiares, histórias que teria
pudor de contar fosse a quem fosse (Régio, por essa altura, marcava-o, embora,
depois passasse a rejeitá-lo com alguma injustiça virulenta).
Intrigava-me algum tanto verificar que os grandes
ficcionistas que, por essa altura, me iam apaixonando (Stendhal, Tolstoi,
Dostoiewsky, Charlotte Brontë) – eram postos à distância pelo Alberto que se
“não atrevia” a mergulhar naquela massa, romanesca de dimensões, para ele,
aterradoras. Tratava-se, pareceu-me, de uma espécie de receio... de quase
pânico! Mais tarde, mudaria e viria a ler, com prazer e argúcia, numa
aproximação sempre pessoal, grandes obras de ficção.
Havia, já então, no Alberto, algo de saliente que
nos impressionava sem que soubéssemos
muito bem identificá-lo: um manejo invulgar da língua, um enamoramento
com a língua, que desferia com vigor e frescura, num descobrimento singular de
tesouros escondidos num glossário aparentemente gasto mas que ele punha a
vibrar com timbre escandalosamente renovado.
Em Lourenço Marques, bonita cidade do Índico feita
para, com gosto, se morar nela, habitava uma gente singular e culta que nos ia
enchendo a alma de um bom veneno propiciador: o sibilino e britânico Rola
Pereira, outrora amigo de Pessoa e de Sá Carneiro, que ensinava matemática
sedutora a toda a gente menos ao Alberto e que, nos interstícios dos números em
parada, ia mesmerizando os jovens ouvintes com a última palavra em poesia
lusíada: Fernando Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, António Botto, José Régio...; ou
o imprevisível e cultíssimo Domingos Reis Costa, professor de Francês e
Português e velho amigo de Hernâni Cidade e Miguéis, que trazia, da sua
vastíssima (e lida!) biblioteca, livros que ia disseminando pelas mãos vorazes
dos que para eles já iam preparados pelas palavras prefaciadoras, sugestivas e
não raro embebidas em tónico veneno, daquele exilado por razões que tinham a
ver com amores de perdição (diziam, sussurrando, as más línguas). Naqueles
subtrópicos, não se morria exactamente de pasmo – como o poderiam ter dito
tantos que por lá deixaram rasto, o Alberto, o João da Fonseca Amaral, o Rui
Knopfli, a Maria de Lourdes Cortez, o Vítor Matos e Sá, o Reinaldo Ferreira, o
António Esquível, o Fernando Ferreira, o Cardigos dos Reis, a Maria Luisa
Soares, a Glória de Sant´Ana, o Tiago Oliveira, o Cordeiro de Brito, tantos
outros.
Cheio de “razões de queixa”, o Alberto não foi
nunca, contudo, nem um amargo, nem um deprimido. Cantava, nos seus textos, “a
maravilha da vida [e] o horror da vida”, mas nem a maravilha lhe adocicava a
descascada elegância do dizer, nem o horror lhe tirava o apetite de viver;
cantava para ajudar “a não esquecer nunca a liberdade”, mas nunca consentiu que
o seu amor à liberdade lhe desviasse a pena até às fronteiras da demagogia.
Quis que os seus versos “tivessem vida própria como os gatos, os tigres, os homens
belos com olhos de criança, os lemes e os quadros a óleo, que mudam com a
temperatura do mar, a luz do dia e o sol da noite.”
As suas paixões literárias nunca o cegavam e, no
momento próprio, era capaz de fazer as mais inesperadas e ousadas reservas,
mesmo às vacas sagradas da literatura, nas quais ninguém ousaria tocar nem com
uma flor. Para dar só um exemplo, numa crónica enviada para o semanário A
Voz de Moçambique e publicada no nº. 150 de 11.10.1964, intitulada
provocadoramente “Nota muito atrevida sobre Baudelaire”, começa num tom
apologético: “Numa casa alheia, num momento de tédio, tiro da estante
Baudelaire, e cai-me como um precipício este verso sublime: «Nous avons dit
souvent d’impérissables choses». O tom é quase o da linguagem falada. Mas não é
prosa. É um verso espantoso; para além da magia sónica (que não chegaria) está
concentrada uma experiência amorosa ao limite da ambiguidade e até quase da
ironia: nenhumas coisas ditas são imperecíveis; no entanto, o amor e a arte
exigem – na sua lucidez delirante – ou no seu delírio lúcido – essa dimensão infinita.”
Para, logo a seguir, abrir fogo com as suas bem municiadas baterias: “A minha
querela com Baudelaire é que ele faz da poesia – com o seu culto do remorso, a
obsessão do pecado, a mise-en-scène macabra, as aparições múltiplas do Diabo,
do Mal, do Inferno (com traços, muitas vezes, de gravura barata) – uma espécie
de confessionário católico”. Avesso a tudo quanto oprime – o conceito de
pecado, o Diabo dos que nele acreditam, o remorso, o Inferno anunciado -, o
Alberto, no mesmo texto em que rejeita o Baudelaire de tudo isto, exalta o
outro Baudelaire, o do amor e da arte que “exigem – na sua lucidez delirante –
ou no seu delírio lúcido – uma dimensão infinita.” É esta dimensão infinita,
este excesso, este exagero de afirmação que dão a quase toda a
sua poesia uma força única e um fulgor inigualado. Veja-se, por exemplo, o belo
poema “A língua Portuguesa”:
Esta língua que eu amo
Com seu bárbaro lanho
Seu mel
Seu helénico sal
E azeitona
Esta limpidez
Que se nimba
De surda
Quanta vez
Esta maravilha
Assassinadíssima
Por quase todos que a falam
Este requebro
Esta ânfora
Cantante
Esta máscula espada
Graciosíssima
Capaz de brandir os caminhos todos
De todos os ares
De todas as danças
Esta
voz
Esta língua
Soberba
Capaz de todas as cores
Todos os riscos
De expressão
(E ganha sempre a partida)
Esta língua portuguesa
Capaz de tudo
Como uma mulher realmente
Apaixonada
Esta língua
É minha Índia constante
Minha núpcia ininterrupta
Meu amor para sempre
Minha libertinagem
Minha eterna Virgindade
Note-se, neste poema, os característicos excessos
de afirmação: “Esta maravilha / Assassinadíssima”, / “Esta máscula
espada / Graciosíssima”/ “Esta língua / Soberba / Capaz de
todas as cores”, etc.etc. E note-se também como ele “isola” os superlativos
absolutos simples, dando-lhes a categoria de constituírem cada um deles, só por
si, um verso único (“Assassinadíssima”, “Graciosíssima”).
Uma das características mais atraentes da arte deste
grande fabbro é a tensão que, nele, vai constantemente existindo entre
este excesso “romântico” e o mais rigoroso governo dos constrangimentos que a
grande arte clássica recomenda: esta tensão sublima-se, de modo grandioso, na
sua colecção de Sonetos, editada em Veneza, em 1991 – uma das mais belas
colectâneas desta forma poética – o
soneto – que entre nós se publicaram: uma forma tão exigente, que Godeau, bispo
de Vence, insinuava não ser o soneto coisa deste mundo.
O meu convívio com Alberto de Lacerda viria a
reatar-se, de modo algum tanto errático, em Lisboa, entre 1947, ano em que aqui
cheguei, vindo de Moçambique, e 1951, ano em que ele partiu para Londres, onde,
para sempre se fixaria. E retomou-se, em Londres, onde eu próprio vivi, entre
1978 e 1995. Foi aqui que mais e mais frutuosamente (para mim, e espero que
também alguma coisa, para ele) convivemos.
Em Lisboa, lembra-me sobretudo o Alberto que nos
aparecia lá para os lados da Alameda Afonso Henriques e arredores, onde
vivíamos eu, o Alberto Parente (que, por essa altura ainda poetava) e o Nuno
Ribeiro, ambos de Moçambique e ambos com apetências culturais muito vincadas. O
Alberto vinha feito caixeiro-viajante da Távola Redonda e dos livros da
Sophia, que nos vendia, com grande empenho e um discurso “de apoio” sabiamente
persuasivo. Falava-nos de poesia portuguesa e francesa, de música (eu acabara
de descobri-la, com Mozart), de pintura e da vida cultural em Lisboa, sobre a
qual exercitava o seu minucioso conhecimento e a sua ácida ironia. E fazia-o
com segurança, convicção e discriminação. Ao pé dele – submergido pelas
Matemáticas Gerais, pela Química Geral e pela Geometria Descritiva – sentia-me
um bárbaro, apanhando migalhas de sabedoria e de outras coisas sublimes que ele
ia semeando com alguma displicência e um toque de ironia. Os seus textos de
prosa na Távola, a sua poesia, também na Távola, mostravam-me
requintes de leitura, sensibilidade e inteligência crítica que me deslumbravam
e quase me ofuscavam. Eu lia outras coisas, fazia outras descobertas: Gide,
Proust, Ibsen, Shaw, Bunine, Tcheckov, Régio, Shakespeare, Baudelaire,
Montaigne, Goethe... Mas invejava a agilidade, a fulgurância, a subtileza, a
ironia acerada do Alberto. Depois, um dia, desapareceu. Fora para Londres.
Viria a reencontrá-lo, em 1963, em Lourenço Marques, para onde eu regressara,
em 1955. Fora ali, em revisita, uma revisita que nada queria ter de saudosista:
“Não vim à procura de nada / Nem de saudades que não tenho / Nem da
carga do tempo perdido / Nem de conflitos sobrenaturais / Do tempo e do espaço
/ [...] / Vim para ver / Para ver de novo / Para contemplar sem perguntas / Não
vim à procura de nada / Um rio não se interroga / O vento não se arrepende”.
Viajou por Moçambique inteiro, fez um extraordinário recital de poesia na
Câmara Municipal de Lourenço Marques (lembro-me, com particular emoção, das
suas leituras de Camões, Herberto Helder e Manuel da Fonseca) e demorou-se, com
êxtase criativo, na sua Ilha de Moçambique, onde nascera trinta e cinco anos
antes:
Ó Oriente surgido do mar
Ó minha Ilha de Moçambique
Perfume solto no oceano
Como se fosse em pleno ar
Ó minha Ilha de Moçambique
Perfume solto no oceano
Como se fosse em pleno ar
Ou ainda:
brincam
No meio da rua como peregrinos
Dum mundo mais aberto e cristalino
Ou ainda, num dos seus excessos magnificamente
dominados:
Ó corpos dados com melancolia
Às melodias do meu ardor!
Ó pretas lindas! Ponta da Ilha!
Vestem soberbos panos de cor.
Deles se despem com grã doçura,
Vénus despida do próprio mar
É com doçura que negras, lindas,
Desaparecem no meu calor.
Em Vila Cabral, dedica um poema corajoso a Mouzinho
de Albuquerque, nem politicamente correcto, nem colonialmente apologético,
apenas um “retrato” prodigioso do personagem, num equilíbrio de sombras e de
luzes, naquela espécie de “justiça” que a arte sabe fazer, porque sabe
compreender:
Tinhas o germe odioso dos tiranos
O fogo sinistro da intolerância
Mas que era feito de uma só palavra
Herói soberbo
Ó árvore gigantesca
Que tu próprio abateste
Em vez dos deuses
Que te contemplam a distância
Juntar no mesmo personagem o “odioso dos tiranos” e
o “herói soberbo”, eis um tipo de justiça que só os grandes da imaginação
costumam saber fazer – para eterna celeuma dos futuros leitores (disto,
efectivamente, se fazem, depois, as “discussões” e as “teses” mais ou menos
estéreis, porque argumentam inutilmente com a força afirmativa e contraditória
da vida – que os poetas tão bem intuem).
Mas foi em Londres, repito, entre 1978 e 1995, que o
nosso convívio se apertou. Não durava, nos primeiros tempos, o ano todo, porque
o Alberto se dividia, por essa altura, entre a América e a Inglaterra. Mas,
quando os seus compromissos americanos cessaram, estava quase sempre em
Londres, fora uma ou outra saída, por pouco tempo. Vinha à embaixada com
regularidade e saíamos para almoçar, quase invariavelmente, numa cafeteria
simpática, no Habitat, de King’s Road. As conversas não eram nunca repetitivas: o Alberto tinha
uma variadíssima paleta de interesses, uma originalidade de visão e um apetite
de vida que lhe não permitiam repetir-se cansativamente. Excepto quando falava
de Portugal e dos portugueses. De cada vez que vinha a Lisboa, para reencontrar
amigos e lugares, regressava a Londres como uma vespa assanhada. Tinha
dificuldade em perceber ou, pelo menos, em aceitar que caía em Lisboa, no meio
de agendas já fixadas e compromissos já assumidos, que tornavam inviável uma
disponibilidade total e imediata. Isto feria-o mortalmente, como
uma traição. Vigiava, com acinte, os gestos da pessoa com quem estava: se os olhos se desviavam,
mesmo discretamente, para o relógio de pulso, a controlar o tempo, estava o
caldo entornado. Deixava-o igualmente perplexo e, aqui, com mais do que alguma
razão, a pouca curiosidade mostrada por amigos e conhecidos portugueses,
relativamente à sua vida em Londres, à vida em Londres: embrenhados na intriga
paroquial lusíada, que tinham como centro do mundo, falavam, com deleite, de
casos e escândalos locais, não revelando a mínima curiosidade por Londres, pela
vida cultural de Londres, por tudo quanto não eram as conspirações vigentes na
aldeola lusitana. Observei-lhe, várias vezes, que não entendia, visto isso, por
que insistia em visitar Portugal. Claro que era o país da língua dele, onde
tinha familiares e velhos amigos (cada vez menos); mas, se as pessoas e a sua
maneira de estarem no mundo o indispunham de modo tão visível, para quê teimar?
Havia nele contradições insanáveis, velhos fantasmas
não exorcizados, ressentimentos não aplacados e um desejo quase mórbido de ir
lá, ou antes, vir cá, para se poder, convenientemente... indignar. E
havia também , nele, algumas cegueiras e ingenuidades. Um dia, por exemplo, à
saída da cafeteria do Habitat, enquanto esperávamos pelo autocarro,
vestiu, de repente, um ar solene e meio embaraçado e disse-me que “me devia”
uma explicação ou uma confissão. Fiquei alarmado... Que viria dali? Esclareceu:
éramos amigos havia tanto tempo e nunca me dissera a verdade acerca de si
próprio: era homossexual! Não pude deixar de sorrir e respondi-lhe: “Meu caro
Alberto, ainda tu não sabias que eras e já eu sabia que eras...” Olhou-me, meio
aliviado, meio intrigado: “Era assim tão visível?” Claro que era, mas fugi à
verdade: “Acho que não. Mas talvez eu fosse perspicaz...” A verdade é que,
quando o reencontrara em Lisboa, entre 1947 e 1951, tornara-se para mim claro
que o Alberto ainda ignorava a sua verdadeira natureza. Teve até uma paixão
fortíssima – e suponho que mantida secreta – por uma grande poetisa portuguesa:
alguns dos seus versos alimentam-se dessa pulsão heterossexual embora, mais do
que provavelmente, platónica e, com alguma probabilidade, ignorada pelo seu objecto.
Mas foram as suas animadas conversas prodigiosamente
alimentadas pelo seu convívio apaixonado com a literatura, a pintura, a
escultura e a música, e não pouco pelo seu variado comércio com alguns figurões
do mundo universal da cultura – que me deram um dia a ideia de propor ao então
Presidente do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Fernando de Mello
Moser, a criação de qualquer coisa como um lugar de super-leitor ou animador
cultural, para todo o Reino Unido ou até extensível a outros países, para o homem
cultíssimo e excelso conversador que era o Alberto: o qual meteria num chinelo,
perdoe-se-me a expressão popular, tanto leitor afligido de fastio ou de pouca
capacidade de comunicação. O Alberto poderia, sugeri eu, passar períodos de 3
meses – ou de 2 meses, a ver – em cada universidade, semeando saber,
entusiasmo, sedução cultural. Mello Moser, personalidade que não esquecerei –
pela competência, sensibilidade, integridade e elegância moral – mostrou-se
sensível à proposta, gostou até francamente da ideia e prometeu ir ver a volta
burocrático-jurídico-administrativa que poderia dar-lhe. Morreu, infelizmente,
pouco depois e nunca mais me pareceu haver abertura para reincidir na proposta.
Ficou-me a consolação de ter-se tornado possível, graças à pronta intervenção,
a meu pedido, de Teresa Patrício de Gouveia, a atribuição de um subsídio de
mérito cultural que veio, até certo ponto, ajudar, somado à magra reforma que
lhe ficara das suas incursões universitárias nos Estados Unidos (Austin, Nova
Iorque, Boston), a ter uma velhice um
pouco menos desprovida. Aproveito para esclarecer que, ao contrário do que já
tem sido dito, Alberto de Lacerda não
“morreu na miséria”, tal como Fernando Pessoa se não extinguiu “vadio e
pedinte”. Os mitos miserabilistas têm, entre nós, circulação afortunada mas nem
sempre correspondem à verdade dos factos. Alberto não viveu folgadamente mas
também não cortejou a miséria: comprava livros, ia a concertos e exposições e
teve, felizmente, bons amigos que o apreciavam e acarinhavam. A vida teve, para
ele, maravilhas e horrores. Não será um pouco o caso de quase todos nós? Uma
das maravilhas que na vida lhe aconteceu foi, com excepção dos últimos dois ou
três anos da sua existência, a cidade de Londres, que se tornaria, para si,
como disse, numa das elegias de Londres, a “cidade entre todas bem amada”,
“Londres / Centro exacto / Da liberdade” : foi ali que, finalmente, se sentiu
em casa, fazendo, feliz, ainda na velhice, a eterna, poupada vida de estudante,
indo ainda cedo, pela manhã, para o Picasso, na King’s Road, carregado
de jornais e da vontade de implicar com tudo o que interferisse com o seu
desejo de estar à mesa, a ler, sossegado, sem interposições sonoras de rádios
ou televisões...Ali fruiu, com intensidade, com continuidade, com sofreguidão,
o que há de melhor no mundo, em pintura, em escultura, em música, em ballet, em
teatro declamado, em literatura, em convívio civilizado com tantos dos seus
pares.
O desencanto é, contudo, o companheiro certo do
envelhecer: como se a aproximação da morte nos induzisse a começarmos a pôr
defeitos àquilo que iremos em breve
abandonar : nos últimos tempos, ao telefone, o Alberto dizia-nos, com
amargura, do pesadelo em que Londres se lhe estava a tornar. “Aquilo” já pouco
ou nada tinha que ver com a “cidade entre todas bem amada”. É bem certo: quando
morremos, esboroa-se também o mundo à nossa volta...
Falando da obra de Giacometti, por altura da morte
deste, num texto – “Notações” – publicado no Notícias de Lourenço Marques,
em 26. 2. 1966, Alberto escrevia: “Eu esperava coisas ainda mais sublimes,
simplicidades ainda mais misteriosas”. Já em data anterior, 21. 10. 1965, e no
mesmo jornal, escrevera: “É preciso redescobrir a elegância. Mas por dentro”. E
logo a seguir: “A elegância é uma raiz. Não é um ornamento”. Elegância e
simplicidade. Eis dois vectores fundamentais que compõem o polígono de forças que
suporta a obra singularmente profunda e transparente do autor de Palácio.
Simplicidade: ele sempre a defendeu, como o outro único lado possível da
profundidade. Por isso abominava o
jargon pacóvio e “snob” de tanto crítico palrador, obscurantista e pouco
sensível à verdadeira poesia. Num texto publicado ainda no Notícias de
Lourenço Marques, em 6. 4. 1966, escrevia isto: “O autor de Seven Types
of Ambiguity [William Empson] tem o poder raro de conseguir profundidade de
pensamento expressa de uma maneira lisa, directa, elegante. E incapaz de
pedantaria [...]”. Toda a obra de Alberto de Lacerda – poesia, ensaio, crónica
– é uma eloquente homenagem à profundidade transparente e elegante, ao horror
desmedido à pedantaria e ao indecifrado mistério da simplicidade. "
Eugénio Lisboa, in Uma Conversa Silenciosa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, S. A., Março de 2019, pp.225-239
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