quinta-feira, 30 de outubro de 2025

A maravilha da vida e o horror da vida

 

ALBERTO DE LACERDA:
A MARAVILHA DA VIDA E O HORROR DA VIDA
por Eugénio Lisboa
"Quando conheci Alberto de Lacerda, em Lourenço Marques, em meados dos anos quarenta (do século passado), havia, entre nós, um factor comum: gostávamos ambos de ler e líamos tudo a que podíamos deitar mão. Mas havia também uma diferença : o Alberto lia sobretudo poesia e eu lia sobretudo ficção, teatro e História. Não que a poesia me não atraísse : o de António Nobre chegara-me, com alarme, às mãos, bem como o Fel, de José Duro (que me pus a imitar, naquela espécie de atracção-repulsão que a morte exerce sobre os adolescentes). Mas não tinha poesia facilmente à mão. Os Poemas de Deus e do Diabo, difíceis de encontrar no mercado local, ouvi-os, lidos por amigos que se deixavam facilmente fascinar pela eloquência sulfúrica (e bela) do bardo de Portalegre. De Fernando Pessoa, chegaram-me, também de ouvido, as heresias de Caeiro e os histerismos de Campos. E pouco mais. Com o Alberto, era diferente: dois anos mais velho, dispondo de muito mais tempo porque o liceu lhe interessava pouco e era faltão, dotado de um apetite insaciável pela poesia (que desencantava, por compra, por empréstimo ou em casa do pai), pela arte e pela vida, ferido de ambição desmedida e daquele modicum de megalomania que aflige tanto adolescente e não é mal por aí além, o Alberto devorava poesia, escrevia poesia e falava – já então – admiravelmente de poesia. Era um conversador extraordinário, cheio de caprichos, de paixões, de rejeições, de convicções em itálico bem acentuado, de ironias desmedidas, de achados inesquecíveis... Como poucos, sabia ser afrontoso, com um toque de maldade de uma elegância florentina. Mas não era nunca pedante e tinha um horror sagrado pelos valores “estabelecidos” e pomposos, por títulos, por “importâncias”. Lia o que lia e descobria o que descobria, pisando, por si próprio, terreno ainda novo e inexplorado.
Como todos os adolescentes, tinha conflitos  interiores e familiares, histórias que teria pudor de contar fosse a quem fosse (Régio, por essa altura, marcava-o, embora, depois passasse a rejeitá-lo com alguma injustiça virulenta).
Intrigava-me algum tanto verificar que os grandes ficcionistas que, por essa altura, me iam apaixonando (Stendhal, Tolstoi, Dostoiewsky, Charlotte Brontë) – eram postos à distância pelo Alberto que se “não atrevia” a mergulhar naquela massa, romanesca de dimensões, para ele, aterradoras. Tratava-se, pareceu-me, de uma espécie de receio... de quase pânico! Mais tarde, mudaria e viria a ler, com prazer e argúcia, numa aproximação sempre pessoal, grandes obras de ficção.
Havia, já então, no Alberto, algo de saliente que nos impressionava sem que soubéssemos  muito bem identificá-lo: um manejo invulgar da língua, um enamoramento com a língua, que desferia com vigor e frescura, num descobrimento singular de tesouros escondidos num glossário aparentemente gasto mas que ele punha a vibrar com timbre escandalosamente renovado.
Em Lourenço Marques, bonita cidade do Índico feita para, com gosto, se morar nela, habitava uma gente singular e culta que nos ia enchendo a alma de um bom veneno propiciador: o sibilino e britânico Rola Pereira, outrora amigo de Pessoa e de Sá Carneiro, que ensinava matemática sedutora a toda a gente menos ao Alberto e que, nos interstícios dos números em parada, ia mesmerizando os jovens ouvintes com a última palavra em poesia lusíada: Fernando Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, António Botto, José Régio...; ou o imprevisível e cultíssimo Domingos Reis Costa, professor de Francês e Português e velho amigo de Hernâni Cidade e Miguéis, que trazia, da sua vastíssima (e lida!) biblioteca, livros que ia disseminando pelas mãos vorazes dos que para eles já iam preparados pelas palavras prefaciadoras, sugestivas e não raro embebidas em tónico veneno, daquele exilado por razões que tinham a ver com amores de perdição (diziam, sussurrando, as más línguas). Naqueles subtrópicos, não se morria exactamente de pasmo – como o poderiam ter dito tantos que por lá deixaram rasto, o Alberto, o João da Fonseca Amaral, o Rui Knopfli, a Maria de Lourdes Cortez, o Vítor Matos e Sá, o Reinaldo Ferreira, o António Esquível, o Fernando Ferreira, o Cardigos dos Reis, a Maria Luisa Soares, a Glória de Sant´Ana, o Tiago Oliveira, o Cordeiro de Brito, tantos outros.
Cheio de “razões de queixa”, o Alberto não foi nunca, contudo, nem um amargo, nem um deprimido. Cantava, nos seus textos, “a maravilha da vida [e] o horror da vida”, mas nem a maravilha lhe adocicava a descascada elegância do dizer, nem o horror lhe tirava o apetite de viver; cantava para ajudar “a não esquecer nunca a liberdade”, mas nunca consentiu que o seu amor à liberdade lhe desviasse a pena até às fronteiras da demagogia. Quis que os seus versos “tivessem vida própria como os gatos, os tigres, os homens belos com olhos de criança, os lemes e os quadros a óleo, que mudam com a temperatura do mar, a luz do dia e o sol da noite.”
As suas paixões literárias nunca o cegavam e, no momento próprio, era capaz de fazer as mais inesperadas e ousadas reservas, mesmo às vacas sagradas da literatura, nas quais ninguém ousaria tocar nem com uma flor. Para dar só um exemplo, numa crónica enviada para o semanário A Voz de Moçambique e publicada no nº. 150 de 11.10.1964, intitulada provocadoramente “Nota muito atrevida sobre Baudelaire”, começa num tom apologético: “Numa casa alheia, num momento de tédio, tiro da estante Baudelaire, e cai-me como um precipício este verso sublime: «Nous avons dit souvent d’impérissables choses». O tom é quase o da linguagem falada. Mas não é prosa. É um verso espantoso; para além da magia sónica (que não chegaria) está concentrada uma experiência amorosa ao limite da ambiguidade e até quase da ironia: nenhumas coisas ditas são imperecíveis; no entanto, o amor e a arte exigem – na sua lucidez delirante – ou no seu delírio lúcido – essa dimensão infinita.” Para, logo a seguir, abrir fogo com as suas bem municiadas baterias: “A minha querela com Baudelaire é que ele faz da poesia – com o seu culto do remorso, a obsessão do pecado, a mise-en-scène macabra, as aparições múltiplas do Diabo, do Mal, do Inferno (com traços, muitas vezes, de gravura barata) – uma espécie de confessionário católico”. Avesso a tudo quanto oprime – o conceito de pecado, o Diabo dos que nele acreditam, o remorso, o Inferno anunciado -, o Alberto, no mesmo texto em que rejeita o Baudelaire de tudo isto, exalta o outro Baudelaire, o do amor e da arte que “exigem – na sua lucidez delirante – ou no seu delírio lúcido – uma dimensão infinita.” É esta dimensão infinita, este excesso, este exagero de afirmação que dão a quase toda a sua poesia uma força única e um fulgor inigualado. Veja-se, por exemplo, o belo poema “A língua Portuguesa”:
 
Esta língua que eu amo
Com seu bárbaro lanho
Seu mel
Seu helénico sal
E azeitona
Esta limpidez
Que se nimba
De surda
Quanta vez
Esta maravilha
Assassinadíssima
Por quase todos que a falam
Este requebro
Esta ânfora
Cantante
Esta máscula espada
Graciosíssima
Capaz de brandir os caminhos todos
De todos os ares
De todas as danças
Esta voz
Esta língua
Soberba
Capaz de todas as cores
Todos os riscos
De expressão
(E ganha sempre a partida)
Esta língua portuguesa
Capaz de tudo
Como uma mulher realmente
Apaixonada
Esta língua
É minha Índia constante
Minha núpcia ininterrupta
Meu amor para sempre
Minha libertinagem
Minha eterna Virgindade
 
Note-se, neste poema, os característicos excessos de afirmação: “Esta maravilha / Assassinadíssima”, / “Esta máscula espada / Graciosíssima”/ “Esta língua / Soberba / Capaz de todas as cores”, etc.etc. E note-se também como ele “isola” os superlativos absolutos simples, dando-lhes a categoria de constituírem cada um deles, só por si, um verso único (“Assassinadíssima”, “Graciosíssima”).
Uma das características mais atraentes da arte deste grande fabbro é a tensão que, nele, vai constantemente existindo entre este excesso “romântico” e o mais rigoroso governo dos constrangimentos que a grande arte clássica recomenda: esta tensão sublima-se, de modo grandioso, na sua colecção de Sonetos, editada em Veneza, em 1991 – uma das mais belas colectâneas  desta forma poética – o soneto – que entre nós se publicaram: uma forma tão exigente, que Godeau, bispo de Vence, insinuava não ser o soneto coisa deste mundo.
O meu convívio com Alberto de Lacerda viria a reatar-se, de modo algum tanto errático, em Lisboa, entre 1947, ano em que aqui cheguei, vindo de Moçambique, e 1951, ano em que ele partiu para Londres, onde, para sempre se fixaria. E retomou-se, em Londres, onde eu próprio vivi, entre 1978 e 1995. Foi aqui que mais e mais frutuosamente (para mim, e espero que também alguma coisa, para ele) convivemos.
Em Lisboa, lembra-me sobretudo o Alberto que nos aparecia lá para os lados da Alameda Afonso Henriques e arredores, onde vivíamos eu, o Alberto Parente (que, por essa altura ainda poetava) e o Nuno Ribeiro, ambos de Moçambique e ambos com apetências culturais muito vincadas. O Alberto vinha feito caixeiro-viajante da Távola Redonda e dos livros da Sophia, que nos vendia, com grande empenho e um discurso “de apoio” sabiamente persuasivo. Falava-nos de poesia portuguesa e francesa, de música (eu acabara de descobri-la, com Mozart), de pintura e da vida cultural em Lisboa, sobre a qual exercitava o seu minucioso conhecimento e a sua ácida ironia. E fazia-o com segurança, convicção e discriminação. Ao pé dele – submergido pelas Matemáticas Gerais, pela Química Geral e pela Geometria Descritiva – sentia-me um bárbaro, apanhando migalhas de sabedoria e de outras coisas sublimes que ele ia semeando com alguma displicência e um toque de ironia. Os seus textos de prosa na Távola, a sua poesia, também na Távola, mostravam-me requintes de leitura, sensibilidade e inteligência crítica que me deslumbravam e quase me ofuscavam. Eu lia outras coisas, fazia outras descobertas: Gide, Proust, Ibsen, Shaw, Bunine, Tcheckov, Régio, Shakespeare, Baudelaire, Montaigne, Goethe... Mas invejava a agilidade, a fulgurância, a subtileza, a ironia acerada do Alberto. Depois, um dia, desapareceu. Fora para Londres. Viria a reencontrá-lo, em 1963, em Lourenço Marques, para onde eu regressara, em 1955. Fora ali, em revisita, uma revisita que nada queria ter de saudosista: “Não vim à procura de nada / Nem de saudades que não tenho / Nem da carga do tempo perdido / Nem de conflitos sobrenaturais / Do tempo e do espaço / [...] / Vim para ver / Para ver de novo / Para contemplar sem perguntas / Não vim à procura de nada / Um rio não se interroga / O vento não se arrepende”. Viajou por Moçambique inteiro, fez um extraordinário recital de poesia na Câmara Municipal de Lourenço Marques (lembro-me, com particular emoção, das suas leituras de Camões, Herberto Helder e Manuel da Fonseca) e demorou-se, com êxtase criativo, na sua Ilha de Moçambique, onde nascera trinta e cinco anos antes:
          
Ó Oriente surgido do mar
Ó minha Ilha de Moçambique
Perfume solto no oceano
Como se fosse em pleno ar
 
Ou ainda:

Ilha onde os cães não ladram e onde as crianças
brincam
No meio da rua como peregrinos
Dum mundo mais aberto e cristalino
 
Ou ainda, num dos seus excessos magnificamente dominados:
 
Ó corpos dados com melancolia
Às melodias do meu ardor!
Ó pretas lindas! Ponta da Ilha!
Vestem soberbos panos de cor.
Deles se despem com grã doçura,
Vénus despida do próprio mar
É com doçura que negras, lindas,
Desaparecem no meu calor.
 
Em Vila Cabral, dedica um poema corajoso a Mouzinho de Albuquerque, nem politicamente correcto, nem colonialmente apologético, apenas um “retrato” prodigioso do personagem, num equilíbrio de sombras e de luzes, naquela espécie de “justiça” que a arte sabe fazer, porque sabe compreender:
 
Tinhas o germe odioso dos tiranos
O fogo sinistro da intolerância
Mas que era feito de uma só palavra
Herói soberbo
Ó árvore gigantesca
Que tu próprio abateste
Em vez dos deuses
Que te contemplam a distância
 
Juntar no mesmo personagem o “odioso dos tiranos” e o “herói soberbo”, eis um tipo de justiça que só os grandes da imaginação costumam saber fazer – para eterna celeuma dos futuros leitores (disto, efectivamente, se fazem, depois, as “discussões” e as “teses” mais ou menos estéreis, porque argumentam inutilmente com a força afirmativa e contraditória da vida – que os poetas tão bem intuem).
Mas foi em Londres, repito, entre 1978 e 1995, que o nosso convívio se apertou. Não durava, nos primeiros tempos, o ano todo, porque o Alberto se dividia, por essa altura, entre a América e a Inglaterra. Mas, quando os seus compromissos americanos cessaram, estava quase sempre em Londres, fora uma ou outra saída, por pouco tempo. Vinha à embaixada com regularidade e saíamos para almoçar, quase invariavelmente, numa cafeteria simpática, no Habitat, de King’s Road. As conversas   não eram nunca repetitivas: o Alberto tinha uma variadíssima paleta de interesses, uma originalidade de visão e um apetite de vida que lhe não permitiam repetir-se cansativamente. Excepto quando falava de Portugal e dos portugueses. De cada vez que vinha a Lisboa, para reencontrar amigos e lugares, regressava a Londres como uma vespa assanhada. Tinha dificuldade em perceber ou, pelo menos, em aceitar que caía em Lisboa, no meio de agendas já fixadas e compromissos já assumidos, que tornavam inviável uma disponibilidade total e imediata. Isto feria-o mortalmente, como uma traição. Vigiava, com acinte, os gestos da pessoa  com quem estava: se os olhos se desviavam, mesmo discretamente, para o relógio de pulso, a controlar o tempo, estava o caldo entornado. Deixava-o igualmente perplexo e, aqui, com mais do que alguma razão, a pouca curiosidade mostrada por amigos e conhecidos portugueses, relativamente à sua vida em Londres, à vida em Londres: embrenhados na intriga paroquial lusíada, que tinham como centro do mundo, falavam, com deleite, de casos e escândalos locais, não revelando a mínima curiosidade por Londres, pela vida cultural de Londres, por tudo quanto não eram as conspirações vigentes na aldeola lusitana. Observei-lhe, várias vezes, que não entendia, visto isso, por que insistia em visitar Portugal. Claro que era o país da língua dele, onde tinha familiares e velhos amigos (cada vez menos); mas, se as pessoas e a sua maneira de estarem no mundo o indispunham de modo tão visível, para quê teimar?
Havia nele contradições insanáveis, velhos fantasmas não exorcizados, ressentimentos não aplacados e um desejo quase mórbido de ir lá, ou antes, vir cá, para se poder, convenientemente... indignar. E havia também , nele, algumas cegueiras e ingenuidades. Um dia, por exemplo, à saída da cafeteria do Habitat, enquanto esperávamos pelo autocarro, vestiu, de repente, um ar solene e meio embaraçado e disse-me que “me devia” uma explicação ou uma confissão. Fiquei alarmado... Que viria dali? Esclareceu: éramos amigos havia tanto tempo e nunca me dissera a verdade acerca de si próprio: era homossexual! Não pude deixar de sorrir e respondi-lhe: “Meu caro Alberto, ainda tu não sabias que eras e já eu sabia que eras...” Olhou-me, meio aliviado, meio intrigado: “Era assim tão visível?” Claro que era, mas fugi à verdade: “Acho que não. Mas talvez eu fosse perspicaz...” A verdade é que, quando o reencontrara em Lisboa, entre 1947 e 1951, tornara-se para mim claro que o Alberto ainda ignorava a sua verdadeira natureza. Teve até uma paixão fortíssima – e suponho que mantida secreta – por uma grande poetisa portuguesa: alguns dos seus versos alimentam-se dessa pulsão heterossexual embora, mais do que provavelmente, platónica e, com alguma probabilidade, ignorada pelo seu objecto.
Mas foram as suas animadas conversas prodigiosamente alimentadas pelo seu convívio apaixonado com a literatura, a pintura, a escultura e a música, e não pouco pelo seu variado comércio com alguns figurões do mundo universal da cultura – que me deram um dia a ideia de propor ao então Presidente do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Fernando de Mello Moser, a criação de qualquer coisa como um lugar de super-leitor ou animador cultural, para todo o Reino Unido ou até extensível a outros países, para o homem cultíssimo e excelso conversador que era o Alberto: o qual meteria num chinelo, perdoe-se-me a expressão popular, tanto leitor afligido de fastio ou de pouca capacidade de comunicação. O Alberto poderia, sugeri eu, passar períodos de 3 meses – ou de 2 meses, a ver – em cada universidade, semeando saber, entusiasmo, sedução cultural. Mello Moser, personalidade que não esquecerei – pela competência, sensibilidade, integridade e elegância moral – mostrou-se sensível à proposta, gostou até francamente da ideia e prometeu ir ver a volta burocrático-jurídico-administrativa que poderia dar-lhe. Morreu, infelizmente, pouco depois e nunca mais me pareceu haver abertura para reincidir na proposta. Ficou-me a consolação de ter-se tornado possível, graças à pronta intervenção, a meu pedido, de Teresa Patrício de Gouveia, a atribuição de um subsídio de mérito cultural que veio, até certo ponto, ajudar, somado à magra reforma que lhe ficara das suas incursões universitárias nos Estados Unidos (Austin, Nova Iorque, Boston), a ter uma velhice  um pouco menos desprovida. Aproveito para esclarecer que, ao contrário do que já tem sido dito, Alberto de Lacerda não “morreu na miséria”, tal como Fernando Pessoa se não extinguiu “vadio e pedinte”. Os mitos miserabilistas  têm, entre nós, circulação afortunada mas nem sempre correspondem à verdade dos factos. Alberto não viveu folgadamente mas também não cortejou a miséria: comprava livros, ia a concertos e exposições e teve, felizmente, bons amigos que o apreciavam e acarinhavam. A vida teve, para ele, maravilhas e horrores. Não será um pouco o caso de quase todos nós? Uma das maravilhas que na vida lhe aconteceu foi, com excepção dos últimos dois ou três anos da sua existência, a cidade de Londres, que se tornaria, para si, como disse, numa das elegias de Londres, a “cidade entre todas bem amada”, “Londres / Centro exacto / Da liberdade” : foi ali que, finalmente, se sentiu em casa, fazendo, feliz, ainda na velhice, a eterna, poupada vida de estudante, indo ainda cedo, pela manhã, para o Picasso, na King’s Road, carregado de jornais e da vontade de implicar com tudo o que interferisse com o seu desejo de estar à mesa, a ler, sossegado, sem interposições sonoras de rádios ou televisões...Ali fruiu, com intensidade, com continuidade, com sofreguidão, o que há de melhor no mundo, em pintura, em escultura, em música, em ballet, em teatro declamado, em literatura, em convívio civilizado com tantos dos seus pares.
O desencanto é, contudo, o companheiro certo do envelhecer: como se a aproximação da morte nos induzisse a começarmos a pôr defeitos àquilo que iremos em breve  abandonar : nos últimos tempos, ao telefone, o Alberto dizia-nos, com amargura, do pesadelo em que Londres se lhe estava a tornar. “Aquilo” já pouco ou nada tinha que ver com a “cidade entre todas bem amada”. É bem certo: quando morremos, esboroa-se também o mundo à nossa volta...
Falando da obra de Giacometti, por altura da morte deste, num texto – “Notações” – publicado no Notícias de Lourenço Marques, em 26. 2. 1966, Alberto escrevia: “Eu esperava coisas ainda mais sublimes, simplicidades ainda mais misteriosas”. Já em data anterior, 21. 10. 1965, e no mesmo jornal, escrevera: “É preciso redescobrir a elegância. Mas por dentro”. E logo a seguir: “A elegância é uma raiz. Não é um ornamento”. Elegância e simplicidade. Eis dois vectores fundamentais que compõem o polígono de forças que suporta a obra singularmente profunda e transparente do autor de Palácio. Simplicidade: ele sempre a defendeu, como o outro único lado possível da profundidade. Por isso abominava  o jargon pacóvio e “snob” de tanto crítico palrador, obscurantista e pouco sensível à verdadeira poesia. Num texto publicado ainda no Notícias de Lourenço Marques, em 6. 4. 1966, escrevia isto: “O autor de Seven Types of Ambiguity [William Empson] tem o poder raro de conseguir profundidade de pensamento expressa de uma maneira lisa, directa, elegante. E incapaz de pedantaria [...]”. Toda a obra de Alberto de Lacerda – poesia, ensaio, crónica – é uma eloquente homenagem à profundidade transparente e elegante, ao horror desmedido à pedantaria e ao indecifrado mistério da simplicidade. "   
Eugénio Lisboa, in Uma Conversa Silenciosa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, S. A., Março de 2019, pp.225-239

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