Eugénio Lisboa tem uma obra volumosa e rica. Foi e nunca deixará de ser um extraordinário prosador e um artífice de uma singular oficina poética. No legado que nos deixou, entre a variada obra, há um conjunto memorialístico, Acta est Fabula, e um diarístico , Aperto Libro.
Visitámos a sua obra diarística e perdemo-nos na força das páginas dedicadas a uma viagem a Maputo, a sua antiga Lourenço Marques, terra natal. Acompanhamo-lo e, com ele, perdemo-nos no olhar sobre uma terra onde foi feliz.
"Maputo,
08.05.2007 (Terça feira) – Cheguei aqui no domingo de manhã, após oito anos de
ausência. Vim sem apetite e sem grande tumulto interior. Uma viagem infernal,
de avião, depois de uma partida surrealista, na Portela: quarenta minutos de pé
no autocarro que nos levaria ao avião. Quarenta minutos à espera de Godot. E,
como de costume, sem a cortesia de uma explicação e de um humilde pedido de
desculpas.
À chegada, à minha espera, a directora da Escola Portuguesa de Moçambique, Albina dos Santos Silva. Mulher das Arábias: autêntica construtora de impérios. Levou-me ao hotel e, depois de um banho, passeio pela marginal, Costa do Sol e a Ilha dos Pescadores. Estava tudo ainda na minha memória, isto é, estava e não estava: o velho Pavilhão da Polana desapareceu, embora o Clube Naval ainda lá esteja, referência imortal. De resto, centenas de casas que já são dos últimos anos.
Indo pela estrada do Palmar (não sei se ainda se chama assim), sinto pungir-se-me o coração: como eu já fui feliz, aqui, num tempo em que o presente era cheio e havia ainda tanto futuro à minha espera (à nossa espera). Um tempo em que toda a gente estava viva (a mãe, o pai, a tia Maria, os sogros, os amigos) e em que se festejava ainda o dia dos meus anos. Agora quase só há passado e mortos e o futuro é melhor não pensar nele.
No próprio domingo, depois de ter encontrado, por acaso, a Luísa Agapito no Restaurante Cristal (em frente ao que foi o meu velho liceu – que já não existe!), fui visitar, com ela, o nº 510 da outrora Av. Massano de Amorim, onde vivemos de 1964 a 1975. Desta vez, tinham arrancado os taipais em frente à casa e pude espreitar a sala de visitas, a janela do que fora o meu escritório e a do nosso quarto de dormir; o jardim por onde cirandava a Generala e o Riscadinho (gatos) e onde, uma vez por outra, fazíamos um jantar ao ar livre. Parece que foi tudo há tanto tempo, noutra encarnação, impossivelmente nesta mesma casa… Há, no que sinto, um misto estranho de alegria e de angústia, de sentimento de uma enorme perda irremediável, de vontade de ir muito depressa para outro lugar, de onde possa recordar estes sítios, com as pessoas que lá tinham estado e enchido a minha vida – agora a esvaziar-se e a esmorecer. Como tudo era bom! Como tudo era cheio de sentido e de promessas! E como os deuses se divertem connosco!
À chegada, à minha espera, a directora da Escola Portuguesa de Moçambique, Albina dos Santos Silva. Mulher das Arábias: autêntica construtora de impérios. Levou-me ao hotel e, depois de um banho, passeio pela marginal, Costa do Sol e a Ilha dos Pescadores. Estava tudo ainda na minha memória, isto é, estava e não estava: o velho Pavilhão da Polana desapareceu, embora o Clube Naval ainda lá esteja, referência imortal. De resto, centenas de casas que já são dos últimos anos.
Indo pela estrada do Palmar (não sei se ainda se chama assim), sinto pungir-se-me o coração: como eu já fui feliz, aqui, num tempo em que o presente era cheio e havia ainda tanto futuro à minha espera (à nossa espera). Um tempo em que toda a gente estava viva (a mãe, o pai, a tia Maria, os sogros, os amigos) e em que se festejava ainda o dia dos meus anos. Agora quase só há passado e mortos e o futuro é melhor não pensar nele.
No próprio domingo, depois de ter encontrado, por acaso, a Luísa Agapito no Restaurante Cristal (em frente ao que foi o meu velho liceu – que já não existe!), fui visitar, com ela, o nº 510 da outrora Av. Massano de Amorim, onde vivemos de 1964 a 1975. Desta vez, tinham arrancado os taipais em frente à casa e pude espreitar a sala de visitas, a janela do que fora o meu escritório e a do nosso quarto de dormir; o jardim por onde cirandava a Generala e o Riscadinho (gatos) e onde, uma vez por outra, fazíamos um jantar ao ar livre. Parece que foi tudo há tanto tempo, noutra encarnação, impossivelmente nesta mesma casa… Há, no que sinto, um misto estranho de alegria e de angústia, de sentimento de uma enorme perda irremediável, de vontade de ir muito depressa para outro lugar, de onde possa recordar estes sítios, com as pessoas que lá tinham estado e enchido a minha vida – agora a esvaziar-se e a esmorecer. Como tudo era bom! Como tudo era cheio de sentido e de promessas! E como os deuses se divertem connosco!
(...)
Maputo,
11.05.2007 – Esta terra. Passo pelos sítios que conheço e penso: foi aqui – só
aqui – que me senti, alguma vez, protegido.
Sobretudo, na adolescência, quando, à noite, terminado o ano lectivo, vinha da
matiné do Scala – a matiné das cinco da tarde – a caminho de casa, noite
fechada, depois de ter visto um filme de terror com o monstro de Frankenstein,
e me esperava, em casa, um jantar de apetecidos rissóis de camarão. Ali, havia
eternidade à minha espera… Tudo aquilo, aquele conforto (conforto de pobre, mas
conforto), aquela certeza, aquela
confiança – davam-me uma grande e deliciosa segurança. Foi nessa altura – e
nunca mais.
Ontem,
visita ao Kruger Park. A última: não voltarei lá. Vimos tudo: girafas,
elefantes, impalas, pacaças, zebras, macacos, hipopótamos, crocodilos, porcos
espinhos e um grupo impressionante de três rinocerontes pretos e enormes. Cada
um deles – dez toneladas de estupidez e mau feitio. Um dos “meninos” voltou-se
decididamente para nós e esteve uns minutos a decidir se “carregava” ou não.
Finalmente, decidiu-se a votar-nos ao desprezo.
Na fronteira
de Ressano Garcia (o lado moçambicano), é o caos burocrático. Maneira eficaz de
desencorajar o turista. Do lado sul-africano, as empregadas negras quase nos
atiram o passaporte à cara, talvez num descomprimir de ressentimentos antigos.
E as empregadas brancas fazem quase o mesmo, para mostrarem zelo e sintonia com
as camaradas negras (quem as não compreende?) Eu, embirrento, compreendo tudo
mas, mesmo assim, não gosto.
Leio pouco:
cansado, à noite, dá-me o sono. E temos sempre de nos levantar cedo.
Telefona-me
o Armando Monteiro, meu antigo colega de gasolineiras (ele, da Shell).
Reconheço-o logo pela voz. Vou vê-lo à tarde. Diz-me que o Teles, colega
electrotécnico, está bom de cabeça, mas frágil, fisicamente. Que se repete
muito, sinal que não mente. Lá chegaremos todos, como diria o Álvaro de Campos.
E, no fim e ao cabo, os escritores e os artistas, em geral, também passam a
vida a repetir-se.
O nosso
grupo é extraordinariamente simpático. Nem uma ovelha ranhosa a estragar o
baralho, o que é sensacional. Gente descontraída, bem humorada, boa
conversadora, prestável. Que bela Arca de Noé, se disso fosse caso!
Dentro de
meia hora, saímos para uma volta à cidade. Vamos ver o que nos mostram.
Felizmente, já fui à nossa casa da Massano de Amorim e já espreitei o nosso
último apartamento no Miradouro. E passámos ao largo do Língamo, onde eu e a MA
e a Geninha vivemos, de 1959 a 1964. Uma médica simpática (e bonita), que diz
ter sido nossa vizinha na Fernandes da Piedade, veio falar-me e trazer-me o
desejo de ali ir espreitar um pouco do meu passado… Talvez convença o Armando
Monteiro a levar-me lá. Com isso fico com as contas todas arrumadas.
A manhã toda
a revisitar lugares: o mercado, a Casa Elefante (onde comprei quatro lenços
para levar à MA), a Biblioteca Nacional (que guarda, no jardim, uma estátua do
Salazar), a Fortaleza (onde cavalga, altivo, o Mouzinho de Albuquerque e onde
jaz e apodrece o Gungunhana, se é que os restos dentro daquele caixão são
realmente dele), o Jardim (Vasco da Gama) e o Teatro Gil Vicente, de que
desapareceu a entrada para o Café adjacente (informar a Maria de Lourdes
Cortez), a Pastelaria Hazis, em cuja esplanada se sentava todas as manhãs o
Aristides Coelho, admirável cronista e implacável republicano que odiava
Salazar 24 horas por dia, a Casa de Ferro, etc. Ao lado da Pastelaria Hazis, um
rapaz novo vendia livros velhos. Comprei-lhe, perversamente, adivinhem o quê?
Um manual de electricidade…
De manhã,
fomos ainda à estação dos caminhos de ferro, na Praça MacMahon. Fui variamente
fotografado, na plataforma de onde saí de Moçambique, em Março de 1976. Foi um
momento dilacerante, que nunca esquecerei, com o Francisco Bomba (meu empregado
na TOTAL) a chorar desabaladamente no meu ombro. Causou-me agora impressão ver
aquela plataforma: os momentos intensos ali vividos, o embarque, a viagem
tormentosa, com a “generala” alucinada a trepar por todo o compartimento da
carruagem. O fim de uma era. E o fim de um tempo feliz, onde prevaleceram o
amor, a amizade, o convívio, a cultura…"
Eugénio Lisboa, in Aperto Libro IV, Páginas de Diário, 2007-2012, pp.7,9,10,11

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