quinta-feira, 16 de abril de 2020

Morreu Luís Sepúlveda

Acabo de ser surpreendida  pelo desaparecimento do escritor brasileiro Rubem Fonseca, quando os noticiários anunciam a morte do escritor, argumentista e cineasta chileno  Luís Sepúlveda.
"Luis Sepúlveda morreu hoje, aos 70 anos, em Espanha, em consequência da doença covid-19, - noticiam.
Sepúlveda estava internado desde finais de Fevereiro num hospital de Oviedo, em Espanha, onde foi diagnosticado com aquela doença. Os primeiros sintomas ocorreram dias antes, quando esteve no festival literário Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim.
A confirmação de que estava infectado com a covid-19 levou, na altura, o Correntes d’Escritas a recomendar uma quarentena voluntária aos que participaram no festival e estiveram em contacto com o escritor chileno.
Tudo isto aconteceu ainda antes de as autoridades portuguesas confirmarem oficialmente qualquer registo de infecção em Portugal, o que só viria a acontecer a 02 de Março.
Luís Sepúlveda, que nasceu no Chile a 04 de Outubro de 1949, estreou-se nas letras em 1969, com "Crónicas de Piedro Nadie" ("Crónicas de Pedro Ninguém"), dando início a uma bibliografia de mais de 20 títulos, que inclui obras como “O Velho que Lia Romances de Amor” e "História de Uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar".
O escritor tem toda a obra publicada em Portugal - alguns títulos estão integrados no Plano Nacional de Leitura -, e era presença regular em eventos literários no país.
Luís Sepúlveda era casado com a poetisa Carmen Yáñez, que também esteve hospitalizada e em isolamento. Residia em Gijón, nas Astúrias, desde 1997."
Os seus livros não tinham  mais do que 200 páginas porque o jornalismo lhe deu capacidade para resumir, para agarrar “o leitor na primeira palavra”, como disse em entrevista ao jornal i, em 2017. Gostava muito de cozinhar e também  muito gostava dos seus netos, que lhe serviram de inspiração para algumas fábulas. Antes de ser escritor — muito disciplinado, com um horário restrito para escrever –, era cidadão, muito activo, sempre político.  Ao jornal espanhol 20 minutos, Sepúlveda confessou que não conseguia olhar para trás com melancolia.
Vivo muito bem com a nostalgia e não permito que se transforme em melancolia, que é estar feliz por estar triste. Eu nasci e cresci num país que já não existe. Só tenho a minha memória, mas essa é a nostalgia sã, a outra não a deixo entrar”.
Foi preso por Pinochet e sofreu nas masmorras de Temuco, juntamente com outros "prigué" , conforme eram designados os prisioneiros de guerra e nos dá conta nos excertos do  terceiro ,  quarto e quinto  capítulos, que vou transcrever,  do seu  livro "Patagónia Express".
 
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" Evitei sempre tocar no tema da prisão durante a ditadura chilena. Evitei,  porque, por um lado , a vida sempre foi apaixonante  e digna de ser vivida até  ao último suspiro, pelo que tocar num acidente tão obsceno era uma vil forma de a ofender.  E, por outro lado,  porque se escreveram demasiados - infelizmente, na sua maioria , muito maus - testemunhos a esse respeito.
Dois anos e meio da minha juventude  passei-os encerrado numa das mais miseráveis prisões chilenas , a de Temuco.
O pior de tudo não era o encerramento em si mesmo, pois lá dentro a vida  continuava, e às vezes mais interessante do que fora. Os " prigué" - prisioneiros de guerra - com mais preparação- e lá estava todo o corpo docente  das universidades do sul - formaram várias academias , e assim muitos de nós  aprenderam línguas, matemáticas, física quântica, história universal, história de arte, história da filosofia.  Um professor  de apelido Iriarte orientou durante duas semanas um magnífico seminário sobre Keynes e o pensamento político dos economistas contemporâneos, a que assistiram, além de uma centena de presos , vários oficiais do exército. Andrés Müller, jornalista e escritor , dissertou sobre os erros tácticos dos comunards de Paris perante a estupefacção da soldadesca  que guardava a oficina de calçado, baptizada por nós   como Gran Salón del Ateneo de Temuco. Outro ilustre prigué, Genaro Avendaño - " desapareceram-no" em 1979 -, emocionou presos com uma dramatização de Unamuno em Salamanca.
Até chegámos a ter uma pequena biblioteca com títulos  que lá fora eram proibidíssimos, graças à curiosa censura praticada pelo sargento encarregado de filtrar os livros que nos mandavam os familiares e amigos. Nunca deixámos de lhe agradecer que catalogasse entre os livros  de primeiros socorros o exemplar de Las venas abiertas de América Latina que ornamentava a biblioteca. Até aulas de alta cozinha  nós tivemos.  Como esquecer a paixão de Julio Garcês , ex-cozinheiro  do Club de La Unión, a Meca da aristocracia  chilena, quando defendia a subtil gordura do coelho como insubstituível  na preparação de um bom molho de fígado do mesmo animal, e insistia que era  fundamental cozinhar o molho de congro  com o mesmo vinho branco que depois alegraria a mesa.  Anos depois  encontrei Garcés na Bélgica. Era o chef de um prestigiado restaurante de Bruxelas, e mostrou-me com orgulho os dois diplomas com que o guia Michelin  premiara a sua arte culinária.
(...)Novecentos e quarenta e dois dias durou a permanência naquela terra de todos e de ninguém. Estar dentro não era o pior  que nos podia acontecer. Era mais uma forma de estar de pé na vida. O pior vinha quando, mais ou menos de quinze em quinze dias, nos levavam ao regimento de Tucapel para os interrogatórios. Então compreendíamos que por fim chegávamos a lado nenhum.

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Os militares tinham um conceito bastante elevado da nossa capacidade destruidora. Perguntavam-nos acerca de planos para assassinar todos os oficiais da história militar da América  para fazer ir pelos ares pontes e sepultar túneis , e para preparar o desembarque de um temível exército exterior que não podiam identificar.
Temuco é uma cidade triste, cinzenta e chuvosa. Ninguém diria que é apta para o turismo, e no entanto o regimento de Tucapel chegou a ser uma coisa assim como uma permanente convenção internacional de sádicos.  Nos interrogatórios, além de militares chilenos que mal por mal eram os anfitriões , participavam também símios  da inteligência  militar brasileira - eram os piores -, norte-americanos do Departamento de Estado, paramilitares argentinos , neofascistas italianos e até uns agentes do Mossad.
Como esquecer Rudi Weismann, chileno, amantes do sul  e dos veleiros, que foi torturado  e interrogado no doce idioma  das sinagogas? Rudi que arriscou  tudo por Israel - participou num Kibutz mas foi mais forte a saudade da Terra do Fogo e regressou ao Chile -, não foi capaz de suportar aquela infâmia. Não conseguiu entender que Israel apoiasse aquela pandilha de criminosos, e Rudi Weismann, que sempre foi um monumento ao bom humor, tornou-se seco como uma planta esquecida. Certo amanhecer encontrámo-lo morto no saco de dormir.  A sua expressão tornou desnecessária qualquer autópsia: Rudi Weismann morrera de tristeza.
O comandante do regimento de Tucapel - e não cito o seu nome por um elementar respeito ao papel - era um fanático admirador do marechal Rommel. Quando simpatizava com um prisioneiro convidava-o a restabelecer-se dos interrogatórios no seu escritório. Lá, depois de lhe garantir que tudo o que acontecia no regimento servia os sacrossantos interesses da pátria , oferecia-lhe um cálice de Korn - alguém lhe mandava da Alemanha o insípido licor de trigo e obrigava-o a ouvir uma conferência sobre o Africakorps. O tipo era filho ou neto de alemães, mas o seu aspecto  não podia ser mais chileno: rechonchudo, pernas  curtas, cabelo escuro e rebelde.  Podia muito bem passar por camionista ou vendedor  de frutas , mas ao falar de Rommel transformava-se na caricatura de um guarda hitleriano.
(...) Regimento Tucapel. Intendência. No fundo verde do monte Ñielol, sagrado para os Mapuches. A sala  de interrogatórios era precedida por uma sala de espera , como numa consulta médica. Sentavam-nos num banco com as mãos atadas nas costas e um capuz preto na cabeça. Nunca percebi a razão do capuz, porque uma vez lá dentro, tiravam-no e podíamos  ver interrogadores, os soldaditos que, com expressão de pânico giravam a manivela do gerador eléctrico, os enfermeiros que colavam os electrodos no anus, nos testículos , nas gengivas  na língua , e depois auscultavam para decidir quem fingira e quem desmaiara realmente na grelha.
(...) 

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Num dia de Junho de 1976  acabou a viagem a lado nenhum. Graças às diligências da Amnistia Internacional saí da prisão e, embora rapado e com menos vinte quilos, enchi os pulmões com o ar denso de uma liberdade limitada pelo medo de a perder novamente. Muitos dos camaradas que ficaram lá dentro foram assassinados pelos militares . O meu grande orgulho é saber que não esqueço nem perdoo aos seus verdugos."
Luís Sepúlveda, in "Patagónia Express", Edições ASA, Outubro de 1996, pp.19,20,21,22,23, 27, 28, 30

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