sábado, 18 de abril de 2020

Em cada dia houve um tempo...

O Barco da Memória

A infância sempre volta na hora humana do crepúsculo...
Vem de um tempo silenciado,
é um eco que cresce,
um fantasma que ronda e volta comovido,
surge remando no barco da memória,
abre na alma um sulco imaginário,tão formoso
e aporta para povoar a aldeia melancólica da saudade.

Traz consigo os seus inconfessáveis segredos,
as tardes azuis e açucaradas,
a dizer-nos que só se é criança uma vez na vida
e que tudo que lá ficou é um mágico clarão,
um enigma que arde imperecível,
um nunca mais.

Em cada dia houve um tempo...,
um tempo em que o mar banhou minha inocência.
Herdei essa extensão entre o horizonte e o branco cinturão de
                                                                                         [areia,
herdei do mar essa salgada lembrança,
o mar, sempre o mar, meu mágico recanto,
aquele mar que tanto amei
e onde o coração navegou o meu encanto.
A praia, o território itinerante nos meus passos,
os botos, em cada dia, nadando para o sul,
o voo preguiçoso das gaivotas,
as velas ligeiras ante a paz invencível da paisagem.
o azul e a luz espelhados sobre as águas da manhã,
as canoas trazendo suas translúcidas escamas,
o mantra suave das ondas,
esse rumor ainda presente no caracol dos meus ouvidos.
Eu tinha quatro, cinco, seis e sete anos,
a alma banhada, as retinas submersas
e em cada gesto uma sílaba antecipada do meu canto.
Tinha as mãos cheias de caramujos, de conchas,
e a vigiar meus olhos, o espanto.
Tinha meus castelos,
a espuma espessa e flutuante
e três castas amantes para brincar.
Tinha os fulgores da aurora, os mistérios constelados,
uma pequenina lagoa
e um canal estreito por onde as tainhas entravam no inverno.
Eu tinha de minha mãe o seu regaço: mel e ternura
                                                                [repartidos.
Lembro meu avô cortando lenha, meu retrato mais antigo.
Eu o chamava Pai Trajano.
Um dia ele levou minha pobreza seminua pela mão,
e lá, além da ponte, na loja do Seu Abrão,
vestiu-me uma camisa colorida.
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Não, Drummond, não se dissipa nunca a merencória
                                                                     [infância.
                                               
                                           Curitiba, 26 de Janeiro de 2014
Manoel de Andrade, in "Palavras no espelho", Editora Escrituras, São Paulo, Brasil, 2018

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