sábado, 11 de abril de 2020

Era a época da Páscoa

"Era, também, na Páscoa que apareciam, na Quinta, os cordeiros  ou anhos. Ofereciam-nos ao meu pai sempre nessa época. Geralmente,  juntavam quatro ou cinco que ficavam a pastar no campo. Para nós, era, então, o tempo da adopção. Cada um se apropriava, de imediato, de um deles. E até os baptizávamos, em cerimónia solene.(...) As nossas brincadeiras passavam a  incluir esses pequenos animais.  A erva era a fonte da sua alimentação. Enchíamos  gamelas de  verde e tenrinha erva colocando-as em frente do anho adoptado . A disputa começava quando um deles esgotava  a dose. Acreditávamos que era esse o jeito de lhes revelar o carinho que tínhamos. Creio que chegávamos a obrigá-los a rejeitar esse alimento, tal era a nossa insistência em proporcioná-lo.
Ficavam connosco durante algum tempo, até que, repentinamente, desapareciam. Inquietos, corríamos a Quinta na  infantil esperança e no ingénuo engano de os encontrar.  Era a desilusão total , quando um dos empregados nos dizia que os tinham vindo buscar nem nos acudia a curiosidade de saber para onde. O desencanto era tão profundo que nos limitávamos a encarar como um facto irreversível. Aliás, não era usual nesse tempo  questionar as decisões/ informações dos adultos. Por nós, não perpassava a mais ténue suspeita de que o destino dos nossos recém adoptados animais seria  compor as refeições típicas da Páscoa. O cuidado  de não permitir às crianças, que nós éramos, qualquer hipótese de descoberta do destino dos animais, prevalecia sobre qualquer outro. Ninguém  deixava escapar alguma pista que nos levasse a tentar defender os animais que tanto acariciávamos e  críamos como pertença indissolúvel, indestrutível.
As nossas brincadeiras incluíam esses pequenos animais e outros desafios. Vivíamos essa época, com muita alegria e sã vivacidade. Apanhavam-nos nas férias pascais. Os dias escoavam-se entre  muita  actividade que se nos oferecia ou  que engendrávamos. O  ar , embora fosse tempo de algum frio, trazia em si a frescura suave dos dias amenos que a prodigiosa natureza anunciava.

No Norte, a Páscoa era uma festa muito celebrada. Não havia aldeia, vilarejo ou cidade que não tivesse a visita pascal , no Domingo de Páscoa. Era o Compasso que se mantém ainda  em muitas zonas nortenhas. Nessa época da minha infância , não recordo o rigor  da Quaresma e da Semana Santa. Senti-o , pela primeira vez, quando já estava em Lisboa, num colégio religioso  que frequentei até ao 5º ano liceal, hoje (2018) correspondente ao 9º ano.
Ora a visita pascal era uma das tradições mais arreigadas da Páscoa. O Pároco  visitava as casas. Vinha acompanhado de uma escolta constituída pelo sacristão e alguns jovens que assistiam o serviço religioso, na respectiva igreja. Fazia-se anunciar por uma forte sineta que indicava a sua chegada. Transportava a cruz de Jesus, como símbolo da  Ressureição, que todos beijavam ou simulavam beijar. Creio que atiravam beijos para o ar.
A entrada da Quinta , como os caminhos que levavam às casas, era atapetada por pétalas de flores e folhas de algumas plantas e de  hera. Marcava a direcção que levava à porta principal da casa.  De  acordo com a tradição, havia uma mesa posta com alguma doçaria e vinhos, onde se destacava o vinho do Porto para recepção ao Padre e sua comitiva. O Pão-de-Ló era o bolo que simbolizava a Páscoa como que o gémeo do Bolo Rei do Natal. Nessa época, era normal encontrar espalhados pela sala de jantar e copa, alguns desses bolos que chegavam como oferta. As amêndoas doces de vários tipos entravam também à disputa com a demais doçaria. Nas férias , a minha mãe ia ao Porto abastecer- se de  algumas guloseimas  ligadas à Páscoa. Recordo o curioso interesse que nos davam as amêndoas de licor. Não pelo licor mas pelos variados formatos com que se apresentavam. Eram uma tentação para o olhar de uma criança. Havia, ainda,  as amêndoas de chocolate , as torradas  e os variados ovos  para compor  o típico cardápio doce da festa pascal.
O que realmente me acode dessa festa são os cheiros, os sabores, o convívio familiar, à roda de um mesa farta e grande e, também, a chegada do Compasso pela manhã, que obrigava o meu pai a sair da cama, quando a sineta já se fazia ouvir, no portão da Quinta. Esperava até ao último momento para não perder o repouso matinal que tanto apreciava ao Domingo."
Maria José Vieira de Sousa, in «O livro que já escrevi», pp.151-154.

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