terça-feira, 7 de abril de 2020

Viagem a Itália

"Obra escrita a partir dos diários de Goethe, Viagem a Itália é, como o próprio nome indica, uma descrição da viagem que o autor empreendeu a Itália, entre 1786 e 1788, e que constituiu uma peça marcante no seu percurso estético e filosófico. "Quando, em 3 de Setembro de 1786, Goethe não regressa das termas de Karlsbad a Weimar, mas, em vez disso, parte em segredo e incógnito para Itália, está apenas a levar à prática uma decisão pessoal adiada e um imperativo cultural de que nenhum homem de letras, intelectual ou artista pode prescindir a partir de meados do século XVIII. A Itália tornara-se, para a aristocracia já desde o século XVIII, e para a burguesia culta no seguinte, no objectivo último e incontornável do grand tour europeu". A Itália, para Goethe, simbolizava o sul quente e apaixonado, por oposição a um norte frio e cauteloso, um lugar onde o passado clássico, embora devastado, se mantinha vivo numa sequência de espaços e num inventário de símbolos e de hábitos para os quais procurou significado, redescobrindo-se nas interpretações que foi criando no seu percurso."
Verona antiga
Verona
De Verona a Veneza
Verona, 16 de Setembro 
"O anfiteatro é o primeiro monumento significativo da Antiguidade que vejo, e está tão bem conservado! Quando entrei,  e mais ainda quando me passeava pelo anel superior,tive a estranha impressão de ver algo de grandioso e simultaneamente nada. O lugar não quer ser visto vazio,  mas cheio de gente, como recentemente fizeram  em honra do Imperador José II e do Papa Pio VI. O Imperador que está habituado a ter diante de si grandes massas de povo, parece que ficou muito admirado. Mas só mesmo nos tempos antigos ele tinha todo o seu efeito, porque então o povo  era mais povo do que hoje.  pois um anfiteatro como este presta-se a impressionar o povo consigo próprio, a divertir o povo com o povo.
(...)Quando hoje saía de novo da Arena deparei , a uns milhares de passos  daí, com um espectáculo público moderno. Quatro nobres de Verona jogavam à bola contra quatro de Vicenza. Jogam este jogo entre si  todo o ano, uma duas horas antes do cair da noite; desta vez , como os adversários eram de fora, o povo acorreu em massa. Podiam ser uns quatro  a cinco mil espectadores. Não vi mulheres, de condição nenhuma.(...)
Verona, 17 de Setembro
O povo anda aqui numa grande  azáfama; especialmente em algumas das ruas onde as lojas  e as oficinas se seguem umas às outras , o espectáculo é digno de se ver. Não se julgue que eles têm portas diante da loja ou da oficina; não , a frente toda da casa é aberta e vê-se tudo o que se passa lá dentro. Os alfaiates cosem, os sapateiros puxam  o fio e batem sola, tudo no meio na rua, pode dizer-se que as oficinas ocupam uma parte da rua.  À noite , com as luzes acesas, é tudo muito vivo.
Nas praças está tudo muito cheio nos dias de mercado, a hortaliça e a fruta  a perder de vista, alho  e cebolas  a rodos. E as pessoas gritam , fazem galhofa e cantam todo o dia, atiram com coisas umas às outras e brigam , exultam  e riem-se sem parar. E tudo o que é possível se faz ao ar livre.
À noite então é que a cantoria e o barulho se fazem sentir . Não há rua em que se não ouça cantar a canção de Marlborough(1) , aqui um saltério, ali uma viola. Treinam-se a assobiar, imitando o canto de todos os passáros. Um tal excesso da sensação de viver envolve até a pobreza numa aura suave, e até a sombra do povo parece digna e nobre.

VENEZA



VENEZA
"Estava, pois, escrito na minha folha do livro do destino que no dia 28 de Setembro de 1786, às cinco da tarde pela nossa hora, eu veria pela primeira vez Veneza, entrando nas lagunas pelo Brenta , e pouco depois poria pé e olhos nesta maravilhosa cidade insular, nesta república de castores. E assim, Deus seja louvado, Veneza deixa de ser para mim mais uma palavra apenas, um nome oco que tantas vezes me assustou, a mim, o inimigo fidagal dos envólucros sonoros das palavras.
Quando a primeira gôndola se aproximou do nosso barco ( fazem isso para transportar rapidamente para Veneza os passageiros que têm pressa), lembrei-me  de um brinquedo antigo em que já não pensava há cerca de vinte anos. O meu pai tinha um belo modelo  de gôndola que trouxera da sua viagem; estimava-o  muito, e para mim era uma grande honra o poder brincar com ele. Os primeiros  bicos de chapa de ferro brilhante, as cabines pretas, tudo me recebia e saudava como se de velhos conhecimentos se tratasse , e eu deliciei-me com esta amável reminiscência  da juventude , durante tanto tempo ausente.
Estou bem alojado na "Rainha de Inglaterra"(2), não muito longe  da Praça de S. Marcos, e esta é a grande vantagem deste alojamento; as minhas janelas dão para um canal estreito entre casas altas , mesmo por baixo fica uma ponte de um arco e em frente uma viela estreita e muito animada. É aqui que vivo, e aqui ficarei por algum tempo, até que a minha encomenda para a Alemanha(3) fique pronta e eu me tenha saciado da sede de ver esta cidade. A solidão por que tantas vezes tinha ansiado, posso desfrutá-la plenamente agora; pois nunca nos sentimos tão solitários como entre a multidão, no meio da qual podemos andar incógnitos. Em Veneza talvez só uma pessoa me conheça, e tão depressa não é natural que me encontre.
(...)




9 segredos da Piazza San Marco, em Veneza - Vontade de Viajar
29 de Setembro, dia de S. Miguel , à noite
Muito se tem dito e escrito já sobre Veneza, o que me leva a não entrar em descrições muito pormenorizadas; registo apenas as minhas impressões pessoais. Mas aquilo que, acima de tudo, de novo mais me impressiona, é o povo, uma grande massa, uma existência imposta e involuntária.
Não foi para se divertir que este povo se refugiou nestas ilhas , e não foi por acaso que os que se seguiram se lhes juntaram; a necessidade ensinou-os a procurar a sua segurança  no lugar mais desvantajoso, mas que depois lhes trouxe as maiores vantagens  e os fez inteligentes numa época em que todo o mundo nórdico ainda estava mergulhado em trevas; o resultado necessário foi o seu crescimento e a sua riqueza. Agora, as casas apertavam-se cada vez mais , areia e pântano  deram lugar a rochas , os edifícios  procuravam respirar , como árvores muito juntas, e tiveram de ganhar em altura o que perdiam em largura. Ciosos  de cada palmo de terra  e desde  sempre comprimidos em espaços apertados , não deixaram para as vielas mais espaço do que era preciso para separar uma fieira de casas da outra e oferecer ao cidadão estreitas passagens.  Os venezianos  tiveram  de se tornar numa nova criatura , e Veneza só pode ser comparada  consigo própria. O grande canal  que a atravessa , serpenteando, não fica atrás de nenhuma rua do mundo, e o espaço diante da Praça de S. Marcos não tem nada que se lhe compare. Refiro-me ao grande espelho de água enquadrado por uma meia-lua do lado de cá de Veneza propriamente dita.  Da água sobressaem , à esquerda a ilha de S. Giorgio Maggiore, um pouco mais à direita  a Dogana e a entrada no Canal Grande, onde brilham logo alguns gigantescos templos de mármore.
(...) Encontrei facilmente O Canal Grande  e a ponte principal, no Rialto, formada por um único arco de mármore branco. A vista de cima é soberba, com o canal semeado de barcos que trazem da terra firme tudo o que é necessário, e aqui praticamente só acostam e descarregam; por entre eles , é um formigar de gôndolas. E hoje, no dia da festa de S. Miguel , é uma maravilha ver como tudo está tão animado; mas para descrever tudo isto tenho de me alongar um pouco mais.
As duas zonas principais  de Veneza , que o Canal Grande divide, são ligadas por esta única ponte do Rialto, mas há muitos outro meios de ligação, que se pode fazer em vários lugares em barcas abertas. Hoje o lugar tinha um bonito aspecto, com muitas mulheres bem vestidas, mas de véu preto, a deixarem-se transportar em grupos para o outro lado, para irem à igreja  do arcanjo que neste dia se festeja. Desci da ponte e postei-me  num desses lugares de embarque  para observar  bem quem descia. E encontrei entre eles muitos belos rostos e figuras.
(...)



30 de Setembro, à noite
Hoje voltei a alargar o meu conhecimento de Veneza , porque comprei a planta da cidade. Depois de a estudar um pouco subi à torre de S. Marcos , de onde temos uma vista única. Foi a meio do dia , com sol aberto, e pude distinguir claramente sem óculo tudo o que estava perto e longe. A maré alta enchia as lagunas , e ao voltar o olhar para o chamado Lido ( trata-se de uma estreita língua de terra que fecha as lagunas) vi pela primeira vez o mar e algumas velas . Nas lagunas estão também atracadas galeras e fragatas que deverão juntar-se ao general Emo , em guerra contra os argelinos, mas que têm de ficar à espera de ventos propícios. Os montes de Pádua e Vicenza e as montanhas do Tirol completam de forma perfeita o panorama entre o lado poente e o norte.
(...)

8 de Outubro
Fui hoje de manhã de gôndola com o meu anjo-da-guarda até ao Lido, a língua de terra que fecha as lagunas e as separa do mar. Descemos e fomos andando ao longo da ilha. Ouvi um forte ruído, era o mar, e pouco depois vi-o,  galgando a praia à medida que ia baixando, pois era meio-dia, altura da baixa-mar. Vi finalmente o mar com os meus próprios olhos, e fui-o seguindo na bela lisura de areia que deixa para trás. Bem gostaria de ter aqui as crianças, por causa das conchas; eu próprio, infantil também,  apanhei muitas delas , mas para lhes dar um uso especial: quero deixar secar um pouco da tinta de choco que ele aqui deixa muitas vezes.
No Lido, não muito longe do mar, há campas de ingleses e, um pouco adiante, de judeus , que não podiam ser enterrados no campo santo. Encontrei o túmulo  do venerável cônsul Smith e das suas primeiras mulheres; devo-lhe o meu exemplar do Palladio e agradeci-lhe isso junto da sua campa sem bênção.
E a campa não ficou apenas sem bênção, está meio soterrada. o Lido não é mais que uma grande duna, a areia é levada para aí pelo vento, acumula-se, sobe por toda a parte. Daqui a pouco tempo, o monumento, relativamente elevado, será difícil de encontrar.
O mar é um espectáculo grandioso! Quero ver se consigo fazer uma viagem num barco de pesca; as gôndolas não se aventuram ao largo.
(...) 

ROMA
Porta del Popolo, Piazza del Popolo, Roma
ROMA
Roma, 1 de Novembro de 1786
Posso finalmente abrir a boca para saudar os meus amigos com boa disposição. Que me seja perdoado o segredo e, por assim dizer a viagem subterrânea que empreendi até aqui. Nem eu ousava dizer a mim próprio para onde ia, mesmo durante a viagem temi ainda não chegar, e só ao passar a Porta del Popolo tive a certeza de que Roma era minha.
E deixem-me que vos diga também penso mil vezes , a toda a hora, em vós na proximidade destes objectos que eu nunca pensei ver sozinho. A única razão  que me levou a fazer este caminho longo e solitário e a procurar o centro para o qual um imperativo irresistível me atraía , foi o facto de toda a gente estar presa  de corpo e alma ao Norte e de eu ver desaparecer toda a atracção por estas paragens. Nos últimos anos elas tornaram-se mesmo para mim uma espécie de doença, de que só a sua vista e presença me poderiam curar. Agora confesso que por fim já não podia ver um livro latino, um desenho de uma paisagem italiana. O desejo de ver este país não podia esperar mais : agora que ele se realizou volto a pensar com gosto nos amigos  e na pátria, e a desejar o regresso, tanto mais quanto tenho a certeza de que não vou levar comigo assim tantos tesouros próprios e para uso pessoal, mas que, pelo contrário , eles me hão-de servir , a mim e  a outros , de guia e estímulo para toda a vida.
 (...)



Roma, 7 de Novembro
Faz uma semana  que estou aqui , e agora começa a formar-se no meu espírito uma ideia geral  desta cidade. Andamos muito por aí, eu vou conhecendo as plantas da velha e da nova Roma, observo as ruínas , os edifícios, visito esta ou aquela villa, explicam-me a pouco e pouco as maiores curiosidades,  eu limito-me a abrir os olhos, a ver , a ir e voltar, pois só em Roma nos podemos preparar para conhecer Roma.
Temos de confessar que é tarefa difícil e penosa distinguir a Roma antiga da nova, mas é preciso fazê-lo e esperar por fim a impagável recompensa. Encontram-se aqui vestígios de uma magnificência e de uma destruição que ultrapassam tudo o que se possa pensar. O que os bárbaros deixaram de pé, destruíram-no os construtores da nova Roma. (4)

Quando se olha  para uma existência  como esta, velha de dois mil anos  e mais, transformada com o correr dos tempos de forma tão radical e diversa, mas continua a ser o mesmo chão, o mesmo monte, muitas vezes até a mesma coluna e muralha, e no povo ainda os traços do antigo carácter, então tornamo-nos cúmplices dos grandes desígnios; por isso se torna tão difícil ao observador distinguir  a princípio como a Roma se segue Roma, não apenas a nova à antiga, mas também  as mais diversas épocas da antiga e da nova, umas em relação às outras. Eu começo por procurar  por mim próprio os pontos mais escondidos, e só depois podemos tirar o maior proveito dos excelentes trabalhos já feitos; na verdade, desde o século XVI até hoje os melhores  artistas e eruditos têm-se ocupado deste tema a vida inteira.
E esta monstruosidade tem sobre nós um efeito tranquilizante, quando vamos andando por Roma para chegar até aos pontos  mais importantes. Noutros lugares temos de procurar os objectos mais significativos, aqui somos esmagados e afogados por eles. Qualquer que seja o ponto em que estamos, oferecem-se-nos perspectivas de toda a espécie , palácios e ruínas, jardins e parques, espaços abertos e apertados, casinhas, estábulos, arcos de triunfo e colunas, muitas vezes tudo tão junto que podia ser representado numa folha . Seria necessário escrever com mil lápis: para que nos serviria aqui uma pena? E depois chegamos à noite cansados e esfalfados de tanto ver e admirar."
Johann Wolfgang Goethe, in "Viagem à Itália, 1786-1788", Bertrand Editora, Lisboa 2016, pp.67 ,71, 76, 77, 91,92, 94, 95, 96, 97, 117, 118, 152,157, 158
Notas
(1) - Canção popular " Marlborough s'en va-t-en guerre", cantada em 1786 numa mistura de italiano e francês em todas as ruas de Itália.
(2) - Actualmente o Hotel Vittoria , no Palazzo Morin-Querini, do lado noroeste  da Praça  de S. Marcos. A " ponte de um arco" e a " viela estreita" são a Ponte  dei Fuseri  e a Calle dei Fuseri.
(3) - A " encomenda " deveria conter os diários de viagem enviados a Charlotte Von Stein, e a nova versão de Ifigénia, que acabará por só ser enviada  de Roma.
(4) - Referência ao dito satírico do Papa Urbano VIII( 1623-1644), da família Barberini: «Quod non fecerunt  barbari, fecerunt Barberini»

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