quinta-feira, 23 de abril de 2020

A prodigiosa descoberta da leitura

IV – A longa estrada
 “ Não há talvez dia da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aquele que julgámos passar sem tê-lo vivido, aqueles que passámos com um livro preferido.”
   Marcel Proust, O prazer da leitura,  Ed. Teorema   

“ Pero aquello que vemos com los ojos de la memoria no es idéntico a aquello que vivimos: la vida es irrecuperable”
     Octavio Paz, Los pasos contados, Vaso Roto

Nesse ano iniciático da minha longa aprendizagem, as aulas começaram em Outubro. Tinha acabado de fazer seis anos, em Agosto. As férias tinham terminado há poucos dias. A minha Mãe preparara a minha entrada para a Escola Primária.
Era uma Escola branca , igual a tantas outras deste nosso Portugal. Escolas que tinham sido edificadas  segundo um projecto nacional  preparado pelo Estado. A traça era a mesma de Norte a Sul. Aquele parque escolar tinha duas construções com as mesmas dimensões.  Estavam ambas viradas para a estrada  e resguardadas por muros da mesma cor branca . A entrada fazia-se por um portão de ferro forjado, com alguns arabescos burilados, e de uma renitente cor preta.
A minha escola era aquela que ficava do lado direito de quem entrava. A minha irmã mais velha estudava noutra sala. Tinha dois anos de avanço sobre mim. Frequentava a 3ª classe.
Nesse dia, acordei muito cedo, sem que alguém me tivesse chamado. Foi o meu pai que nos levou à  Escola num Citroën , que se designava por  Citroën Arrastadeira. Era um carro grande e comprido,  onde cabíamos todos.
O meu coração batia forte. Tinha o livro da Primeira Classe e um caderno com linhas. Era uma preciosidade que levava comigo. Além disso, estreara  uma bata branquinha e um laçarote na cabeça a condizer. Tudo era novo .
A sala tinha quatro filas de carteiras. Cada uma era ocupada por dois alunos. Fiquei na  fila junto à parede , do lado oposto da porta e na terceira carteira. A meu lado, sentou-se uma menina que não conhecia. Era mais alta  do que eu. Loira e muito simpática. Quase igual à menina de caracóis loiros que compunha a capa do livro da 1ª classe. Tal como ela, tinha também um grande laçarote azul a prender-lhe os cabelos.  Estava tão à vontade que pensei que ela já  conhecia a escola. Afinal era tão caloira quanto eu. Tinha, isso sim, um grande poder de descontracção perante tudo o que não conhecia. Fui descobrindo essa peculiaridade ao longo do tempo. Chamava-se  Maria Rosa. Foi sempre a minha colega de carteira, enquanto estudei naquela escola, ou seja, até acabar a terceira classe. Iniciámos nesse dia uma grande cumplicidade que nos manteve ligadas e amigas durante esses anos.  ( Há tanta gente que se perde , que fica para trás sem que nada possamos fazer. A Maria Rosa desapareceu da minha vida quando mudei de escola e de local de residência. Como ela tantos outros bons amigos que  preencheram a minha infância  e juventude  de momentos de grande generosidade, alegria e aventura. Um tempo que nunca mais se repetiu: o tempo da descoberta.)
A minha professora era a D. Isaura. Uma senhora doce e afável que nos saudou com uma voz que soava a música. Gostei dela desde que nos deu as boas vindas. Disse-o clara e assertivamente. Soube, nesse momento, que  estava em terra firme e amiga. Tudo seria agradável com aquela professora. E se  aprender a ler e a escrever era a primeira prioridade da escola, assim o pensava eu, seria, pois, uma tarefa que realizaria com gosto. Aliás, já o fazia nos livros que me liam. Apontava as frases como se as soubesse ler. Ficavam-me nos ouvidos de tanto as escutar e  de tanto gostar de histórias. Os livros eram já um dos meus objectos de culto. Tratava-os com carinho . Afagava-os com imenso cuidado. Nunca estraguei um livro. Enamorei-me deles logo que me leram a primeira história.  E havia muitos livros em nossa casa. Em “ Memória de Livros”, João Ubaldo Ribeiro refere uma situação muito similar:

Nada, porém, era como os livros .(…) A maior casa onde morámos ,mais ou menos a partir da época em que aprendi a ler, tinha uma sala reservada para a biblioteca e gabinete de meu pai,mas os livros não cabiam nela — na verdade,mal cabiam na casa.(…) A circulação entre os livros era livre (tinha que ser, pensando bem, porque eles estavam pela casa toda, inclusive na cozinha e no banheiro), de maneira que eu convivia com eles todas as horas do dia,a ponto de passar tempos enormes com um deles aberto no colo, fingindo que estava lendo e,na verdade,se não me trai a vã memória, de certa forma lendo, porque quando havia figuras, eu inventava as histórias que elas ilustravam e, ao olhar para as letras, tinha a sensação de que entendia nelas o que inventara.

Nesse tempo, as escolas não tinham livros. As bibliotecas escolares não existiam como agora, em 2017. No entanto, lia-se com prazer , folheando e sentindo o objecto precioso que é o livro.
Nesse primeiro dia, descobri que aprender seria um dos meus grandes assombros. Senti que ir à escola era quase tão bom como brincar. E não me senti intimidada por ficar sem os meus pais num lugar novo e desconhecido. A Escola  era uma espécie de casa aberta às crianças , onde todos vinham aprender. Nessa  altura , ainda não tinha a percepção das assimetrias sociais que existiam.
Para mim , a  descoberta da escola foi um acontecimento maravilhoso. Havia tantos meninos e meninas de bata branca a chegar naquele primeiro dia, que não me senti diferente de qualquer um deles. A Escola era o lugar  para onde iam as crianças a partir dos seis anos. Era lá que se iniciava o longo caminho da aprendizagem para qualquer um deles. Era esta a percepção que eu tinha nos meus poucos anos de vida : aprender a ler e a escrever eram os primeiros passos de uma grande e jamais acabada  descoberta. E foram realmente. Esses primeiros anos marcar-me-iam para sempre. (...)"
Maria José Vieira de Sousa, in "O livro que já escrevi", Maio de 2018pp.107-113

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