sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Maré




Maré
Vim dar às contas do passado
Onde quiseste morar Onde quiseste ficar E num corpo inteiro Eu vou Beber e beber do teu sal E eu sei que me salvas Com o mar que o teu sal dá E eu sei que me salvas Numa maré tão suave Tentei mas não me sais da cabeça Eu dei voltas ao sol Na esperança que aqueças Eu sei que o beijo que me dás Faz parte das teias que me teces Ouço-te nas preces do mar E eu sei que me salvas Quando dermos de caras com o tempo E eu sei que me salvas Com o mar que o teu sal dá E eu sei que me salvas Numa maré tão suave Agir
Ricardo RibeiroAna Moura, em  Maré.
Voz: Ricardo Ribeiro e Ana Moura. Letra e música: Agir.  Guitarra: Rodrigo Correia . Baixo: Rodrigo Correia. Produção: Agir .  Mix e Master: Nuno Simões

‘Maré’ é um tema de almas reunidas conscientes do mar, ora sereno ora revolto, da vida. Duas almas num canto que se salvam do quotidiano e do tempo que as atravessa. Mais do que uma canção, são versos de fraternidade e paciência com a vida e com tudo o que nos dá. Porque sabemos que nos podemos salvar uns aos outros com amor e empatia.”
Ricardo Ribeiro 

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

A maravilha da vida e o horror da vida

 

ALBERTO DE LACERDA:
A MARAVILHA DA VIDA E O HORROR DA VIDA
por Eugénio Lisboa
"Quando conheci Alberto de Lacerda, em Lourenço Marques, em meados dos anos quarenta (do século passado), havia, entre nós, um factor comum: gostávamos ambos de ler e líamos tudo a que podíamos deitar mão. Mas havia também uma diferença : o Alberto lia sobretudo poesia e eu lia sobretudo ficção, teatro e História. Não que a poesia me não atraísse : o de António Nobre chegara-me, com alarme, às mãos, bem como o Fel, de José Duro (que me pus a imitar, naquela espécie de atracção-repulsão que a morte exerce sobre os adolescentes). Mas não tinha poesia facilmente à mão. Os Poemas de Deus e do Diabo, difíceis de encontrar no mercado local, ouvi-os, lidos por amigos que se deixavam facilmente fascinar pela eloquência sulfúrica (e bela) do bardo de Portalegre. De Fernando Pessoa, chegaram-me, também de ouvido, as heresias de Caeiro e os histerismos de Campos. E pouco mais. Com o Alberto, era diferente: dois anos mais velho, dispondo de muito mais tempo porque o liceu lhe interessava pouco e era faltão, dotado de um apetite insaciável pela poesia (que desencantava, por compra, por empréstimo ou em casa do pai), pela arte e pela vida, ferido de ambição desmedida e daquele modicum de megalomania que aflige tanto adolescente e não é mal por aí além, o Alberto devorava poesia, escrevia poesia e falava – já então – admiravelmente de poesia. Era um conversador extraordinário, cheio de caprichos, de paixões, de rejeições, de convicções em itálico bem acentuado, de ironias desmedidas, de achados inesquecíveis... Como poucos, sabia ser afrontoso, com um toque de maldade de uma elegância florentina. Mas não era nunca pedante e tinha um horror sagrado pelos valores “estabelecidos” e pomposos, por títulos, por “importâncias”. Lia o que lia e descobria o que descobria, pisando, por si próprio, terreno ainda novo e inexplorado.
Como todos os adolescentes, tinha conflitos  interiores e familiares, histórias que teria pudor de contar fosse a quem fosse (Régio, por essa altura, marcava-o, embora, depois passasse a rejeitá-lo com alguma injustiça virulenta).
Intrigava-me algum tanto verificar que os grandes ficcionistas que, por essa altura, me iam apaixonando (Stendhal, Tolstoi, Dostoiewsky, Charlotte Brontë) – eram postos à distância pelo Alberto que se “não atrevia” a mergulhar naquela massa, romanesca de dimensões, para ele, aterradoras. Tratava-se, pareceu-me, de uma espécie de receio... de quase pânico! Mais tarde, mudaria e viria a ler, com prazer e argúcia, numa aproximação sempre pessoal, grandes obras de ficção.
Havia, já então, no Alberto, algo de saliente que nos impressionava sem que soubéssemos  muito bem identificá-lo: um manejo invulgar da língua, um enamoramento com a língua, que desferia com vigor e frescura, num descobrimento singular de tesouros escondidos num glossário aparentemente gasto mas que ele punha a vibrar com timbre escandalosamente renovado.
Em Lourenço Marques, bonita cidade do Índico feita para, com gosto, se morar nela, habitava uma gente singular e culta que nos ia enchendo a alma de um bom veneno propiciador: o sibilino e britânico Rola Pereira, outrora amigo de Pessoa e de Sá Carneiro, que ensinava matemática sedutora a toda a gente menos ao Alberto e que, nos interstícios dos números em parada, ia mesmerizando os jovens ouvintes com a última palavra em poesia lusíada: Fernando Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, António Botto, José Régio...; ou o imprevisível e cultíssimo Domingos Reis Costa, professor de Francês e Português e velho amigo de Hernâni Cidade e Miguéis, que trazia, da sua vastíssima (e lida!) biblioteca, livros que ia disseminando pelas mãos vorazes dos que para eles já iam preparados pelas palavras prefaciadoras, sugestivas e não raro embebidas em tónico veneno, daquele exilado por razões que tinham a ver com amores de perdição (diziam, sussurrando, as más línguas). Naqueles subtrópicos, não se morria exactamente de pasmo – como o poderiam ter dito tantos que por lá deixaram rasto, o Alberto, o João da Fonseca Amaral, o Rui Knopfli, a Maria de Lourdes Cortez, o Vítor Matos e Sá, o Reinaldo Ferreira, o António Esquível, o Fernando Ferreira, o Cardigos dos Reis, a Maria Luisa Soares, a Glória de Sant´Ana, o Tiago Oliveira, o Cordeiro de Brito, tantos outros.
Cheio de “razões de queixa”, o Alberto não foi nunca, contudo, nem um amargo, nem um deprimido. Cantava, nos seus textos, “a maravilha da vida [e] o horror da vida”, mas nem a maravilha lhe adocicava a descascada elegância do dizer, nem o horror lhe tirava o apetite de viver; cantava para ajudar “a não esquecer nunca a liberdade”, mas nunca consentiu que o seu amor à liberdade lhe desviasse a pena até às fronteiras da demagogia. Quis que os seus versos “tivessem vida própria como os gatos, os tigres, os homens belos com olhos de criança, os lemes e os quadros a óleo, que mudam com a temperatura do mar, a luz do dia e o sol da noite.”
As suas paixões literárias nunca o cegavam e, no momento próprio, era capaz de fazer as mais inesperadas e ousadas reservas, mesmo às vacas sagradas da literatura, nas quais ninguém ousaria tocar nem com uma flor. Para dar só um exemplo, numa crónica enviada para o semanário A Voz de Moçambique e publicada no nº. 150 de 11.10.1964, intitulada provocadoramente “Nota muito atrevida sobre Baudelaire”, começa num tom apologético: “Numa casa alheia, num momento de tédio, tiro da estante Baudelaire, e cai-me como um precipício este verso sublime: «Nous avons dit souvent d’impérissables choses». O tom é quase o da linguagem falada. Mas não é prosa. É um verso espantoso; para além da magia sónica (que não chegaria) está concentrada uma experiência amorosa ao limite da ambiguidade e até quase da ironia: nenhumas coisas ditas são imperecíveis; no entanto, o amor e a arte exigem – na sua lucidez delirante – ou no seu delírio lúcido – essa dimensão infinita.” Para, logo a seguir, abrir fogo com as suas bem municiadas baterias: “A minha querela com Baudelaire é que ele faz da poesia – com o seu culto do remorso, a obsessão do pecado, a mise-en-scène macabra, as aparições múltiplas do Diabo, do Mal, do Inferno (com traços, muitas vezes, de gravura barata) – uma espécie de confessionário católico”. Avesso a tudo quanto oprime – o conceito de pecado, o Diabo dos que nele acreditam, o remorso, o Inferno anunciado -, o Alberto, no mesmo texto em que rejeita o Baudelaire de tudo isto, exalta o outro Baudelaire, o do amor e da arte que “exigem – na sua lucidez delirante – ou no seu delírio lúcido – uma dimensão infinita.” É esta dimensão infinita, este excesso, este exagero de afirmação que dão a quase toda a sua poesia uma força única e um fulgor inigualado. Veja-se, por exemplo, o belo poema “A língua Portuguesa”:
 
Esta língua que eu amo
Com seu bárbaro lanho
Seu mel
Seu helénico sal
E azeitona
Esta limpidez
Que se nimba
De surda
Quanta vez
Esta maravilha
Assassinadíssima
Por quase todos que a falam
Este requebro
Esta ânfora
Cantante
Esta máscula espada
Graciosíssima
Capaz de brandir os caminhos todos
De todos os ares
De todas as danças
Esta voz
Esta língua
Soberba
Capaz de todas as cores
Todos os riscos
De expressão
(E ganha sempre a partida)
Esta língua portuguesa
Capaz de tudo
Como uma mulher realmente
Apaixonada
Esta língua
É minha Índia constante
Minha núpcia ininterrupta
Meu amor para sempre
Minha libertinagem
Minha eterna Virgindade
 
Note-se, neste poema, os característicos excessos de afirmação: “Esta maravilha / Assassinadíssima”, / “Esta máscula espada / Graciosíssima”/ “Esta língua / Soberba / Capaz de todas as cores”, etc.etc. E note-se também como ele “isola” os superlativos absolutos simples, dando-lhes a categoria de constituírem cada um deles, só por si, um verso único (“Assassinadíssima”, “Graciosíssima”).
Uma das características mais atraentes da arte deste grande fabbro é a tensão que, nele, vai constantemente existindo entre este excesso “romântico” e o mais rigoroso governo dos constrangimentos que a grande arte clássica recomenda: esta tensão sublima-se, de modo grandioso, na sua colecção de Sonetos, editada em Veneza, em 1991 – uma das mais belas colectâneas  desta forma poética – o soneto – que entre nós se publicaram: uma forma tão exigente, que Godeau, bispo de Vence, insinuava não ser o soneto coisa deste mundo.
O meu convívio com Alberto de Lacerda viria a reatar-se, de modo algum tanto errático, em Lisboa, entre 1947, ano em que aqui cheguei, vindo de Moçambique, e 1951, ano em que ele partiu para Londres, onde, para sempre se fixaria. E retomou-se, em Londres, onde eu próprio vivi, entre 1978 e 1995. Foi aqui que mais e mais frutuosamente (para mim, e espero que também alguma coisa, para ele) convivemos.
Em Lisboa, lembra-me sobretudo o Alberto que nos aparecia lá para os lados da Alameda Afonso Henriques e arredores, onde vivíamos eu, o Alberto Parente (que, por essa altura ainda poetava) e o Nuno Ribeiro, ambos de Moçambique e ambos com apetências culturais muito vincadas. O Alberto vinha feito caixeiro-viajante da Távola Redonda e dos livros da Sophia, que nos vendia, com grande empenho e um discurso “de apoio” sabiamente persuasivo. Falava-nos de poesia portuguesa e francesa, de música (eu acabara de descobri-la, com Mozart), de pintura e da vida cultural em Lisboa, sobre a qual exercitava o seu minucioso conhecimento e a sua ácida ironia. E fazia-o com segurança, convicção e discriminação. Ao pé dele – submergido pelas Matemáticas Gerais, pela Química Geral e pela Geometria Descritiva – sentia-me um bárbaro, apanhando migalhas de sabedoria e de outras coisas sublimes que ele ia semeando com alguma displicência e um toque de ironia. Os seus textos de prosa na Távola, a sua poesia, também na Távola, mostravam-me requintes de leitura, sensibilidade e inteligência crítica que me deslumbravam e quase me ofuscavam. Eu lia outras coisas, fazia outras descobertas: Gide, Proust, Ibsen, Shaw, Bunine, Tcheckov, Régio, Shakespeare, Baudelaire, Montaigne, Goethe... Mas invejava a agilidade, a fulgurância, a subtileza, a ironia acerada do Alberto. Depois, um dia, desapareceu. Fora para Londres. Viria a reencontrá-lo, em 1963, em Lourenço Marques, para onde eu regressara, em 1955. Fora ali, em revisita, uma revisita que nada queria ter de saudosista: “Não vim à procura de nada / Nem de saudades que não tenho / Nem da carga do tempo perdido / Nem de conflitos sobrenaturais / Do tempo e do espaço / [...] / Vim para ver / Para ver de novo / Para contemplar sem perguntas / Não vim à procura de nada / Um rio não se interroga / O vento não se arrepende”. Viajou por Moçambique inteiro, fez um extraordinário recital de poesia na Câmara Municipal de Lourenço Marques (lembro-me, com particular emoção, das suas leituras de Camões, Herberto Helder e Manuel da Fonseca) e demorou-se, com êxtase criativo, na sua Ilha de Moçambique, onde nascera trinta e cinco anos antes:
          
Ó Oriente surgido do mar
Ó minha Ilha de Moçambique
Perfume solto no oceano
Como se fosse em pleno ar
 
Ou ainda:

Ilha onde os cães não ladram e onde as crianças
brincam
No meio da rua como peregrinos
Dum mundo mais aberto e cristalino
 
Ou ainda, num dos seus excessos magnificamente dominados:
 
Ó corpos dados com melancolia
Às melodias do meu ardor!
Ó pretas lindas! Ponta da Ilha!
Vestem soberbos panos de cor.
Deles se despem com grã doçura,
Vénus despida do próprio mar
É com doçura que negras, lindas,
Desaparecem no meu calor.
 
Em Vila Cabral, dedica um poema corajoso a Mouzinho de Albuquerque, nem politicamente correcto, nem colonialmente apologético, apenas um “retrato” prodigioso do personagem, num equilíbrio de sombras e de luzes, naquela espécie de “justiça” que a arte sabe fazer, porque sabe compreender:
 
Tinhas o germe odioso dos tiranos
O fogo sinistro da intolerância
Mas que era feito de uma só palavra
Herói soberbo
Ó árvore gigantesca
Que tu próprio abateste
Em vez dos deuses
Que te contemplam a distância
 
Juntar no mesmo personagem o “odioso dos tiranos” e o “herói soberbo”, eis um tipo de justiça que só os grandes da imaginação costumam saber fazer – para eterna celeuma dos futuros leitores (disto, efectivamente, se fazem, depois, as “discussões” e as “teses” mais ou menos estéreis, porque argumentam inutilmente com a força afirmativa e contraditória da vida – que os poetas tão bem intuem).
Mas foi em Londres, repito, entre 1978 e 1995, que o nosso convívio se apertou. Não durava, nos primeiros tempos, o ano todo, porque o Alberto se dividia, por essa altura, entre a América e a Inglaterra. Mas, quando os seus compromissos americanos cessaram, estava quase sempre em Londres, fora uma ou outra saída, por pouco tempo. Vinha à embaixada com regularidade e saíamos para almoçar, quase invariavelmente, numa cafeteria simpática, no Habitat, de King’s Road. As conversas   não eram nunca repetitivas: o Alberto tinha uma variadíssima paleta de interesses, uma originalidade de visão e um apetite de vida que lhe não permitiam repetir-se cansativamente. Excepto quando falava de Portugal e dos portugueses. De cada vez que vinha a Lisboa, para reencontrar amigos e lugares, regressava a Londres como uma vespa assanhada. Tinha dificuldade em perceber ou, pelo menos, em aceitar que caía em Lisboa, no meio de agendas já fixadas e compromissos já assumidos, que tornavam inviável uma disponibilidade total e imediata. Isto feria-o mortalmente, como uma traição. Vigiava, com acinte, os gestos da pessoa  com quem estava: se os olhos se desviavam, mesmo discretamente, para o relógio de pulso, a controlar o tempo, estava o caldo entornado. Deixava-o igualmente perplexo e, aqui, com mais do que alguma razão, a pouca curiosidade mostrada por amigos e conhecidos portugueses, relativamente à sua vida em Londres, à vida em Londres: embrenhados na intriga paroquial lusíada, que tinham como centro do mundo, falavam, com deleite, de casos e escândalos locais, não revelando a mínima curiosidade por Londres, pela vida cultural de Londres, por tudo quanto não eram as conspirações vigentes na aldeola lusitana. Observei-lhe, várias vezes, que não entendia, visto isso, por que insistia em visitar Portugal. Claro que era o país da língua dele, onde tinha familiares e velhos amigos (cada vez menos); mas, se as pessoas e a sua maneira de estarem no mundo o indispunham de modo tão visível, para quê teimar?
Havia nele contradições insanáveis, velhos fantasmas não exorcizados, ressentimentos não aplacados e um desejo quase mórbido de ir lá, ou antes, vir cá, para se poder, convenientemente... indignar. E havia também , nele, algumas cegueiras e ingenuidades. Um dia, por exemplo, à saída da cafeteria do Habitat, enquanto esperávamos pelo autocarro, vestiu, de repente, um ar solene e meio embaraçado e disse-me que “me devia” uma explicação ou uma confissão. Fiquei alarmado... Que viria dali? Esclareceu: éramos amigos havia tanto tempo e nunca me dissera a verdade acerca de si próprio: era homossexual! Não pude deixar de sorrir e respondi-lhe: “Meu caro Alberto, ainda tu não sabias que eras e já eu sabia que eras...” Olhou-me, meio aliviado, meio intrigado: “Era assim tão visível?” Claro que era, mas fugi à verdade: “Acho que não. Mas talvez eu fosse perspicaz...” A verdade é que, quando o reencontrara em Lisboa, entre 1947 e 1951, tornara-se para mim claro que o Alberto ainda ignorava a sua verdadeira natureza. Teve até uma paixão fortíssima – e suponho que mantida secreta – por uma grande poetisa portuguesa: alguns dos seus versos alimentam-se dessa pulsão heterossexual embora, mais do que provavelmente, platónica e, com alguma probabilidade, ignorada pelo seu objecto.
Mas foram as suas animadas conversas prodigiosamente alimentadas pelo seu convívio apaixonado com a literatura, a pintura, a escultura e a música, e não pouco pelo seu variado comércio com alguns figurões do mundo universal da cultura – que me deram um dia a ideia de propor ao então Presidente do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Fernando de Mello Moser, a criação de qualquer coisa como um lugar de super-leitor ou animador cultural, para todo o Reino Unido ou até extensível a outros países, para o homem cultíssimo e excelso conversador que era o Alberto: o qual meteria num chinelo, perdoe-se-me a expressão popular, tanto leitor afligido de fastio ou de pouca capacidade de comunicação. O Alberto poderia, sugeri eu, passar períodos de 3 meses – ou de 2 meses, a ver – em cada universidade, semeando saber, entusiasmo, sedução cultural. Mello Moser, personalidade que não esquecerei – pela competência, sensibilidade, integridade e elegância moral – mostrou-se sensível à proposta, gostou até francamente da ideia e prometeu ir ver a volta burocrático-jurídico-administrativa que poderia dar-lhe. Morreu, infelizmente, pouco depois e nunca mais me pareceu haver abertura para reincidir na proposta. Ficou-me a consolação de ter-se tornado possível, graças à pronta intervenção, a meu pedido, de Teresa Patrício de Gouveia, a atribuição de um subsídio de mérito cultural que veio, até certo ponto, ajudar, somado à magra reforma que lhe ficara das suas incursões universitárias nos Estados Unidos (Austin, Nova Iorque, Boston), a ter uma velhice  um pouco menos desprovida. Aproveito para esclarecer que, ao contrário do que já tem sido dito, Alberto de Lacerda não “morreu na miséria”, tal como Fernando Pessoa se não extinguiu “vadio e pedinte”. Os mitos miserabilistas  têm, entre nós, circulação afortunada mas nem sempre correspondem à verdade dos factos. Alberto não viveu folgadamente mas também não cortejou a miséria: comprava livros, ia a concertos e exposições e teve, felizmente, bons amigos que o apreciavam e acarinhavam. A vida teve, para ele, maravilhas e horrores. Não será um pouco o caso de quase todos nós? Uma das maravilhas que na vida lhe aconteceu foi, com excepção dos últimos dois ou três anos da sua existência, a cidade de Londres, que se tornaria, para si, como disse, numa das elegias de Londres, a “cidade entre todas bem amada”, “Londres / Centro exacto / Da liberdade” : foi ali que, finalmente, se sentiu em casa, fazendo, feliz, ainda na velhice, a eterna, poupada vida de estudante, indo ainda cedo, pela manhã, para o Picasso, na King’s Road, carregado de jornais e da vontade de implicar com tudo o que interferisse com o seu desejo de estar à mesa, a ler, sossegado, sem interposições sonoras de rádios ou televisões...Ali fruiu, com intensidade, com continuidade, com sofreguidão, o que há de melhor no mundo, em pintura, em escultura, em música, em ballet, em teatro declamado, em literatura, em convívio civilizado com tantos dos seus pares.
O desencanto é, contudo, o companheiro certo do envelhecer: como se a aproximação da morte nos induzisse a começarmos a pôr defeitos àquilo que iremos em breve  abandonar : nos últimos tempos, ao telefone, o Alberto dizia-nos, com amargura, do pesadelo em que Londres se lhe estava a tornar. “Aquilo” já pouco ou nada tinha que ver com a “cidade entre todas bem amada”. É bem certo: quando morremos, esboroa-se também o mundo à nossa volta...
Falando da obra de Giacometti, por altura da morte deste, num texto – “Notações” – publicado no Notícias de Lourenço Marques, em 26. 2. 1966, Alberto escrevia: “Eu esperava coisas ainda mais sublimes, simplicidades ainda mais misteriosas”. Já em data anterior, 21. 10. 1965, e no mesmo jornal, escrevera: “É preciso redescobrir a elegância. Mas por dentro”. E logo a seguir: “A elegância é uma raiz. Não é um ornamento”. Elegância e simplicidade. Eis dois vectores fundamentais que compõem o polígono de forças que suporta a obra singularmente profunda e transparente do autor de Palácio. Simplicidade: ele sempre a defendeu, como o outro único lado possível da profundidade. Por isso abominava  o jargon pacóvio e “snob” de tanto crítico palrador, obscurantista e pouco sensível à verdadeira poesia. Num texto publicado ainda no Notícias de Lourenço Marques, em 6. 4. 1966, escrevia isto: “O autor de Seven Types of Ambiguity [William Empson] tem o poder raro de conseguir profundidade de pensamento expressa de uma maneira lisa, directa, elegante. E incapaz de pedantaria [...]”. Toda a obra de Alberto de Lacerda – poesia, ensaio, crónica – é uma eloquente homenagem à profundidade transparente e elegante, ao horror desmedido à pedantaria e ao indecifrado mistério da simplicidade. "   
Eugénio Lisboa, in Uma Conversa Silenciosa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, S. A., Março de 2019, pp.225-239

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Desafios da filosofia no século XXI

Tela de Paula Rego
Desafios da filosofia no século XXI: ciência e sabedoria
por Ivan Domingues
"Nos tempos antigos, se a meditação acerca da experiência da dor, da morte e do sofrimento levou a um saber dos limites e à afirmação do homem como ser mortal e finito, como nas tragédias ao associar os temas do destino e do quinhão, não é menos verdade que os seres humanos foram vistos ainda como a mais divina das criaturas e mesmo como verdadeiros semi-deuses: tal é o caso dos heróis dos jogos olímpicos até hoje, capazes num átimo, com seus pés alados e mãos divinas, de desintegrar o corpo e vencer a matéria. Na idade média, com o exemplo de Cristo e o ensinamento da tradição sapiencial do antigo testamento levando a um saber dos limites, sendo Deus o limite e mesmo o limite dos limites, pois é quem dá e tira a vida, com seu quinhão, sua grandeza e sua miséria, a experiência da dor é vista como provação, a terra um vale de lágrimas e o homem um ser dual, meio anjo e meio besta, que só atingirá a imortalidade depois do resgate e fora deste mundo decaído. Nos tempos modernos tudo mudou: não há destino, Deus não governa mais o mundo e a vida das pessoas, a natureza foi instrumentalizada e é judiada de dar dó, não há mais quinhão e nem há limites. Logo, tudo é possível, a morte não faz sentido, se alguém adoece e se dá mal, a culpa não é do destino ou da natureza, que falhou, mas do indivíduo, e a busca da eternidade não é uma quimera, coisa de religião e promessa de elixir, mas assunto da ciência e matéria da tecnologia: margarinas sem gorduras trans, ovos com ômega três, cervejas sem álcool, bancos de células-tronco, chips de memória, pílulas de juventude etc. – tudo já está aí à nossa disposição, bem como gadgets, engenhocas e dispositivos para nos distrair de nós mesmos e potencializar os prazeres da vida boa e fadada a ser cada vez mais longa: mas longa para quê? para sofrer mais? Em contraste com o admirável mundo novo das tecno-ciências, o nihilismo campeia no mundo moral e promove estragos terríveis, deixando o indivíduo desamparado e incapaz de enfrentar as adversidades: olhem o caso de Katrina, depois que o furacão arrasou Nova Orleans, nos Estados Unidos – milhares de indivíduos obesos, estatelados, gritando: "estamos com fome!". Mais do que nunca, a filosofia deverá ter uma mensagem para essas coisas, ajudar a elaborar nossas experiências e nos livrar dessa situação: mostrar por exemplo que é preciso morrer, para renascer a vida, como a borboleta ao sair da crisálida.
Daí a centralidade da questão antropológica na metafísica e na filosofia: afinal quem põe e tira o sentido nas e das coisas é o homem. Porém, o que é, quem é e o que será do homem? Onde começa seu império e onde termina? O que é sábio buscar e renunciar?
Vimos com Jó e o Eclesiastes que a sabedoria é o conhecimento dos limites e temor a Deus. Vivemos hoje num mundo sem Deus – o que não quer dizer que não haja limites: este está na natureza e também no homem.
O homem é um ser de natureza e ser de artifício e de invenção – disto sabemos desde Platão no Banquete – e a vida humana está polarizada – tal é a nossa condição segundo as sagradas escrituras – pela grandeza e pela miséria. Mas não é só: haveria muito a ser dito e nuançado ainda, alargando a experiência antropológica e problematizando a condição humana."
Ivan Domingues, Professor titular de filosofia da UFMG, excerto da Conferência publicada na Revista de Filosofia Kriterion, volume 47, nº 113,Brasil.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Viajar pela Polónia

Uma verdadeira viagem é muito mais do que um intervalo vivido ou livre longe de casa. 
              Paul Theroux, Comboio Fantasma para o Oriente

 
Polónia em 4k, por 4kfilmsbyadnan
"Neste vídeo, mostrarei alguns dos lugares deslumbrantes que descobrimos enquanto explorávamos a Polônia. Viajei para muitos dos destinos mais icônicos e de tirar o fôlego, incluindo: • Zakopane • Montanhas Tatra • Rio Dunajec, Montanhas Pieniny • Península de Hel • Capital de Varsóvia • Cidade Velha de Cracóvia • Gdańsk • Wroclaw • Katowice • Szczecin • Poznań • Praia de Sopot • Distrito dos Lagos da Masúria • Lago Morskie Oko • Karpacz, Montanhas Karkonosze • Floresta Białowieża • Parque Nacional Ojcowski • Castelo de Malbork • Castelo de Książ • Castelo de Czocha, Leśnia • Gdynia (Orłowo) • Kazimierz Dolny • Mina de Sal de Wieliczka e muito mais! "4kfilmsbyadnan

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

A Laguna

A Laguna
por Joseph Conrad
"Ao fundo da avenida rectilínea aberta na floresta pela cintilação do rio, o sol aparecia, sem nuvens e encandeante, pousado sobre a água que brilhava como uma folha de metal. A floresta sombria e triste erguia-se de ambos os lados do largo rio numa imobilidade silenciosa. Nas lamas da margem e por baixo das majestosas árvores de grande porte cresciam as palmeiras nipa, sem tronco e com as enormes e pesadas folhas suspensas sobre o remoinhar das águas pardacentas. No ar parado, as árvores, as folhas, os ramos, as lianas, as pétalas das flores recém-desabrochadas pareciam ter sido encantadas e fixadas numa imobilidade perfeita e definitiva. No rio também nada mexia, a não ser os oito remos que regularmente subiam relampejando para mer­gulhar na água ao mesmo tempo como um só; e o timoneiro descrevia uma curva luminosa por cima da cabeça com a pagaia antes de a mergulhar regularmente à direita e à esquerda.
O branco, de costas para o sol, percorria com o olhar a vasta extensão deserta do estuário. Durante as últimas três milhas do seu curso, o rio, até aí hesitante e sinuoso, corre a direito para o mar, como que corre atraído irresistivelmente pela liberdade dum horizonte a leste — para o leste que abriga simultaneamente a luz e as trevas. A retaguarda do barco, o grito repentino duma ave, um grito não harmónico e em decrescendo, deslizou pela superfície polida das águas e perdeu-se, antes de chegar à outra margem, a um silêncio de morte em que tudo estava mergulhado.
Compreendia-se esse ambiente soturno: na cabana da concessão está uma mulher a morrer. É Diemelen, a mulher que Arbat muito amara. Apesar de, pela sua condição servil, ele não poder aspirar a tal objecto de desejo.
Agora, enquanto aguardam pelo último suspiro dela, Arbat conta como decidira fugir com ela, ajudado pelo irmão, que nutria por ele um profundo amor fraternal:
O meu amor era tão grande que pensava que me poderia guiar até um país onde não haveria morte se conseguisse escapar à cólera de Inchi Midah e à espada do Rajá. Remávamos com toda a força, respirando por entre os dentes cerrados. As pás dos remos mergulhavam profun­damente na água plana. Saímos do rio; vogámos em canais claros entre baixios. Contornámos a costa negra; bordejámos a praia arenosa onde o mar diz segredos à terra; e a areia branca cintilava à nossa passagem, tão rápido o nosso barco corria sobre a água. Não falávamos. Eu disse só uma vez: — «Dorme, Diamelen, pois dentro de pouco tempo vais precisar de todas as tuas forças». — Ouvi a doçura da sua voz mas não voltei a cabeça uma só vez. O sol nasceu e continuámos a remar. O suor pingava-nos da cara como a chuva das nuvens. Fugíamos envoltos em luz e calor. Não olhei para trás uma vez sequer mas sabia que os olhos do meu irmão, atrás de mim, olhavam fixamente em frente, pois o barco avançava tão a direito como o dardo dum homem da floresta quando sai do sutripitan. Não havia melhor remador, melhor timoneiro que o meu irmão. Tínhamos ganho muitas corridas os dois com aquela canoa. Mas nunca usáramos as nossas forças como naquela altura — naquela altura que foi a última em que remámos juntos! Não havia guerreiro mais valente nem mais forte que o meu irmão. Não podia desperdiçar forças para me voltar e olhar para ele, mas ouvia a sua respiração tornar-se cada vez mais ruidosa. No entanto ele não falava. O sol estava alto. O calor colava-se-nos aos rins como uma língua de fogo. As costelas pareciam ir rebentar-se-nos e eu já não conseguia encher o peito de ar. E então senti que me era necessário gritar com o meu último fôlego: — «Descansemos...»— «Está bem» — respondeu ele; e a sua voz era firme. Ele era forte. Ele era valente. Ele não conhecia o medo nem a fadiga... o meu irmão!
Um murmúrio forte e doce, um longo e débil murmúrio; o murmúrio de folhas, de ramagens agitadas, correu das profundezas emaranhadas da floresta, correu sobre a planura da laguna marulhou subitamente contra as estacas lodosas. Um sopro de ar quente veio aflorar os rostos dos dois homens e passou com um ruído lúgubre— um sopro profundo e curto como um suspiro inquieto do sonho da terra. Arsat retomou a sua narrativa em voz baixa e monocórdica:
Varámos a canoa na praia duma pequena baía perto duma língua de terra que parecia barrar-nos o caminho; um extenso promontório coberto de árvores que penetra profundamente no mar. O meu irmão conhecia aquele lugar. Do outro lado do cabo, desagua um rio e existe um caminho estreito que vai dum lado ao outro através da selva. Fizemos uma fogueira e cozemos arroz. Depois deitámo-nos na areia macia, à sombra da canoa, para dormirmos enquanto ela vigiava. E mal tinha fechado os olhos ouvi-a soltar um grito de alarme. Erguemo-nos dum salto. O sol tinha já feito três quartos do seu curso e, na abertura da baía, avistámos um parau tripulado por muitos homens. Reconhecemo-lo imediatamente; era um parau do Rajá. Eles estavam a esquadrinhar a costa e viram-nos. Fizeram soar o gong e rumaram para dentro da baía. Senti o coração faltar-me. Dicmelen sentou-se na areia e cobriu o rosto. Não tínhamos fuga possível por mar. O meu irmão riu-se. Tinha a espingarda que tu lhe tinhas oferecido antes de partires, mas só uma mão-cheia de pólvora. E disse rapidamente: — «Leva-a pelo caminho. Eu aguento-os pois eles não têm armas de fogo e desembarcar contra um homem armado é morte certa para alguns. Foge com ela. Do outro lado daquele bosque vive um pescador... com uma canoa. Logo que tenha gasto os cartuchos todos vou atrás de vós. Tu sabes como corro e antes de eles terem tido tempo de chegar ao outro lado já nós teremos partido. Vou aguentar o mais que puder pois ela é só uma mulher... que não sabe lutar nem correr mas tem o teu coração nas suas mãos frágeis». — Agachou-se atrás da canoa. O parau aproximava-se. Nós os dois corremos e já íamos no caminho quando ouvi tiros.
O irmão de Arbat morreria nesse combate para possibilitar a fuga dos amantes malditos. Tão malditos, que a doença estava em vias de levar consigo a frágil Diemelen.
Tendo perdido quem muito amara, Arbat planeia um último gesto: o de vingar o irmão, procurando e matando o poderoso e injusto rajá:
O sol iluminava-lhe o rosto, aparecendo já a rasar o topo das árvores, na sua ascensão constante. A brisa tornou-se fria; a superfície da laguna brilhava com a luminosidade. A floresta emergiu das sombras da manhã, tornou-se distinta como se se tivesse aproximado para mais perto — e estacado numa grande agitação de folhas e de ramagens. Na luminosidade impiedosa, o segredar da vida inconsciente elevou-se, envolvendo com uma ressonância incompreensível as trevas mudas da dor humana. Os olhos de Arsat erravam lentamente e depois fixaram-se no sol nascente.
- Não vejo nada — disse para si a meia voz.
- Não há nada — disse o branco, andando para a borda da plataforma e fazendo um aceno com a mão para o barco. Um grito veio de lá, através da laguna, e o sampan começou a deslizar em direcção à morada do amigo dos fantasmas.
- Se queres vir comigo, posso esperar por ti a manhã toda — disse o branco olhando para longe, para a água.
- Não, Tuan — disse docemente Arsat. — Não comerei nem dormirei nesta casa, mas primeiro tenho de ver o meu caminho. Agora não vejo nada — não vejo nada! Não há luz nem paz no mundo; mas há morte — morte para muitos. Nós somos filhos da mesma mãe... e eu deixei-o sozinho no meio dos inimigos; mas agora vou voltar.
Respirou profundamente e acrescentou como num sonho:
- Dentro de pouco tempo hei-de ser capaz de ver o suficiente para bater... para bater. Mas ela morreu e… agora ...só há escuridão.
Abriu os braços, deixou-os cair ao longo do corpo e depois ficou imóvel, de cara impassível e olhar petrificado, olhando fixamente para o sol. O branco desceu para a canoa. Os homens, manobrando as varas, correram ao longo do barco, olhando pelo ombro para o começo duma jornada esgotante. À popa, de cabeça coberta por um farrapo branco, o juragan continuou sentado, mal disposto e deixando a pagaia arrastar-se na água. O branco, com os cotovelos apoiados no telhado de folhas da casota pequena seguia com o olhar a esteira cintilante do barco. Antes 'de o sampan ter deixado a laguna e entrado no rio, ergueu os olhos. Arsat não se tinha mexido. Mantinha-se solitário, debaixo da luz penetrante do sol."
Joseph Conrad, in "Histórias inquietas", Editora Assírio & Alvim

domingo, 26 de outubro de 2025

Ao Domingo Há Música

Acrópole de Atenas, Grécia.

Canto  porque as palavras 
passaram cegas à espera
da luz da minha canção
Alberto de Lacerda, Merenda I

Para que a luz dê voz às palavras ,  o apontamento musical deste domingo recorda grandes nomes que ficaram gravados no repertório mundial da Música , do Canto...da Arte.


Vangelis & Irene Papas, em Oh , My Sweet Springtime .
Vangelis era um compositor grego conhecido pelos  temas de música electrónica. Faleceu no dia 17 de Maio de 2022. Irene Papas era uma actriz e cantora grega
Irene Papas, nasceu em 1926 perto de Corinto, na Grécia. Oriunda de uma família de intelectuais, iniciou-se no teatro, antes de dar os primeiros passos no cinema. Actriz e cantora famosa por suas atuações dramáticas e beleza austera, que lhe renderam papéis de destaque em filmes de Hollywood, bem como no cinema francês e italiano, ao longo de seis décadas. Morreu aos 93 anos, a 14 de Setembro de 2022
O Ministério da Cultura grego, aquando da sua morte, referiu o seguinte:
“Magnífica, majestosa, dinâmica, Irene Papas era a personificação da beleza grega nas telas do cinema e no palco do teatro, uma protagonista internacional que irradiava a identidade grega”, palavras da  Ministra da Cultura, Lina Mendoni, em  comunicado. O Primeiro Ministro Kyriakos Mitsotakis  descreveu-a como uma fonte de “admiração e inspiração” para gerações de gregos.
Irene Papas tornou-se conhecida internacionalmente após as actuações em "Os Canhões de Navarone", em 1961, e "Zorba, o Grego", em 1964, contracenando com os astros de Hollywood, Gregory Peck e Anthony Quinn. Ao todo, ela participou em  mais de 50 filmes. Como cantora também colaborou com VANGELIS.
Evanghelos Odysseas Papathanassiou, amplamente conhecido pelo seu primeiro nome "Vangelis", foi um músico e compositor grego que deixou uma marca indelével no mundo da música electrónica e ambiente. Nascido em 29 de Março de 1943 em Agria, uma pequena cidade perto de Volos, na Grécia, Vangelis demonstrou paixão pela música desde cedo, tornando-se um dos compositores mais influentes e respeitados da actualidade. Algumas das suas obras mais conhecidas incluem as trilhas sonoras de "Chariots of fire" (1981), "Blade Runner" (1982), "Missing" (1982), "1492 Conquest of Paradise" (1992) e "Alexandre" (2004), que foram vencedoras de Óscar.  Mas, em vida, Vangelis não se limitou a compor para o cinema; ele também criou músicas para teatro, ballet, documentários, comerciais e eventos de moda e caridade. Infelizmente, Vangelis faleceu no dia 17 de Maio de 2022 em Paris, França, devido a complicações de uma infecção por COVID19.
Embora mais conhecido por  composições musicais, Vangelis não se limitava à arte da música; também gostava de se expressar por meio da pintura e da escultura. Crescendo em Volos, Vangelis foi criado  com o seu irmão Niko, quando a família se mudou para Atenas, onde o pai trabalhava no ramo imobiliário. De acordo com suas próprias memórias, Vangelis sempre foi fascinado por som e música, desde a mais tenra infância. Lembrava vivamente de que, quando criança, sempre batia em coisas para ver que tipo de som produzia, e já havia encenado um concerto público aos seis anos de idade! O seu fascínio pelo som é essencial para o compreender  e à sua música.
Durante a longa carreira (abrangendo quase 60 anos), o seu trabalho recebeu o reconhecimento do público mundial e muitos prémios. No entanto, parecia que Vangelis sempre tentou deixar que a música prevalecesse  sobre  qualquer sucesso comercial. Desde os  primeiros sucessos com grupos como The Forminx e Aphrodite's Child , às  trilhas sonoras altamente aclamadas para filmes ,  Vangelis  evitava a atenção do público para se  concentrar na próxima criação artística.
   
Montserrat Caballé & Vangelis, em  March With Me (Legendado).
March With Me é um tema com a força de um hino, interpretado por Montserrat Caballé, em parceria com o compositor grego, Vangelis." A composição é da autoria de Vangelis, e a voz de Montserrat Caballé soa-nos a algo sublime, uma absoluta absolvição. É um hino à paz ao amor"
Nascida em Barcelona, no dia 12 de Abril de 1933, Maria de Montserrat Bibiana Concepción Caballé i Folch foi uma das maiores sopranos da história. 
Nascida no seio de uma família de fracos recursos económicos, conseguiu, apesar das dificuldades financeiras e graças a uma bolsa, estudar durante doze anos num conservatório de música da sua cidade natal. Concluiu o conservatório com distinção e ganhou uma medalha de ouro. Apesar do seu talento, teve dificuldades em se impor no panorama musical de Barcelona e decidiu emigrar. Assim, depois de estudar em Milão, Itália, Montserrat Caballé ingressou, em 1956, na Ópera de Basileia, na Suíça, fazendo a sua estreia em palco no ano seguinte ao interpretar Mimi da ópera La Bohème. Nos anos seguintes, participou em óperas como Tosca e Aida.
O seu primeiro grande êxito internacional, contudo, dá-se em 1965, no Carnegie Hall de Nova Iorque, ao fazer parte da ópera Lucrezia Borgia, de Donizetti. Caballé recebeu aplausos durante 25 minutos. Ainda nesse ano, actuou na Metropolitan Opera. O ano de 1972 ficou marcado pela estreia em duas salas míticas do mundo do espectáculo: o Scala, de Milão, e a Royal Opera House, em Londres.
A carreira de sucesso foi reconhecida com alguns prémios, caso da medalha de ouro da Generalitat da Catalunha (1982), o prémio nacional de música de Espanha (1988) ou o prémio Príncipe das Astúrias das Artes, em 1991, em conjunto com Victoria de los Ángeles, Teresa Berganza, Pilar Lorengar, José Carreras, Alfredo Kraus e Plácido Domingo.
Ao longo da sua carreira, interpretou mais de noventa personagens, desde a ópera barroca a peças de Verdi, Wagner, Puccini e Strauss. Participou em mais de quatro mil espectáculos e a sua versatilidade ficou clara quando se tornou a voz, com Freddy Mercury, dos Jogos Olímpicos de Barcelona. "Para o mundo da ópera foi uma verdadeira revolução", reconheceu mais tarde.
Entre 1992 e 2002, Montserrat Caballé abandonou os palcos e o seu regresso, que aconteceu em Barcelona, ficou assinalado por uma ovação de mais de dez minutos.
Montserrat Caballé, que foi nomeada embaixadora da boa-vontade da UNESCO, criou uma fundação para ajudar crianças necessitadas da sua cidade natal.
Apesar de ser uma celebridade, a cantora não gostava de ser tratada por diva. "Parece parvo", disse numa das suas últimas entrevistas, em 2012.
Faleceu, em Barcelona, a 6 de Outubro de 2018.

sábado, 25 de outubro de 2025

Eugénio Lisboa e a «sinceridade» linguística

Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa e a «sinceridade» linguística, em 1981
«Entre nós, tem-se hoje medo da linguagem límpida e transparente, que se teme seja tomada por ‘simplória’. De aí os contorcionismos complicados que passam por pensamento profundo e inacessível. E logo nos apetece atirar-lhes ao rosto com as palavras do clássico que António Sérgio gostava de citar: "porque vendem a sua ignorância por mistério, e como ninguém quer mostrar que ignora o que o outro mostra que sabe, fica-lhes mais perto aprovar a parvoíce alheia que descobrir a própria." O nosso político sofisticado ou intelectual bem faisandé fogem da linguagem clara como da peste e substituem a profundidade ou subtileza do pensamento, que não possuem, pelo compacto pretensioso da escrita, que não dominam. Psicólogo ferinamente arguto dos alçapões da mente humana, Nietzsche observava já que "aquele que sabe que é profundo esforça-se por ser claro; o que o quer parecer diante das turbas, esse procura a obscuridade." É-se complicado por incapacidade de se ser complexo. […]
Assassinato, portanto, da clareza de pensar, de observar e de apreciar. Assassinato. Mas então, digo eu, trata-se de um crime que tem vindo a cometer-se com uma lentidão perfeitamente lúgubre: há bem pelo menos seiscentos anos que ele dura. Nós queixamo‑nos com ênfase: estão a assassinar o Português! Mas o rei D. Duarte também já era dessa opinião; tanto, que se preocupava com arranjar receitas de bem escrever que impedissem os seus contemporâneos de assassinarem o português. No Leal Conselheiro, por exemplo, aconselha a "que escreva coisas de boa substância claramente, para se bem entender, e formoso o mais que ele puder, e curtamente quando for necessário (…)". Pede também "que não ponha palavras que, segundo o nosso costume de falar, sejam havidas por deshonestas".» […]
(…) o apocalipse que hoje se anuncia como pendente sobre a língua portuguesa é apenas mais um de entre vários apocalipses periódicos que ao longo dos anos os nossos alarmados puristas têm vindo a anunciar como sendo, todos eles, decididamente terminais…* A morte de uma língua é um pouco como a morte de um romance — um tema com que se costumam entreter os especialistas, que gostam de a anunciar e lhe analisar, eruditamente, as causas e os efeitos. O romance, no entanto, vai sobrevivendo à sua anunciada extinção. A língua também. Os anjos anunciadores é que são passageiros e vão tendo que se substituir uns aos outros, a bem da persistência do tema. (…)
Dito o que acima dissemos, resta-nos acrescentar que achamos realmente preocupante, neste momento que atravessamos (deixemos em paz o passado e o futuro), o acelerado da erosão. O remergulho periódico na nossa paróquia linguística estonteia-nos. O ‘invasor’ brasileiro substituiu o francês de outros tempos, com a agravante de que a abundância e a rapidez dos meios de comunicação agravam a intensidade do assalto. Não que pugnemos por uma conservação rígida da língua. Na prática da escrita, mesmo (mesmo, porquê?) ensaística, a reinvenção da língua, a criação de termos novos e de formas novas parecem-nos de obrigação. Não há como fugir-lhes. Mas parece-nos também que um certo equilíbrio entre o que se conserva e o que se acrescenta é igualmente necessário. O ponto em que esse equilíbrio vai estabelecer-se é que é o nó do problema. João de Araújo Correia sugere esta regra de ouro: "Não concebas neologismos inúteis. Podes morrer de parto." A palavra-chave, nesta norma, é o adjectivo ‘inúteis’. Há neologismos que são mais do que úteis, são indispensáveis para mantermos a língua em movimento. Mas a proliferação anárquica e cancerosa do neologismo desnecessário e inoperante pode levar a língua para descaminhos que nos façam pensar no que disse Breton, embora com intenção diferente do que aqui lhe damos: "A linguagem foi dada ao homem para que ele faça dela um uso surrealista."
Antes de terminar, gostaria de sublinhar uma vez mais um ponto a que já anteriormente aludi e me parece mais importante até do que a importação de estrangeirismos ou qualquer eventual heresia gramatical. Refiro-me à sinceridade linguística, se assim lhe podemos chamar: nos contorcionismos, no entupimento de colarinhos engomados, naquilo a que Sérgio chamava "frenéticos caprichos deliriosos de fantasmagórica anarquia’, nessa prosa pretensiosa e nebulosa que hoje abunda e se eriça nas páginas dos nossos jornais, revistas e livros, estão os sintomas, quanto a nós, de uma falta de integridade intelectual que claramente nos assusta.
Mas, em suma, e para voltarmos ao nosso discurso, fico-me com Correia Garção e com ele, repetindo-o, eu fecho:
Mudam-se os tempos, mudam-se os costumes
Camões dizia imigo; eu, inimigo.
O ponto está em que ambos expliquemos
Aquilo que pensamos (…)
                                                 Londres, Abril de 1981»
* Eugénio Lisboa refere-se aqui a autores cujas posições públicas cita uns parágrafos mais atrás, como José Ferreira de Vasconcelos, D. António Pinheiro, bispo de Leiria (séc. XVI); Duarte Nunes de Leão, Rodrigues Lobo (séc. XVII); Correia Garção (séc. XVIII); Francisco Manuel do Nascimento (Filinto Elísio), José Agostinho de Macedo, Frei Francisco de São Luís (sécs. XVIII-XIX); mas também António Feliciano de Castilho, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental (séc. XIX); Ramalho Ortigão, Cândido de Figueiredo (sécs. XIX-XX); e Afonso Lopes Vieira (séc. XX).
 
Eugénio Lisboa, «Mudam-se os Tempos, Mudam-se os Costumes», in Estão a Assassinar o Português! 17 Depoimentos.
Colecção «Temas Portugueses», Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983

  

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Há 96 anos 5ª feira Negra – Grande Depressão – EUA

Há 96 anos registou-se a trágica 5ª feira Negra , ( 24 de Outubro de 1919),  que marcou o início da  maior crise económica dos EUA, conhecida como a Grande Depressão.
"Após a primeira guerra mundial (1918), os EUA eram o país mais rico do planeta. Além das fábricas de automóveis, os EUA também eram os maiores produtores de aço, comida enlatada, máquinas, petróleo, carvão,etc..
Nos 10 anos seguintes, a economia norte-americana continuava a crescer causando euforia entre os empresários. Foi nessa época que surgiu a famosa expressão “American Way of Life” (Modo de Vida Americano). O mundo invejava o estilo de vida dos americanos.
A década de 20 ficou conhecida como os “Loucos Anos 20”. O consumo aumentou, a indústria criava, a todo instante, bens de consumo, clubes e boîtes viviam cheios e o cinema tornou-se uma grande diversão.
Os anos 20 foram realmente uma grande festa! Nessa época, as acções estavam valorizadas por causa da euforia económica. Esse crescimento económico (também conhecido como o “Grande Boom”) era artificial e aparente, portanto depressa se desfez.
De 1920 até 1929, os americanos iludidos com essa prosperidade aparente, compraram várias acções em diversas empresas, até que no dia 24 de Outubro de 1929, começou a pior crise económica da história do capitalismo.
Vários factores causaram essa crise:
– Superprodução agrícola: formou-se um excedente de produção agrícola nos EUA, principalmente de trigo, que não encontrava comprador, interna ou externamente.
– Diminuição do consumo: a indústria americana cresceu muito; porém, o poder aquisitivo da população não acompanhava esse crescimento. Aumentava o número de indústrias e diminuía o de compradores. Em pouco tempo, várias delas faliram.
– Livre Mercado: cada empresário fazia o que queria e ninguém regulava.
– Quebra da Bolsa de Nova York: de 1920 a 1929, os americanos compraram acções de diversas empresas. De repente o valor das acções começou a cair. Os investidores quiseram vender as acções, mas ninguém queria comprar. Esse quadro desastroso culminou na famosa “Quinta-Feira Negra” (24/10/1929 – dia em que a Bolsa sofreu a maior baixa da história).
Se o valor das acções de uma empresa está a cair a pique, o empresário tem medo de investir capital nessa empresa. Se ele investe menos, produzirá menos; se produz menos, então, não há motivo para tantos empregados, o que levará o empresário a despedir pessoal.
Muitos empresários não sobreviveram à crise e foram à falência, assim como vários bancos que emprestaram dinheiro ,não receberam de volta o empréstimo e faliram também.
A quebra da bolsa trouxe medo, desemprego e falência. Milionários descobriram, de uma hora para outra, que não tinham mais nada e muitos suicidaram se. O número de mendigos aumentou.
A quebra da bolsa afectou o mundo inteiro, pois a economia norte-americana era a alavanca do capitalismo mundial. Para termos uma ideia, logo após a quebra da bolsa de Nova York, as bolsas de Londres, Berlim e Tóquio também perderam imenso.
Em 1930, a crise agravou se. Em 1933, Roosevelt foi eleito presidente dos EUA e elaborou um plano chamado New Deal. O Estado passou a vigiar o mercado, disciplinando os empresários, corrigindo os investimentos arriscados e fiscalizando as especulações nas bolsas de valores.
O New Deal alcançou bons resultados para a economia norte-americana.
Essa terrível crise que atravessou a década ficou conhecida como a Grande Depressão." 
Artigo publicado no site " Cais da Memória".

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

A Música que lava a alma.



Corre-se o risco de chorar um pouco quando se deixa cativar.
Antoine de Saint Exupery, Le petit Prince

Cativemo-nos, pois, com esta belíssima selecção de Adagios. Chorar lava a alma e fortalece o corpo. E quanto precisamos.
Adagios – Best Adagio Top 10 | Classical Music

Violinos com bárbaros à porta


Violinos com bárbaros à porta
 
Quando uma orquestra toca Mozart,
enquanto o Titanic se afunda,
dá um grande exemplo da bela arte,
que dentro de nós se tornou fecunda.
 
Mas quando, distraídos, percutimos,
com os bárbaros mesmo já à porta,
os sons de um violino que fruímos,
somos o que o bom senso não suporta.
 
Ignorar fogo ou vento que nos mata,
brincando com soldadinhos de chumbo
ou comendo pastelinhos de nata,
 
é como enfrentarmos enorme Jumbo,
tentando matá-lo com alfinete,
enquanto fruímos um bom banquete!
                            10.09.2023
Eugénio Lisboa , em soneto inédito

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Morreu Francisco Pinto Balsemão

Morreu Francisco Pinto Balsemão
"O fundador do Expresso e da SIC e um dos fundadores, com Francisco Sá Carneiro, do Partido Popular Democrático (PPD), mais tarde Partido Social Democrata PSD), morreu esta terça-feira, aos 88 anos
Francisco Pinto Balsemão morreu esta terça-feira, aos 88 anos, de causas naturais.
A notícia da morte do antigo primeiro-ministro foi transmitida pelo presidente do PSD, Luís Montenegro, durante o Conselho Nacional do partido. Quase à mesma hora, em comunicado, a Impresa, grupo de comunicação social que fundou, informou que Francisco Pinto Balsemão morreu “de causas naturais” e que “os seus últimos momentos foram acompanhados pela família”.
Balsemão foi fundador, em 1973, do semanário o Expresso, ainda durante a ditadura, e da SIC, primeira televisão privada em Portugal, em 1992.
Em simultâneo com a sua atividade de advogado, iniciou a sua carreira como jornalista no “Diário Popular”, detido maioritariamente pelo seu tio, Francisco Balsemão, tendo ocupado os cargos de secretário da direção, de 1963 a 1965, e administrador da empresa do jornal, de 1965 a 1971.
Em 1969, integrou a chamada “Ala Liberal”, como deputado independente na Assembleia da República, funções que ocupa até 1973. Nesse ano, lança o seu primeiro livro – “Mentalização para a Eficiência”, a que se segue “Informar ou Depender?”, em 1971.
Com 36 anos, fundou, com Francisco Sá Carneiro e Joaquim Magalhães Mota, a 6 de Maio de 1974, o Partido Popular Democrático (PPD), agora Partido Social Democrata, sendo o seu militante n.º 1. Foi deputado à Assembleia Constituinte em 1975 e seu Vice-Presidente, tendo sido membro da comissão que elaborou a Lei de Imprensa de 1975, a primeira após o 25 de abril de 1974. Em 1979 e em 1980, foi eleito Deputado à Assembleia da República, pelo círculo do Porto. Em 1980, foi nomeado Ministro de Estado Adjunto do primeiro-ministro no VI Governo Constitucional, de 1980.
Nesta altura, entrega a sua Carteira Profissional de Jornalista, que possuía desde 1963, com o n.º 18.
Na sequência da morte de Francisco Sá Carneiro, assume o cargo de Primeiro-Ministro de Portugal, nos VII e VIII Governos Constitucionais, de 9 de janeiro de 1981 a 9 de junho de 1983. Também em 1981, assume a presidência do Partido Social Democrata e as funções de Presidente da Comissão Política Nacional do PSD entre 1981 e 1983. Foi o fundador e presidente do Conselho de Administração do Instituto para o Progresso Social e Democracia, de 1983 e 1986, Presidente do seu Conselho Geral (1987 a 1989), sendo, desde 1998, Presidente do Conselho Geral do Instituto Sá Carneiro. Ocupou outros cargos no PSD, como Presidente do Congresso, em 1985 e 1986. Em 1985, lança o livro “Estabilizar a Política para Criar a Confiança”.
Em 1987, tornou-se professor associado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, cargo que ocupa até 2002. Durante 15 anos, ajudou a formar centenas de jornalistas com a sua cadeira de “A Mutação dos Media nos países desenvolvidos e as suas consequências para Portugal”.
Em 1990, foi eleito Presidente do Institute for Media com sede em Dusseldorf, Alemanha, funções que desempenhou até 1999.
A 6 de outubro de 1992, com 55 anos, lançou a SIC, o primeiro canal de televisão privado em Portugal. Nos anos seguintes, a SIC cria vários canais temáticos: SIC Notícias, SIC Radical, SIC Mulher, SIC Caras, SIC K e SIC Novelas, além da sua plataforma de streaming Opto.
Em 2008, nas comemorações dos 35 anos do Expresso, é convidado para voltar a dirigir o jornal por uma semana no número de aniversário. Também nesse ano, por unanimidade, o Secretariado da Comissão da Carteira Profissional do Jornalista.
Em 2010, recebe dois Doutoramentos Honoris Causa, pela Universidade Nova de Lisboa e pela Universidade da Beira Interior, tendo recebido anos mais tarde também o Doutoramento Honoris Causa da Universidade Lusófona
A sua última intervenção política, já doente, aconteceu há exatamente 35 dias, em 16 de setembro, através de uma mensagem escrita de apoio ao candidato presidencial Luís Marques Mendes, ex-presidente do PSD.
Luís Montenegro anunciou que o Governo pretende decretar um dia de luto nacional para a data do funeral de Francisco Pinto Balsemão." Artigo publicado pela revista Visão

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Contrariedades


 CONTRARIEDADES

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.


Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, toma-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redacção, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A critica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras excepções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exactos
Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!

Cesário Verde, in O livro de Cesário Verde,  Assírio & Alvim, 2009

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

VIAGENS NA MINHA TERRA

 

VIAGENS NA MINHA TERRA
por Eugénio Lisboa
“Quando eu era novo, mesmo muito novo, e vivia na periferia da cidade de Lourenço Marques, bem encostado à fronteira com a cidade do caniço (aquilo era África pobre por todos os lados), pus-me a ler o Herculano todo, muito solene e, como diria o Sena, todo fardado de bronze e de seriedade. Não havia, ali, lugar para gracinhas. Palavra que gostei, sobretudo, dos amores proibidos do Eurico com a Hermengarda. Mas o Bobo também mexeu muito comigo. E, depois, aquilo punha-me a milhas da Estrada do Zixaxa, rua pobretana, onde eu sonhava com outros mundos. Aquela África era descomunal e tinha ali, à mão de semear, o Índico, que eu não trocava por nenhum outro. Mas o Herculano mudava-me de lugar e de época, de uma maneira quase truculenta e eu ficava para ali a sonhar com idades médias e vestimentas sumptuárias. E o estrugir de ferros em batalhas bem mais catitas do que as actuais. Em suma, o Herculano encheu-me o saco e deixou-me a pensar: “O que poderá haver depois disto?” Eu, deprimido, achava que não ia haver mais nada. Mas havia: o Garrett. Comecei logo pelo melhor dele, as VIAGENS NA MINHA TERRA, numa edição pior que pífia, que andava por ali, esquecida e enxovalhada, numa estante do meu pai. Pus-me a ler aquilo, um pouco aparvalhado, porque além de o livro não ter nada que ver com o Herculano, também não era carne nem peixe. Era uma mistura de viagens com uma história de amor, numa coisa que não era escrever: aquilo era uma conversa pegada e desataviada com o leitor, que, de quando em quando, se interrompia, para nos dar notícias dos amores da Joaninha dos Olhos Verdes. Mesmo estas notícias eram dadas em tom de tu cá, tu lá com o leitor, de forma muito diferente do que acontecia nos severos romances do Herculano. Amor, sim, mas sem estardalhaço. Mais ao nosso nível, cheio de ternurinha trágica, inquietante que baste, mas sem gótico pelo meio. Acabávamos por nos ajeitar àquilo e a considerar o Garrett um cicerone viável e mesmo amigo. Um compincha, embora cheio de talento. Saía-se daquela leitura convencido de que a literatura também podia ser uma conversa desenfastiada, que se saboreia como um copo de água fresca, num dia quente de verão. As VIAGENS, em suma, desarrumaram-me no melhor sentido dessa palavra. E comecei, desde então, a perceber que, na literatura, era como dizem que é no céu: havia lá muitas moradas, todas diferentes umas das outras. Fiquei, para sempre, vacinado contra dogmas e normas! A literatura não é apenas isto ou apenas aquilo. Tem muitos rostos diferentes, procura sempre caminhos novos, sem precisar de deitar fora os antigos. Aqueles que acham que ser moderno é isto e não aquilo e estão dispostos a ser modernos fazendo isto e não aquilo, estarão preocupados com muita coisa, mas não com poesia, porque nem poetas são. Falta-lhes mundo, abertura, grandeza de alma e falta-lhes saber que a poesia gosta de explorar territórios diferentes, com utensílios diferentes e constrições de natureza vária. Os que estão muito preocupados com serem muito modernos, não são, afinal, nem modernos nem antigos, porque não são poetas. Camões é hoje um grande poeta moderno, porque é poeta. Castilho nem antigo é, por não ser poeta, mas apenas um árido e astuto versejador. A modernidade não se consegue com protocolos fabricados em tertúlias. A modernidade é uma espantosa energia interior que torna o escritor actual, em seja que época for. Garrett é muito mais moderno do que a grande maioria dos escritores que andam por aí à procura da modernidade onde ela não habita. Parafraseando Wilde, eu concluiria, dizendo que há duas maneiras de se não ser poeta moderno: uma é não ser mesmo, a outra é ser Ernesto de Mello e Castro.”
Eugénio Lisboa, 06.10.2023