terça-feira, 11 de outubro de 2022

No passado, o futuro era melhor ?

Maputo, capital de Moçambique

Moçambique – 30 anos de Independência
No passado, o futuro era melhor ?
por Mia Couto
"Nasci e cresci numa pequena cidade colonial, num mundo que já morreu. Desde cedo, aprendi que devia viver contra o meu próprio tempo. A realidade colonial estava ali, no quotidiano, arrumando os homens pela raça, empurrando os africanos para além dos subúrbios. Eu mesmo, privilegiado pela minha cor da pele, era tido como um “branco de segunda categoria”. Todos os dias me confrontava com a humilhação dos negros descalços e obrigados a sentarem-se no banco de trás dos autocarros, no banco de trás da Vida. Na minha casa vivíamos paredes-meias com o medo, perante a ameaça de prisão que pesava sobre o meu pai que era jornalista e nos ensinava a não baixar os olhos perante a injustiça. A independência nacional era para mim o final desse universo de injustiças. Foi por isso que abracei a causa revolucionária como se fosse uma predestinação. Cedo me tornei um membro da Frente de Libertação de Moçambique e a minha vida foi, durante um tempo, guiada por um sentimento épico de estarmos criando uma sociedade nova.
No dia da Independência de Moçambique, eu tinha 19 anos. Alimentava, então, a expectativa de ver subir num mastro uma bandeira para o meu país. Eu acreditava, assim, que o sonho de um povo se poderia traduzir numa simples bandeira. Em 1975, eu era jornalista, o mundo era a minha igreja, os homens a minha religião. E tudo era ainda possível.
Na noite de 24 de Junho, juntei-me a milhares de outros moçambicanos no Estádio da Machava para assistir à proclamação da Independência Nacional, que seria anunciada na voz rouca de Samora Moisés Machel. O anúncio estava previsto para a meia-noite em ponto. Nascia o dia, alvorecia um país. Passavam 20 minutos da meia-noite e ainda Samora não emergira no pódio. De repente, a farda guerrilheira de Samora emergiu entre os convidados. Sem dar confiança ao rigor do horário, o Presidente proclamou: “às zero horas de hoje, 25 de Junho...“. Um golpe de magia fez os ponteiros recuarem. A hora ficou certa, o tempo ficou nosso.
Não esqueço nunca os rostos iluminados por um irrepetível encantamento, não esqueço os gritos de euforia, os tiros dos guerrilheiros anunciando o fim de todas as guerras. Havia festa, a celebração de sermos gente, termos chão e merecermos céu. Mais que um país celebrávamos um outro destino para nossas vidas. Quem tinha esperado séculos não dava conta de vinte minutos a mais.
Trinta anos depois poderíamos ainda fazer recuar os ponteiros do tempo? A mesma crença mora ainda no cidadão moçambicano? Não, não mora. Nem podia morar. Em 1975, nós mantínhamos a convicção legítima mas ingénua de que era possível, no tempo de uma geração, mudarmos o mundo e redistribuirmos felicidade. Não sabíamos quanto o mundo é uma pegajosa teia onde uns são presas e outros predadores. 
Trinta anos é quase nada na história de um país. Estamos já distantes da injustiça colonial. Mas estamos ainda longe de cumprir o sonho que nos fez cantar e dançar na noite de 25 de Junho. Uma parte dessa expectativa ficou por realizar. Hoje já não acorreríamos com a mesma fé para celebrar uma nova anunciação. Mas isso não quer dizer que estamos menos disponíveis para a crença. Estaremos, sim, mais conscientes que tudo pede um caminho e um tempo.
Poderemos recorrer a explicações, apontar dedos acusadores. Tudo isso será pouco produtivo. Não se pode esperar que um país saído do atraso da dominação colonial possa realizar aquilo que velhas nações independentes estão ainda construindo. Moçambique está aprendendo a ser soberano num mundo que aceita muito pouco a soberania dos outros. O céu que parecia infinito foi ficando estreito para as chamadas pequenas bandeiras.
No mesmo ano em que se desintegrava o império colonial português, em 1975, os Estados Unidos da América eram derrotados no Vietname. O tempo parecia correr a favor dos povos “pequenos”, capazes de enfrentar a arrogância dos poderosos. Essas vitórias criaram a ilusão de que um mundo mais justo estava despontando. Mas o sistema mundial cedo se reajustou desses revezes. A Independência de Moçambique teve que enfrentar uma dualidade: representou uma ruptura com o colonialismo mas, ao mesmo tempo, funcionou como um passo para uma maior integração num sistema capitalista que se globalizava. A essa condição ambivalente não poderíamos escapar.
 
Meus senhores e minha senhoras,
Caros amigos
 
No meu romance Terra Sonâmbula criei um personagem que, por nascer no dia da Independência, a vinte e cinco de Junho, foi baptizado de Junhito. A história decorre no decurso da nossa guerra civil que se prolongou durante 16 anos.
Certa noite, o pai de Junhito é assaltado por um pressentimento: o seu filho iria morrer em breve. Era isso o que a guerra reclamava: a morte desse que nascera em Junho. Para salvar o filho, a família resolveu transferi-lo para a capoeira que ficava no quintal. Ali Junhito aprenderia a comportar-se como as galinhas, comendo as sobras e dormindo ao relento. Resignado a sobreviver sem glória, sem brilho, sem substância.
Junhito foi-se tornando numa sombra e, em casa, os familiares estavam proibidos até de mencionar o seu nome. A mãe, mesmo ela, parecia conformada. Contudo, às escondidas da noite, ela visitava a capoeira. Sentava-se no escuro e cantava uma canção de embalar, a mesma que servira para adormecer os outros irmãos. Junhito, de início, acompanhava a mãe no canto. Mas depois, o menino já nem sabia soletrar as humanas palavras. Esganiçava uns cóós e ajeitava a cabeça por baixo do braço. E assim adormecia, sonhando que, certa vez, teria sido um homem. 
A metáfora no romance é simples, quase linear. Na altura, eu  denunciava a nossa progressiva perda de soberania, e uma crescente domesticação do nosso espirito de ousadia. Poderíamos ser nação mas não demasiado, poderíamos ser povo mas apenas se bem comportado.
Num processo difícil e conflituoso, Moçambique criou a reputação de ser um caso de excepção em África. Esse bom-nome, devo dizer, é merecido. Esse prestígio foi conquistado, não é uma prenda de nenhum paternalismo. Fomos capazes de produzir a Paz. Fomos capazes de criar democracia formal, de construir estabilidade e de garantir liberdades de expressão e de pensamento. Tenho orgulho nesse processo. Mas tenho também receio. Porque o caminho que percorremos não foi exactamente escolhido por nós, nem está sendo testado à medida da nossa vontade. O nosso êxito não pode continuar a ser medido apenas pelo sucesso da aplicação de um directório de receitas políticas e financeiras. Ao contrário, deveríamos ser valorizados pelo modo como repensamos criativamente o nosso lugar no mundo. 
Nos gloriosos anos da luta de libertação nós gritávamos “Independência ou Morte, Venceremos”. Hoje sabemos: a independência não é mais do que a possibilidade de escolhermos as nossas dependências. Na década de 70, o mundo oferecia a possibilidade de diferentes opções e alianças estratégicas. Hoje as economias nacionais perfilam-se perante um modelo sem alternativa. Escolhemos o que outros escolheram por nós. Uma parte da nossa alma foi já, mesmo sem o sabermos, conduzida para a capoeira e ali esquece a irreverência, a originalidade e o desejo de ser único.
A redução da soberania não é um processo que esteja atingindo especificamente Moçambique. É um processo generalizado. Todas nações são hoje menos nacionais, todo o cidadão é menos dono do se mesmo. Uns dizem que, agora, somos todos mundo. Mas ninguém pode ser do mundo se não tiver a sua pequena aldeia. "
Excerto do Discurso pronunciado por Mia Couto, em Deza Traverse, Suíça, nos 30 anos de independência de Moçambique, em 16 de Junho de 2005.

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