domingo, 2 de outubro de 2022

Ao Domingo Há Música


Canção de amor à América

Ai, América,
que longo caminhar!

Eu venho com o trigo do meu canto
minha ternura aberta 
e o meu espanto;
e do fundo de mim e do meu assombro
e pelos meus lábios de vinho e gaivotas,
te trago o meu cantar de caminhante.

Para ti, amada minha,
para teu corpo de cansaço
e por tua fome
eu trago esse meu verso frutecido.

Eu venho com o rocio do amanhecer
sou o cantor da aurora
o que desperta
o que anuncia a vida e a esperança.
Eu sou o mensageiro destes anos
o cantor deste tempo e destas terras
eu sou daqui,
desde a Patagônia até o Rio Bravo
e daqui alço meu canto para o mundo.

Ai América,
que longo caminhar!

Eu sou como uma ave que passa
apenas um cantor errante,
mas se na minha voz há uma sinfonia delirante,
é para golpear-te, América,
para  entoar teu grito emudecido.

Agora venho cantar-te
e meu canto é como o dia e como a água
para que me entenda sobretudo o homem humilde.
Agora venho cantar-te 
mas em teu nome, América,
eu só posso cantar com a voz que denuncia.
Eu não venho cantar o esplendor de Machu  Picchu,
a Grande Cordilheira e a neve eterna;
não venho cantar esta América de vulcões e arquipélagos
esta América altiplânica da lhama esbelta e da vicunha;
venho em nome de uma América parda, branca e negra,
e desde Arauco a Yucatán,
venho em nome desta América indígena agonizante.
Eu venho sobretudo em nome de uma América proletária,
em nome do cobre e do estanho ensanguentado.

Eu hoje não venho cantar um continente de paisagens,
não venho cantar o mar que amo,
os lagos escondidos na montanha,
nem os rios que correm ao fundo dos vales florescidos.
Não, eu não venho cantar este trigo que se nega a quem semeia;
eu venho por uma história mais sincera,
venho falar do homem que vi e ouvi pelos caminhos.

Ai América, 
que longo caminhar!

Eu venho falar do camponês
de seu poncho roto e o seu colchão de  terra,
de sua resignação e o seu misterioso silêncio,
de seu gesto incontido que em alguma parte se levanta,
de sua fome saciada com o sangue dos massacres.

Eu venho falar do mineiro e sua morte prematura,
de uma vida vivida na penumbra tumular dos socavões,
da silicose escavando dia a dia os pulmões dos operários jovens.
Venho contar das mulheres de Yanuni, Catavi e Siglo Veinte
das palhiris bolivianas com quem falei um dia,
dessas desamparadas viúvas do mineiro massacrado ou soterrado,
que buscam no lixo do estanho
o pão diário dos seus filhos.
                                                             
Eu não venho cantar o encanto colonial destas cidades,
os altares espanhóis recobertos com o ouro dos Incas,
as grandes praças onde se erguem as estátuas dos libertadores.
Venho cantar as favelas, barriadas e tugúrios,
as povoações calhampas e as vilas-misérias,
Venho denunciar a tuberculose e o frio,
venho em nome dos meninos sem pão e chocolates,
em nome das mães e de suas lágrimas.
Eu venho falar por toda voz que se levanta,
por uma geração reprimida com fuzis,
venho falar das universidades fechadas
e com a marca das tiranias encravada nas paredes.

Eu venho denunciar falsas revoluções
e o oportuno pacifismo,
venho denunciar um tempo de desterros e de torturas,
eu venho alertar sobre um terror que cresce uniformizado
e sobre estes anos em que cada promessa de paz é uma mentira.

Ai América,
eu venho em nome do homem e sua agonia,
em nome de uma infância sem doçura.
E por isso eu venho falar de outra colheita
e de um vale semeado na montanha.
Eu venho anunciar o mel e a espiga
e a terra fértil e doce e repartida.

Ai América,
em nome de uma América americana,
eu venho convocar-te para a luta.
Eu canto para isso, amada minha,
para pronunciar um tempo já chegado entre nós todos,
para dizer-te destes punhos que amadurecem em cada gesto,
e destes rifles que disparam em cada peito.

Ai América,
que longo caminhar!

Rumo ao norte 
ao sul
a leste ou a oeste,
eu avanço atravessando essas nações.

Oh caminhar, caminhar...
e saber sentir-se um caminhante!
Pois é tão triste morrer a cada dia,
morrer com os punhos abertos e o coração vazio.
Morrer distante do homem e sua esperança
morrer indiferente ao mundo que morre
morrer sempre,
morrer pequenamente
quando a vida é um gesto de amor desesperado.

Oh caminhar, caminhar...
mas caminhar como caminha o rio e a semente,
conhecendo a completa plenitude em seu destino.
Oh caminhar!
Caminhar
e saber-se um dia fruto.
Caminhar 
e sentir-se um dia mar.

Ai América,
que não exista a dúvida em meu caminho,
que somente esta paixão de justo me enamore.
Fui prisioneiro,
mas outra vez sou pássaro,
outra vez um caminhante,
e volto a abrir a alma com meu canto.

Hoje me detenho aqui...
levanto minha voz, minha acusação, meu juízo.
Declamo minha bandeira de sonhos,
proclamo minha fé,
recolho meu testemunho e me vou.

Eu sou o jogral maldito
e bem amado.
Meu canto é um grito de combate
e eu não canto por cantar.
Eu parto deixando sempre uma inquietude,
deixando numa senha a certeza de uma aurora.

Eu sou o cantor clandestino e fugitivo,
aquele que ama a solidão imensa dos caminhos.
Passo despercebido de cidade em cidade,
em algum lugar público eu vou dizer meus versos
e ali conheço amigos e inimigos.
Mas sempre pude encontrar o grande companheiro,
o homem novo,
aquele que traz a face da esperança,
aquele que se aproxima em silêncio
e com um gesto inconfundível me saúda.

Ai América, 
que longo caminhar!

Eu venho amada América,
para iluminar com meu canto este caminho.
Trago-te meu sonho imenso, latino e americano
e meu coração descalço e peregrino.
Mas quando sinto meu sangue escorrendo-se nos anos
e a vida se me acabe antes de ver-te amanhecida;
Quando penso que é tão pouco, amada minha,
o que eu posso dar-te em um poema;
Ai, quando penso nessas flores de sangue que murcharam,
nestes iluminados corpos que tombaram,
e que ainda não pude fazer por ti quanto quisera;
Ai, se com o tempo eu descobrir
que este lírico fuzil que empunho não dispara,
ai América...
quem dirá que a intenção que tive foi sincera. 
              Quito, Agosto de 1970
Manoel de Andrade, Poemas para a Liberdade


Sobre este poema ,   o autor registou, no seu livro de memórias,   o seguinte: Em meados de agosto de 1970 escrevi em Quito o mais belo poema da minha fase latino-americana. É uma longa descrição de tudo o que já havia passado pelos caminhos da América. Cito-o também aqui como um lírico e comovente testemunho de uma experiência marcada pelo sentimento de indignação e da amargura em tantas paisagens humanas descoloridas pela miséria e pela injustica, pela verdade histórica que transformei em versos e pela imensa esperança que contagiava a tantos sonhadores como eu que perseveravam em acreditar numa utopia social que trouxesse a redenção dos oprimidos.
Manoel de Andrade , in « NOS RASTROS DA UTOPIA, uma memória crítica da AMÉRICA LATINA, nos anos 70»,Ed. Escrituras, S. Paulo, Brasil, 2014

Tal como nesse tempo , a América Latina de hoje precisa de novas  utopias que  tornem possível recuperar a justiça social e  a  esperança redentora.
Sendo hoje um dia assinalável no Brasil,  trazemos não só a voz poética de Manoel de Andrade, mas dois belos registos com a cooperação de grandes cantores brasileiros e Mercedes Sosa, a extraordinária voz da Argentina.
Programa Chico & Caetano, série especial da Rede Globo, exibido em 14/03/1987, com Mercedes Sosa (1935-2009) cantando "Volver a los 17", ( canção de Violeta Parra), acompanhada por Milton Nascimento, Gal Costa, Caetano Veloso e Chico Buarque de Hollanda.
 
Milton Nascimento e Mercedes Sosa cantando "San Vicente", canção de  Milton Nascimento e Fernando Brant, do Álbum Clube da Esquina (1972).
Programa Chico & Caetano, série especial da Rede Globo, exibido em 14/03/1987 .
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Coração americano

Coração americano
Acordei de um sonho estranho
Um gosto, vidro e corte
Um sabor de chocolate
No corpo e na cidade
Um sabor de vida e morte

Coração americano
Um sabor de vidro e corte

A espera na fila imensa
E o corpo negro se esqueceu
Estava em San Vicente
A cidade e suas luzes
Estava em San Vicente
As mulheres e os homens

Coração americano
Um sabor de vidro e corte

As horas não se contavam
E o que era negro anoiteceu
Enquanto se esperava
Eu estava em San Vicente
Enquanto acontecia
Eu estava em San Vicente

Coração americano
Um sabor de vidro e corte

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