domingo, 30 de outubro de 2022

Ao Domingo Há Música


O post de hoje é dedicado à Ucrânia e ao Brasil.


No dia da cor azul


Ser livre é um imperativo que não passa pela definição de nenhum estatuto.  Não é um dote. É um dom.

                                                                 Miguel Torga

 

A liberdade é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens. Nada a iguala, nem os tesouros que a terra encerra no seu seio, nem os que o mar guarda nos seus abismos. Pela liberdade, tanto quanto pela honra, pode e deve aventurar-se a nossa vida.

             Miguel de Cervantes, (29 de Setembro de 1547-  22 de Abril de 1616), "Dom Quixote".

 

O afinador de palavras apresentou-se ao fim do dia. A luz, obumbrada pelo ocaso, escondia as cores que sempre exibia. Era um aparecimento estudado. Sorria com alguma astuta ingenuidade, não fossem descobrir que tudo fora  planeado.  A quoi bon, o jogo das palavras pertencia-lhe.

Nesse dia, vestira o azul. Fora um labor infindável. Vieram tantas que ficara exausto. Tinha sido uma revelação. Não era que havia um ror de palavras   a acreditar no impossível. 

O azul era a cor da utopia. Todas aquelas palavras que  tinham lançado acordes, que poetavam, que esgrimiam o som libertário para uma nova humanidade, que carregavam o sonho de um mundo justo se enfileiraram para que as afinasse. Outras ainda, mal alinhadas nas letras que as faziam nascer, vinham trôpegas à espera de um elixir  que as fortalecesse. Só ele conhecia os poderes do azul. Só ele sabia quem  o podia vestir. A autenticidade revelava-se a um pequeno lançar de olhos. Ficou atónito com tanta palavra genuína. Que fazer se o dia tinha cronómetro? E ele que se exigia demais. Como dizimar tanta  maleita inesperada?

Frágeis e desamparadas rogavam, com assertiva doçura, uma recuperação. O azul era melodicamente gentil, intrinsecamente harmonioso. Fugia ao aparatoso, ao ruído dissonante da exigência. Elas, as palavras, queriam  não um remendo, não um penso que se acomodasse  às circunstâncias desse tempo crísico, dessa época infame. Não . Ouvira, límpido e nítido, sem  qualquer vacilação, um rotundo e ardente não. Que burilasse. Que se servisse de um cinzel  e as esculpisse sem demora, mas para todo o sempre.

Qual folha caduca? Que pensamento abstruso.  O Outono  acontecia apenas na natureza. Palavras são palavras. Têm vida própria. Forma definida e lugar no  repositório  das nações. E sabia-se. Era um dado categórico. E o azul identificava as palavras que acreditavam no impossível.

Trabalhou. Recuperou.  Cinzelou. Remendou. O dia prolongou-se até que a cor se tornou invisível. Muitas palavras ficaram prostradas no chão, quando se obscureceu. Nada mais podia fazer. Sem os raios do sol, o azul tornava-se volátil. Desaparecera na magia do insondável poder da luz.

Amanhã seria outro dia. Vestiria também uma outra cor. Afinaria outras palavras. O azul teria de esperar pela roda do tempo.

Agora, escurecia. A noite protegia. Guardara uma única palavra. Trazia-a no bolso. Vinha redonda . A sorrir para quem a esperava, a espargir um odor magnificente. Que azul luminoso a vestia. Era única e imperdível. Fora difícil restabelecê-la. Com ela estavam associadas muitas outras palavras . Não eram visíveis. Mas compunham-na .

Uma sinfonia  soltava-se,  audível apenas para ele: a sinfonia da criação. Desconhecida, majestosa e sedutora. Nem ao fluir, a lembrança dos sons do  Oratorio de Haydn  se apunha. Surgiam diferentes, apesar de produzidos pela estética do belo e sustentados por um denominador comum. Separava-os a  sonoridade dos instrumentos. Era uma sinfonia de  acordes únicos, heróicos  e gloriosos.  Uma sinfonia que se erguera do caos, do nada informe que debruava o vazio. Explodia, alargando-se, em eufónicos e imparáveis movimentos, para lhe encher  o corpo e a mente de novas forças, de diferentes vontades que teria de partilhar.

Vinha com uma palavra forte. Sabia-o. Vira-a por dentro. Tinha as letras bem desenhadas. Nove letras em sincronia perfeita. Ficaria para sempre, como a saudade das coisas felizes. Deixaria de lhe pertencer, logo que fosse  apresentada. Seria de todos e para todos.

Com leveza e disciplinada ternura, começou a retirá-la  devagarinho. À medida que saía,  a noite transformava-se. Tomava-a  um  novo e estranho esplendor. E quando a desnudou e a mostrou inteira , o brilho intenso da Liberdade  iluminou os rostos e encheu de promessas o coração  de cada  um. 

Assim se cumpria, naquele dia, o sonho que veste o azul.

Maria José Vieira de Sousa , in "O Afinador de Palavras", pp.11, 12

 
Franz Joseph Haydn  (1732-1809) , em  Overture〈The Creation〉/ Die Schöpfung, Oratorium , Hob. XXI:2 (1798), ( English version, Vienna 1800 - (Part 1 / The First Day) 1. Overture (Introduction) - The Representation of Chaos Emma Kirkby (soprano / Gabriel) Anthony Rolfe Johnson (tenor / Uriel) Michael George (bass / Raphael) Choir of New College, Oxford The Chorus of Academy of Ancient Music The Academy of Ancient Music Christopher Hogwood (conductor.
A Criação (alemão: Die Schöpfung)) é um oratório escrito entre 1796 e 1798 por Joseph Haydn (H. 21/2), e considerado por muitos como a sua obra-prima. O oratório retrata e celebra a criação do mundo como descrito no livro bíblico de Gênesis e no Paraíso Perdido. Haydn foi inspirado a escrever um grande oratório durante as visitas à Inglaterra em 1791-1792 e 1794-1795, quando ouviu oratórios de Handel, interpretados com grande esplendor. Acredita-se que Israel no Egipto tenha sido um deles. É provável que Haydn quisesse tentar alcançar resultados de peso comparável, usando a linguagem musical do estilo clássico.

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