quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Alguns poemas de Reinaldo Ferreira



Alguns poemas
de Reinaldo Ferreira
 
I
Volver às rimas suaves,
Aos metros embaladores,
Cantar o canto das aves,
A aurora, a brisa e as flores…
 
Vibrar na deposta lira
Dos trovadores sepulcrais
Delidas queixas d’Elvira
Zelos de bardo, fatais
 
Para que nessa ficção,
De outras apenas diferente,
Ao fogo do coração
Arda a razão descontente.
 
II
 
Regresso de parte alguma
Rico mais do que partira,
Pois trago coisa nenhuma
Sem desespero e sem ira.
 
Agora vivo contente
No meu exílio sereno;
Tomei tamanho de gente
E não me dói ser pequeno.
 
Pedra parada na calma
Tranquilidade dos charcos,
Deixem dormir minha alma,
Como apodrecem os barcos…
 

III
 
Eu, Rosie, eu se falasse, eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos, dancemos
Já que temos
A dança começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
Dum par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh…
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une – é estar ausentes.
 

IV
RECEITA PARA FAZER UM HERÓI
 
Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
 
Serve-se morto.
 

Noutro dia, acrescentaremos alguns poemas de Reinaldo Ferreira, a assinalar o centenário do seu nascimento.
Eugénio Lisboa, 26.10.2022

Nota de LP Eugénio Lisboa, além de ter sido amigo deste poeta,  foi um dos organizadores do livro de Poemas  que teve  publicação  póstuma.  É um profundo e qualificado estudioso da  obra de Reinaldo Ferreira.

Sem comentários:

Enviar um comentário