segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Nunca me lembrei senão de mim

"Aquilo de que mais gosto no mundo é a Sicília, já pode ver, e ainda do cimo do Etna, em plena luz do dia, sob condição de dominar a ilha e o mar. Java também, mas na época dos alíseos. Sim, estive lá, em novo. De uma maneira geral gosto das ilhas. É mais fácil imperar aí.
Mandar é respirar, não é desta opinião? E até os mais deserdados chegam a respirar. O último na escala social tem ainda o cônjuge ou o filho. Se é celibatário, um cão. O essencial, em resumo, é uma pessoa poder zangar-se sem que outrem tenha o direito de responder. «Ao pai não se responde», conhece a fórmula? Em certo sentido, ela é singular. A quem se responderia neste mundo senão a quem se ama? Por outro lado, ela é convincente. É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda a razão pode opor-se outra: nunca mais se acabava. A força, pelo contrário, resolve tudo. Levou tempo, mas conseguimos compreendê-lo. Por exemplo, deve tê-lo notado, a nossa velha Europa filosofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos tempos ingénuos: «Eu penso assim. Quais são as suas objecções?» Tornámo-nos lúcidos. Substituímos o diálogo pelo comunicado.
Cá entre nós, a servidão, de preferência sorridente, é pois inevitável. Mas não o devemos reconhecer. Quem não pode fugir a ter escravos, não valerá mais que os chame homens livres? Por princípio, em primeiro lugar, e depois para os não desesperar. É-lhes bem devida esta compensação, não acha? Deste modo eles continuarão a sorrir e nós manter-nos-emos de consciência tranquila. Sem o que, seríamos forçados a voltar-nos para nós mesmos, ficaríamos loucos de dor, ou até modestos, tudo é de temer.
Sempre vivi livre e poderoso. Simplesmente, sentia-me liberto em relação a todos pela excelente razão que me considerava sem igual. Julguei-me sempre mais inteligente do que ninguém, disse-lhe eu, mas também mais sensível e mais destro, atirador de escol, volante inigualável, e melhor amante. (…) Não me reconhecia senão superioridades, o que explicava a minha benevolência e a minha serenidade. Quando me ocupava de outrem, era pura condescendência, em plena liberdade, e todo o mérito revertia a meu favor: eu subia um degrau no amor a mim mesmo.
Com algumas outras verdades, descobri a pouco e pouco estas evidências, durante o período que se seguiu à noite de que lhe falei. Não imediatamente, não, nem com grande nitidez. Tive, antes de mais, de recuperar a memória. (…) Até ali, tinha sido sempre ajudado por uma espantosa faculdade de esquecimento. Esquecia tudo e em primeiro lugar as minhas resoluções. No fundo, nada contava. Guerra, suicídio, amor, miséria, prestava-lhes atenção, é certo, quando as circunstâncias a isso me obrigavam, mas de uma maneira cortês e superficial.
(…) Eu não era lá de muito bom estofo para perdoar as ofensas, mas acabava sempre por esquecê-las. E, se alguém se julgasse detestado por mim, não se livrava de se ver saudado com um largo sorriso. Consoante a sua natureza, admirava então a minha grandeza de alma ou desdenhava a minha baixeza, sem pensar que a minha razão era mais simples: eu tinha esquecido até o seu nome.
Avançava assim à superfície da vida, por palavras, de certo modo, nunca na realidade. Todos esses livros mal lidos, esses amigos mal amados, essas cidades mal visitadas, essas mulheres mal possuídas! Eu fazia gestos por enfado ou por distracção. Os seres vinham logo atrás, queriam agarrar-se, mas não havia nada, e era a infelicidade. Para eles. Porque, quanto a mim, eu esquecia. Nunca me lembrei senão de mim mesmo.
A verdade é que todo o homem inteligente, como o senhor bem sabe, sonha em ser um gangster e em imperar sobre a sociedade unicamente pela violência. Como isso não é tão fácil como a leitura de romances da especialidade o pode fazer crer, envereda-se geralmente pela política e corre-se para o partido mais cruel. Que importa, não é assim, humilhar o próprio espírito, se desse modo se consegue dominar o mundo inteiro? Eu descobria dentro de mim gratos sonhos de opressão.
Daria dez entrevistas com Einstein por um primeiro encontro com uma bonita figurante. É verdade que, ao décimo encontro, eu suspiraria por Einstein ou por umas fortes leituras. Em suma, nunca me incomodei com os grandes problemas senão nos intervalos dos meus pequenos desregramentos.
O acto de amor, por exemplo, é uma confissão. Aí o egoísmo grita, ostensivamente, a vaidade aí pavoneia, ou então aí se revela a verdadeira generosidade." 
Albert Camus, in " A Queda", Edições Livros do Brasil, Lisboa

Sem comentários:

Enviar um comentário