quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Viajar, a saudade de estar fora



Viajar um paraíso de loucos
por Diogo Vaz Pinto
"A viagem é uma escola terrível, talvez a mais antiga e, certamente, a mais dura. E os grandes viajantes são como os membros solitários de uma religião sem preceitos fixos e que se dedica à arte do fracasso.
Por mais impulsos de que se faça valer, com todas as síndromes que possa desencadear, nunca houve termos clínicos que pudessem aplacar essa inquietação que toma conta de alguns e os convence a largar tudo e ir à boleia de todas as estranhezas. Hans Christian Andersen falou na “dolorosa agitação de viajar” como uma espécie de achaque incitante que tomava conta dele depois de uns tempos no conforto da sua casa. Identificou-a como uma patologia: a “saudade de estar fora”. E se a narrativa de viagem é a mais antiga do mundo, como nos diz Paul Theroux, e se é provável que o engenho literário descenda dessas histórias que o errante contava ao povo reunido à volta da fogueira depois do seu regresso de uma jornada, o mais provável é que na própria engenharia do género humano deva estar inscrita a tentação do desconhecido, esse desejo que faz do além, do que está alhures, uma espécie de pulsante emboscada que se mostra irrecusável para muitos homens. E com tantos viajantes célebres, tantos e tão cativantes relatos, e mesmo com os fluxos imparáveis e atordoantes do turismo de massas, esse ânimo ainda não foi estragado. A viagem permanece como uma demanda desse sentido para a vida de que apenas a própria sensação de estranheza pode aproximar-se. Assim, como Theroux nos elucida no seu A Arte da Viagem, “a viagem é fuga e perseguição em partes iguais”.
Para tornar o mais acidentada e fabulosa possível a distância que vai da vida à morte, o tempo não pode fazer muito se a imaginação não se animar a pintar fora dos seus contornos. E no arranque da sua obra-prima, Céline lembrava que viajar é muito útil por fazer a imaginação trabalhar. Mas há que ter em conta ainda a prenhez das distâncias, isso que justifica essa jazida de impressões e sensações que nos saem ao caminho e dominam o viajante, muitas vezes de forma brusca, violenta, e que deixam nele a indelével noção de que ele próprio se perde e apaga se não estiver disposto a confrontar-se com essa forma de desamparo e até de derrota. Afinal, a viagem tira um lucro espantoso do inesperado, do que corre mal, das frustrações e do martírio, ao ponto de Theroux ter notado que “é muitas vezes um prazer triste e em parte masoquista - a chegada a lugares obscuros e pitorescamente horríveis é um dos deleites do viajante”. No fundo, o que se busca é tudo isso que fica “do outro lado da vida” (Céline). E é por isso que a verdadeira viagem se faz a favor do mundo e contra si mesmo. Só um viajante experiente poderá não estranhar quando Kafka defendeu: “Na luta entre ti e o mundo, torce a favor do mundo”. De resto, como notou Paul Bowles, “o tema dos melhores livros de viagens é o conflito entre o escritor e o local”. E adianta que “não é importante qual deles ganha, desde que a luta seja fielmente registada”.
Num texto do terceiro número da revista Electra, cujo dossier é dedicado ao fenómeno do turismo, o sociólogo e etnólogo Jean-Didier Urbain constrói uma defesa desse “viajante maltratado” que é o turista, e se não oferece uma defesa muito convincente e pouco faz para redimir este “homem que viaja não por urgência ou necessidade, mas segundo os seus desejos, em busca de prazeres todos eles associados a uma erotização do mundo”, consegue justificar e encará-lo como uma figura central, indo ao ponto de afirmar que “o turista é a (má) consciência da nossa sociedade”. Mas o mais importante na intervenção de Urbain não está tanto no esforço para resgatar o turista da posição de réu enquanto “descendente desocupado da viagem, herdeiro ocioso e supranumerário”. Se mais temível do que a sentença parece ser o tom desdenhoso com que mesmo os funcionários mais insignificantes do tribunal se lhe dirigem, o que se mostra mais persuasivo nem é o álibi de que se serve para recuperar-lhe a honra e reintegrar o turista na família dos viajantes, mas a forma como, com esse fim em vista, acaba por formular uma admirável explicação sobre este impulso do homem de ser arrancado às circunstâncias que tanto o enraízam como imobilizam. “Na verdade”, diz-nos Urbain, “na origem de qualquer viagem existe uma experiência comum, no âmbito da qual, estúpidos, medrosos ou inaptos, nos tornamos maus viajantes”. E prossegue: “Grande repórter, ervanário, humanitário, caçador de borboletas, homem de ciência, comerciante, médico, turista, agente secreto ou de viagens, essa experiência vivida por cada um é aquela na qual, mais cedo ou mais tarde, experimentamos a nossa estupidez em viagem”. Para este etnólogo, o que é insuportável é a forma como o turista vem sendo maltratado e “frequentemente entendido como uma anomalia: um avatar mercantil indesejável do viajante, unicamente tolerado pelo seu interesse económico, e pobre em modelos e em valores”. Urbain prefere dirigir o seu repúdio à sua própria classe, a essa forma de incómodo diante deste “bastardo embaraçoso” e de um fenómeno global que, na mesma medida em que assume proporções descontroladas,  merece um repúdio do campo intelectual que parece querer diluí-lo no absurdo ao invés de interpretar os “comportamentos e projectos, os desejos colectivos e as fobias de época de uma cultura, de um país e de uma nação”. Se Marc Augé fala no turista como “um consumidor que se toma por um viajante”, Urbain deplora este entendimento que enferma de um elitismo serôdio, enfeitado com a sua bijutaria mistificadora, um quadro idealizado no qual o turista aparece como um fungo, “uma forma degenerada de viagem, sem origem nem função definida, sem verdadeira história a não ser a de uma corrupção que degrada as virtudes cardeais dos primogénitos, membros de uma aristocracia da Viagem da qual o turista se encontra excluído...”
Para este etnólogo, pouco importa se o que define a demanda turística é o carácter de lazer da viagem. O que Urbain assinala é que a condenação do turista - para lá da irritação face aos efeitos destrutivos sentidos por aqueles que participam neste fenómeno de forma passiva, no papel de indígenas, às vezes até de colonizados - está eivada de um conteúdo ideológico. Urbain encara o turismo como um sintoma da sociedade e defende que, enquanto tal, não merece “ser estigmatizado como um concentrado de vícios e defeitos congénitos de todo o tipo, e condenado a expiar as faltas, crimes e delitos dos seus antepassados”. No fundo, este especialista em turismo aponta para a difusão de um típico preconceito de classe que se tem generalizado, beneficiando dos efeitos de massificação para, tal como acontece com a distribuição desigual da riqueza, servir-se das consequências - a pobreza - para justificar a injustiça das causas. “Porque mesmo renegado, este bastardo existe, inclusivamente na família dos etnólogos, dos missionários e dos exploradores. E erraríamos grosseiramente de alvo se, desta vez, confundíssemos não o género e a espécie, ou a causa e o efeito, mas o sujeito (o turista) e o fenómeno (a indústria do turismo)”.
Ora, para se ter uma noção - mesmo que muito abstracta, como é sempre aquela que os números servem -, por um outro texto daquela revista, a propósito do impacto que os voos low-cost tiveram na massificação do turismo, ficamos a saber que, se em 1990 o número de turistas andava à volta dos 450 milhões, em 2002 já eram 750 milhões e, no próximo ano, será ultrapassada a marca de 2 mil milhões. Assim, esta é já hoje a principal actividade económica a nível mundial mas, curiosamente, é a própria indústria do turismo quem mais contribui para acentuar a diferença entre o turista e o viajante, como sinaliza António Guerreiro. Se sempre que se acentua essa diferença “é para denegrir o primeiro como uma manifestação grotesca do viajante sem qualidades”, o editor da Electra nota que “a esta caricatura é difícil escapar porque a indústria do turismo a ela se conformou completamente, fazendo com que ganhasse um carácter coercivo”.
Seja como for, parece haver um contrassenso decisivo entre essa bruxuleante luz que se acende a espaços, guiando o viajante, e o catálogo das motivações que levam o turista a escolher um destino a partir de um longo cardápio, atendendo às suas promessas, sempre com vista à satisfação dos seus caprichos. Mesmo se, como nota Guerreiro, “nada é tão familiar ao turista quanto o cansaço, o tédio, a decepção” e ainda que, “por mais que ele se recuse a admitir, enquanto cumpre o seu programa turístico, a sua satisfação está muito aquém do que lhe era prometido”, o certo é que a busca do prazer é o grande móbil de quem gosta de coleccionar carimbos no passaporte. Ora, Albert Camus foi bastante eloquente ao defender que, no fundo, nem há prazer em viajar. Nos seus cadernos, defende que é, pelo contrário, o medo aquilo que dá valor a uma viagem. “É o facto de, num certo momento, quando estamos tão longe do nosso próprio país (…) sermos tomados por um vago receio, e pelo desejo instintivo de voltar para a protecção dos velhos hábitos. Este é o mais óbvio benefício da viagem. Nesse momento estamos febris, mas também porosos, de modo que o mais pequeno toque faz-nos tremer até às profundezas do nosso ser”.
Assumindo também uma visão bastante depreciativa do turismo, Paul Theroux diz que, se a viagem deve envolver sempre um certo grau de transgressão, “vender aventura parece ser um tema do sector de viagens, e as viagens tornaram-se troféus”. Neste aspecto, a indústria não fez outra coisa senão aplicar às viagens “a regra primeira da mercadoria, que prescreve como princípio a vontade do freguês”, lembra Guerreiro, e para “optimizar” a experiência, o que se mostrou necessário foi precisamente limitar a aventura para que o inesperado não a desviasse das expectativas ao ponto de encaminhar o turista para algo que tenderá a descrever como um pesadelo. Assim, todo o risco, toda a pretensão de aventura deve enquadrar-se num percurso predefinido em que as sensações, inclusivamente o medo, são doseadas em limites aceitáveis. De outro modo, o mais provável é que o turista se queixe de ter sido vítima de alguma forma de terrorismo. E, como se sabe, hoje basta um vídeo para fazer germinar o pavor nas redes sociais e dar cabo de um negócio.
Os esforços para conformar o território às expectativas que se criam a partir do postal foram o que levou o escritor e filólogo alemão Gerhard Nebel a profetizar que este fenómeno seria sentido como uma doença que descaracteriza de tal modo o espaço que parece irromper “numa série de abcessos”. Classificando o turismo como um dos maiores movimentos niilistas, há várias décadas, Nebel avisava: “Um país que se abre ao turismo fecha-se metafisicamente - oferece a partir daí um cenário, mas já não a sua mágica potência”. Por sua vez, Henri Michaux, alguém que apesar da sua saúde débil foi um grande viajante e que, com toda essa vulnerabilidade, provou ser um dos gigantes nessa poesia que se alimenta do confronto entre os nervos e o mundo, era, apesar de tudo, bastante pessimista e prenunciou esta forma de vazio que alastra com o parque de diversões turístico a engolir o mundo: “Já estou mentalizado. Toda a viagem é uma armadilha. A viagem não nos alarga tanto as vistas quanto nos torna sofisticados, ‘actualizados’, apanhados pelo superficial com aquele aspecto realmente estúpido de um tipo que faz de júri de um concurso de beleza”.
Mas, contra todo o pessimismo, a viagem continuará a produzir os seus abalos enquanto o estrangeiro persistir, enquanto a própria ideia de alhures não se deixar reduzir ao cenário de um pobre simulacro. Mais até do que o convite do desconhecido, e a convicção de Bruce Chatwin era de que a própria evolução gravou em nós esta noção de que as chaves para se  ir mais fundo na descoberta de si mesmo só nos são dadas explorando o que nos estranha. “A Selecção Natural projectou-nos - da estrutura das nossas células cerebrais até à estrutura do dedo grande do pé - para uma carreira de jornadas sazonais a pé através de uma terra causticante de arbustos espinhosos ou deserto”, escreveu o autor de O Canto Nómada. E é neste ponto que podemos retomar a valiosa lição de Jean-Didier Urbain sobre a verdadeira natureza das viagens.
O especialista em turismo reforça a ideia de que a viagem é uma escola do fracasso. A sucessão de obstáculos inesperados, muitos deles convidando à própria errância - essa deambulação decidida a meias entre as oportunidades e os acidentes que nos encontram e o nosso ânimo -, tudo aquilo que lança a expectativa para um lugar recuado verga a ansiedade, tudo isso resgata os sentidos para uma postura alerta, “o olho a apreender tudo vagarosamente, os pés doridos a imporem o lazer para observar” o que se tem em volta. E é este, segundo Urbain, o traço que liga o turista à família dos viajantes. “Essa arte partilhada do falhanço constitui um não saber-fazer comum que confere a toda a viagem um ‘ar de família’”. Paul Theroux escreveu num dos seus livros de viagens que “estar enganado é a essência da história do viajante”, e Urbain esclarece que, ao viajarmos, “a nossa inteligência é submetida às provas sucessivas da dificuldade de compreender (face a um real que nos escapa) e da necessidade de tomar uma decisão”.
“Não é que a viagem nos torne fracos de espírito, mas que a relação de ininteligência com o Outro, com o Mundo e mesmo Consigo próprio tende a acentuar-se”, esclarece. É a desorientação, garante Urbain, o espeto que irmana todos os viajantes. É uma inevitável condição de intruso o que se torna “a causa de uma experiência comum de inadaptação susceptível de nos tornar a  todos idiotas, seja qual for a espécie de viajante”. E a razão por que esta é uma arte tão partilhada é porque “não existe intrusão conseguida”. “E a história da viagem, considerada deste ponto de vista, é a saga de intrusões mais ou menos falhadas...” Ora, tendo isto em conta, e sendo evidente também como o Outro é quem está na condição de nos estranhar, de aprofundar essa falha, de se reflectir em nós ou deixar que o façamos nele, quando corrige as nossas suposições erradas sobre ele, sobre a sua cultura ou o seu país, o Outro impede-nos de chegar ao fim, de nos trancarmos dentro dos nossos limites." Diogo Vaz Pinto, em artigo publicado no Jornal i, em 26/07/2019 

Sem comentários:

Enviar um comentário