terça-feira, 20 de agosto de 2019

Um mundo sem fronteiras

A ideia de um mundo sem fronteiras 
Por Achile Mbembe
"A utopia da livre circulação entre os países é hoje solapada pelo reforço das restrições de movimento que reproduzem e intensificam a vulnerabilidade de grupos estigmatizados e mais marcados racialmente
A capacidade de decidir quem pode mover-se, quem  pode  estabelecer-se onde e sob quais condições, ocupa cada vez mais o centro de lutas políticas por soberania, nacionalismo, cidadania, segurança e liberdade. Com a expansão colonial do ocidente, e de modo mais decisivo com o advento do capitalismo, a raison d’être da fronteira  relaciona-se a questões­-chave como: a quem pertence a terra? Quem tem o direito de reivindicar partes dela e os vários seres que nela habitam? Quem determina a sua distribuição ou divisão? Ao enquadrar a questão da fronteira dessa forma, estou a tentar mostrar que o poder da fronteira está na capacidade de regular as múltiplas distribuições das populações – humanas e não humanas – sobre o corpo da terra, e, assim, afectar as forças vitais de todos os tipos de seres.
No século XXI, torna-­se evidente um desejo global renovado dos cidadãos e de seus respectivos Estados por um controle mais rígido da mobilidade. Para onde quer que se olhe, o impulso é em direcção ao cerco ou, em todo caso, a uma dialéctica mais intensa de territorialização e desterritorialização, de abertura e fechamento. Ganha força a crença de que o mundo seria mais seguro se ao menos os riscos, as ambiguidades e as incertezas pudessem ser controladas, se ao menos as identidades pudessem ser fixadas de uma vez por todas. Técnicas de gestão de risco estão se tornando, cada vez mais, um método para governar a mobilidade. Sobretudo na medida em que a fronteira biométrica se expande para múltiplos domínios, não apenas na vida social, mas também no corpo, o corpo que não é meu.
Gostaria de prosseguir nessa linha de argumentação sobre a redistribuição da terra. Não apenas por meio do controle dos corpos, mas do controle do movimento em si e de seu corolário, a velocidade, pois é a isso que as políticas de controle migratório estão de facto relacionadas: controlar os corpos, mas também o movimento. Mais especificamente, quero investigar se, e sob quais condições, poderíamos reengendrar a utopia de um mundo sem fronteiras, e, por extensão, reengendrar um mundo sem fronteiras, uma vez que, pelo que sei, a África é parte do mundo. E o mundo é parte da África.
É importante levar em consideração que a questão de um mundo sem fronteiras é uma intenção obviamente utópica. Desde a sua origem, o “movimento”, ou mais precisamente “a ausência de fronteiras”, tem sido central para várias tradições utópicas. O próprio conceito de utopia refere-­se ao que não tem fronteiras, a começar pela imaginação em si. O poder da utopia consiste na capacidade de representar a tensão entre a ausência de fronteiras, o movimento e o lugar, uma tensão – se observarmos com cuidado – que marcou as transformações sociais na era moderna. Essa tensão continua nas discussões contemporâneas sobre processos sociais baseados no movimento, especialmente a migração internacional, as fronteiras abertas, o transnacionalismo e até o cosmopolitismo. Nesse contexto, a ideia de um mundo sem fronteiras pode ser um recurso poderoso, embora problemático, para o social, o político e até mesmo para a imaginação estética. Por causa da actual atrofia da imaginação utópica, o espírito do nosso tempo foi colonizado por imaginários apocalípticos e narrativas de desastres cataclísmicos e futuros desconhecidos. Mas que política as visões do apocalipse e da catástrofe engendram, se não uma política da separação, em vez de uma política da humanidade, de espécies começando a existir plenamente? Porque nós herdamos uma história em que a norma é o sacrifício recorrente de algumas vidas para a melhoria de outras, e porque estes são tempos de medos profundamente enraizados, incluindo o medo de um planeta dominado por outras pessoas de raças diferentes; por tudo isso, a violência racial está amplamente codificada na linguagem da fronteira e da segurança. Como resultado disso, as fronteiras contemporâneas correm o risco de se tornarem lugares de reforço, reprodução e intensificação da vulnerabilidade para grupos estigmatizados e desrespeitados, para os mais marcados racialmente, cada vez mais dispensáveis, aqueles que, na era do desamparo neoliberal, pagam o preço mais alto pelo período em que mais se construíram prisões em toda a história humana. Aqui me refiro à prisão, às paisagens carcerárias de nosso mundo, precisamente como a antítese do movimento, da liberdade de se mover. Não há oposição mais dramática à ideia de movimento do que a prisão. E a prisão é uma característica-­chave da paisagem dos nossos tempos.
Ao propor um reexame da questão de uma África sem fronteiras e de um mundo sem fronteiras, gostaria de manter distância dos tratamentos dominantes que esse assunto tem recebido. Isto é, sob o signo de Kant e a  sua promessa de um cosmopolitismo sem limites, e sob o signo de um individualismo liberal visto como antídoto para os impulsos fascistas arraigados na governança e na burocracia europeias. Embora pareçam dois mundos diferentes, ambas as abordagens são articuladas em torno do conceito das quatro liberdades.

AS QUATRO LIBERDADES DE MOVIMENTO
No pensamento liberal clássico, existem três liberdades fundamentais: antes de tudo, a liberdade de ir e vir. Dentro da liberdade de ir e vir, existe a liberdade de movimentação do capital, a maior prioridade. Mas, uma vez que não há capital sem bens, existe a liberdade de movimentação dos bens. A terceira é a dos serviços, e, especialmente nestes nossos tempos, a liberdade de movimento daqueles que podem prestá-­los. Essas são as três liberdades fundamentais; a quarta é a liberdade de movimento das pessoas. Os compromissos tradicionais com a ideia de um mundo sem fronteiras visavam precipitar o advento dessa quarta liberdade. De acordo com essa configuração, num mundo sem fronteiras haveria liberdade de movimento para: o capital, os bens, os serviços e as pessoas. Essa movimentação, essa liberdade de movimento não seria restrita ao núcleo de países ou Estados economicamente ricos, como é o caso actualmente. O Tratado de Schengen,1 por exemplo, inclui apenas um núcleo de países europeus. De facto, se  tem um passaporte americano, basicamente pode ir aonde quiser. O mundo pertence-lhe. Mas não é assim que funciona para todo habitante do nosso planeta. Na configuração que mencionei, a quarta liberdade, a capacidade de se mover pelo planeta, não estaria mais restrita a europeus e americanos. Seria um direito radical que todos os indivíduos teriam pelo simples facto de serem humanos. Um direito estendido aos pobres da terra. Voltamos sempre à questão da terra. Não haveria vistos, em algumas instâncias da quarta liberdade de movimento não haveria cotas, e nenhuma categoria bizarra na qual se enquadrar. Seria possível simplesmente pegar a estrada, um avião, um trem, um barco, uma bicicleta. O direito de não ser discriminado seria estendido a todos. Nos Camarões, até o início dos anos 1980, era possível viajar para a França apenas com o cartão de identidade. A maioria das pessoas ia à França e voltava. Não iam porque queriam se estabelecer lá. A maioria das pessoas quer viver no lugar ao qual “pertence”. Mas querem poder ir e vir. E é mais provável que vão e venham quando as fronteiras não são hermeticamente fechadas. Logo, o mundo sem fronteiras imaginado pela quarta liberdade de movimento é baseado em duas premissas: o direito à não discriminação e os arranjos circulatórios e pendulares de migração.
Para elucidar ou apresentar de modo diferente as questões de um mundo sem fronteiras é preciso contrastar dois paradigmas. Examinar a ideia liberal de um mundo sem fronteiras por meio do conceito de liberdade de movimento, e contrapô-­la aos modos como se compreendia a movimentação no espaço da África pré­-colonial. O contraste entre esses dois paradigmas nos dará, espero, recursos conceituais para expandir o projecto utópico de um mundo sem fronteiras.

A TRADIÇÃO LIBERAL INDIVIDUALISTA
Falar em pensamento clássico liberal, sabemos, é extremamente complicado. Estou propondo um arquétipo, que precisa ser desconstruído adequadamente. E aqui vou me referir em especial a uma obra recente, Movement and the Ordering of Freedom, de Hagar Kotef, uma académica israelita que lecciona na Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. Pode usar a imaginação e adivinhar por que uma israelita está interessada nisso. O que Kotef demonstra nessa obra é como o pensamento político liberal, ao imaginar a possibilidade de um mundo sem fronteiras, carregou sempre uma contradição. Seu argumento é que essa contradição decorre da forma como o pensamento liberal compreende o movimento. Ela mostra que, de facto, dentro do pensamento liberal clássico, duas configurações dominantes de movimento entram constantemente em conflito, de modo que, às vezes, uma anula a outra. O movimento aqui é visto, ao mesmo tempo, como manifestação das liberdades e como interrupção, ameaça à ordem. Uma das funções do Estado é, portanto, fabricar conceitos de ordem, estabilidade e segurança que possam ser conciliados com seus conceitos de liberdade e movimento. Essa é a contradição. Kotef argumenta que o Estado liberal clássico é inimigo das pessoas que circulam incansavelmente. Essas pessoas se tornam um outro inassimilável. Não se pode assimilá-­los. Eles estão em movimento constante. Em tudo isso, há uma repercussão colonial. O maior problema do Estado colonial no continente africano, do século XIX em diante, era garantir que as pessoas ficassem no lugar. Foi difícil. Elas circulavam constantemente. Eram “incapturadas”.
Portanto, o negócio do Estado é conseguir capturá-­los. Sem isso, a soberania não significa nada. Soberania significa capturar um povo, capturar um território, delimitar fronteiras. Isso, por sua vez, permite que se exerça o monopólio do território, claro, o monopólio sobre as pessoas nos termos do uso legítimo da força e, o que é muito importante – porque todo o resto depende disso –,   o monopólio sobre a cobrança de impostos. Não se pode cobrar impostos de quem não tem endereço. O Estado vê essas pessoas como inimigas – tanto da liberdade, porque eles não a exercem dentro dos limites, quanto da segurança e da ordem. Não se pode construir uma ordem com base no que é instável.
O mesmo Estado é amigo do movimento autorregulado. Porquê? Porque a liberdade nesse caso é entendida como uma questão de moderação, de autorregulação. Não está associada ao excesso – o movimento excessivo imediatamente invoca problemas de segurança. Kotef então mostra que o movimento não só precisa ser contido por um aparato de mecanismos disciplinares, como deve ser reconciliado com a liberdade e, em certa medida, com o autocontrole. Mas não se supõe que todos os sujeitos tenham capacidade de controlar ou regular a si mesmos. Nem todo mundo consegue se conter. Portanto, alguns movimentos são rotulados como liberdade, e outros são considerados impróprios e percebidos como uma ameaça. Essa é a bifurcação que existe no pensamento clássico liberal. É o espectro que assombra os Estados liberais clássicos, desde aquela época até agora. Ainda não nos livramos desse espectro.
Os Estados liberais clássicos tentaram resolver essa contradição pelo gerenciamento da mobilidade, que está de volta à pauta agora na Europa e até na África do Sul, onde tenho feito alguns trabalhos com o Departamento de Assuntos Internos a respeito da regulação de migrações interafricanas. O conceito-­chave é “mobilidade gerenciada”. Então, no quadro da mobilidade gerenciada, certas categorias da população são vistas o tempo todo como possível ameaça, não apenas para si mesmas e sua própria segurança, mas também para a segurança dos demais. Acredita-­se que essa ameaça pode ser reduzida se os movimentos dessas pessoas forem limitados e se elas forem domesticadas e submetidas a algum tipo de reforma.

O MODELO AFRICANO
No modelo clássico liberal, segurança e liberdade passam a ser definidas como um direito de exclusão. A ordem, nesse modelo, diz respeito à garantia de uma organização desigual das relações de propriedade. Assegurar as fronteiras da nação acompanha a afirmação dos limites da raça. Agora, redefinir os limites da raça nesse modelo exige uma definição apropriada dos limites do corpo; a centralidade do corpo nos cálculos de liberdade e de segurança.
Antes de mais nada, devo dizer que a África pré­-colonial pode não ter sido um mundo sem fronteiras, pelo menos não no sentido em que as temos definido; as fronteiras existentes sempre foram porosas e permeáveis. A função de uma fronteira, na realidade, é ser cruzada. É para isso que elas servem. Não há fronteira concebível fora desse princípio, a lei da permeabilidade. Como atestam as tradições de comércio de longa distância, a circulação era essencial. Era fundamental na produção de formas culturais, arranjos políticos, configurações económicas, sociais e religiosas. O veículo mais importante para a transformação e a mudança era a mobilidade. Não era a luta de classes, no sentido em que a compreendemos. A mobilidade era o motor de qualquer tipo de transformação social, económica ou política. Aliás, era o princípio indutor por trás da delimitação e da organização do espaço   e dos territórios. Assim, o princípio primordial da organização espacial era o movimento contínuo. E isso ainda é parte da cultura hoje. Parar é correr riscos. Precisa de estar em constante movimento. Sobretudo em situações de crise, essa é a própria condição da sobrevivência. Se  não se move, as chances de sobreviver diminuem. Logo, o domínio sobre   a soberania não era expresso exclusivamente por meio do controle de território, marcado fisicamente com fronteiras. Como era, então? Se não se controla um território, como se pode exercer a soberania? Como se pode extrair qualquer coisa, uma vez que, pelo que sabemos, o poder se expressa também, se não essencialmente, por meio de alguma forma de extracção?
Tudo isso era representado pelas redes. Redes e encruzilhadas. A importância das redes e das encruzilhadas na literatura africana é impressionante. Leia Soyinka, leia Achebe, leia Tutuola.2 Estradas e cruzamentos estão por toda parte na literatura deles. As encruzilhadas, os fluxos de pessoas e os fluxos da natureza, ambos em relações dialécticas, porque nessas cosmogonias as pessoas são impensáveis sem o que chamamos de natureza. Isto posto, enquanto a virada do Antropoceno parece uma novidade em parte do nosso mundo hoje, nós sempre vivemos assim. Não é nenhuma novidade. Porque não se pode pensar nas pessoas sem pensar nos não humanos. Leia Tutuola, é um mundo de humanos e não humanos interagindo, agindo uns com os outros. Não quero exagerar. Espaços geográficos fixos, como cidades e vilas, existiam. Pessoas e coisas poderiam estar concentradas num local específico. Esses lugares podiam até se tornar a origem do movimento, e havia ligações entre eles, como estradas e rotas de voo, mas os lugares não eram descritos por pontos ou linhas. O mais importante era a distribuição do movimento entre os lugares. O movimento era a força motriz da própria produção de espaço e deslocamento, se acreditarmos em algumas daquelas cosmogonias. Tenho agora em mente a cosmogonia Dogon, que foi estudada particularmente por Marcel Griaule, ou outras cosmogonias na África Equatorial analisadas por antropólogos e historiadores como Jan Vansina, John M. Janzen e outros. O movimento em si não era necessariamente relacionado ao deslocamento. O mais importante era o quanto os fluxos e suas intensidades se cruzavam e interagiam com outros fluxos, as novas formas que estes poderiam assumir quando se intensificavam. O movimento, especialmente entre os Dogon, poderia levar a desvios, conversões e intersecções. Isso era mais importante do que pontos, linhas e superfícies, que, como sabemos, são as referências cardeais na geometria ocidental. Logo, o que temos aqui é outro tipo de geometria, da qual derivam conceitos próprios de fronteiras, poder, relações e separação.
Se quisermos captar recursos alternativos, como um vocabulário conceitual, para imaginarmos um mundo sem fronteiras, eis aqui uma fonte. Não é a única. Mas queremos reunir os arquivos do mundo em geral, não apenas os documentos ocidentais. Na verdade, os arquivos ocidentais não nos ajudam a desenvolver a ideia de um mundo sem fronteiras. O arquivo ocidental está baseado na cristalização da ideia de fronteira.
Nessa configuração, riqueza e poder, ou a riqueza nas pessoas, digamos assim, sempre superou a riqueza nas coisas. Há duas formas de riqueza. Pode ser rico de acordo com a sua capacidade de aglutinar em torno de si clientes, familiares etc. Ou pode ser rico simplesmente por ter acumulado uma quantidade imensa de coisas. Eis aqui uma dialéctica de quantidades e qualidades. E múltiplas formas de associação sempre estiveram disponíveis. Como alguém se tornava parte de algo? Através de qual janela se pode entrar na casa? Havia muitas formas de associação, não classificações rígidas de que se é ou um cidadão ou um forasteiro. Entre um e outro havia todo um repertório de formas alternativas de associação – construir alianças por meio de negócios, casamento ou religião, incorporar aos regimes existentes novas relações comerciais e pessoas refugiadas ou em busca de asilo – essa era a regra. A dominação se dava por meio da integração dos forasteiros. Todo tipo de forasteiros. E a noção de povo – não a de nação – incluía não apenas os vivos, mas também os mortos, os não nascidos, os humanos e os não humanos. A comunidade era impensável sem algum tipo de dívida fundadora, com duas formas principais de endividamento. Existe a dívida expropriatória, como alguns de nós estamos devendo para bancos. Mas, nessas constelações, há um tipo diferente de dívida que constitui a própria base da relação. É o tipo de dívida que abrange não só os vivos, o presente, mas também aqueles que vieram antes e os que virão depois de nós e com quem também temos obrigações – a corrente de seres que inclui, mais uma vez, não apenas humanos, mas também animais e o que chamamos de natureza.

O DIREITO À MORADIA
Gostaria de concluir apresentando uma ideia que retirei da constituição de Gana. Ela desenvolveu um conceito que não encontrei em nenhum outro lugar. É um novo direito fundamental que eles chamam de “direito à moradia” e que querem incluir na lista dos direitos humanos tradicionais. A ideia desse direito à moradia me parece a pedra fundamental para qualquer tentativa de reimaginar a África como um espaço sem fronteiras. Em um nível histórico profundo, os africanos e as lutas diaspóricas pela liberdade e pela autodeterminação sempre estiveram entrelaçados à aspiração de se mover sem amarras. Seja em condições de escravidão ou sob domínio colonial, a perda de nossa soberania resultou automaticamente na perda de nosso direito à livre circulação. Essa é a razão pela qual o sonho redentor de uma nação africana livre e poderosa tem sido ligado de modo inextrincável à recuperação do direito de ir e vir sem obstáculos ao longo de nosso continente colossal. De facto, a nossa história na modernidade tem sido, em grande medida, de constante deslocamento e confinamento, migrações coagidas e trabalhos forçados. Pense no sistema de plantation nas Américas e no Caribe. Pense nos Black Codes e Pig Laws,3 ou no status de vagabundagem depois do fracasso da reconstrução dos Estados Unidos em 1887. Pense nas chain gangs,4 trabalhando em empreitadas como construção de estradas, escavação de valas, demolição e desmatamento. Pense no Code de l’indigénat,5 pense nos Bantustões,6 nas reservas de trabalho no sul da África e na indústria de complexos carcerários hoje nos Estados Unidos. Em cada exemplo, ser africano e ser negro significa ser relegado a um entre os muitos espaços de confinamento que a modernidade inventou.
A corrida para a África no século XIX e a demarcação de suas fronteiras de acordo com as linhas coloniais transformaram o continente num enorme espaço carcerário e fizeram de cada um de nós um imigrante ilegal em potencial, impedido de circular salvo sob condições cada vez mais punitivas. Na realidade, o aprisionamento se tornou a precondição para a exploração do nosso trabalho, e por isso as lutas pela emancipação racial e por melhorias das condições de vida dos negros são tão entrelaçadas às lutas pelo direito de circular livremente. Se quisermos concluir o trabalho de descolonização, precisamos derrubar as fronteiras coloniais em nosso continente e transformar a África num vasto espaço de circulação para os africanos, para seus descendentes e para todos aqueles que quiserem ligar seus destinos ao nosso continente."
Achille Mbembe , em ensaio publicado na Revista Serrote nº 31. Tradução de Stephanie Borges
  1. Tratado que criou uma zona de livre circulação de cidadãos entre países europeus, na qual os controles de fronteira foram abolidos, salvo em casos excepcionais. Começou com cinco países, em 1985, e hoje reúne 26 Estados. [N. da T.]
  2. O autor se refere a três dos principais autores da literatura nigeriana do século XX: Wole Soyinka (1934), premiado com o Nobel de Literatura em 1986; Chinua Achebe (1930-­2013); e Amos Tutuola (1920­-1997). [N. da T.]
  1. Black Codes eram leis discriminatórias promulgadas após o fim da guerra civil nos EUA, que permitiam a pessoas negras o direito à propriedade privada, mas as proibiam de votar, testemunhar contra brancos ou servirem como jurados. As leis que criminalizavam o desemprego como vagabundagem e puniam pessoas negras por roubo de comida ficaram conhecidas como Pig Laws. [N. da T.]
  2. Com o fim da Guerra Civil e da escravidão nos EUA, os estados do Sul passaram a usar o trabalho forçado de prisioneiros, na maioria negros, em obras de infraestrutura. Os grupos eram conhecidos como chain gangs por serem acorrentados pelos pés para evitar fugas. [N. da T.]
  3. Leis coloniais francesas que restringiam os direitos da população muçulmana da Argélia em 1881, extintas apenas depois da guerra de independência argelina, em 1962. [N. da T.]
  4. Territórios onde os povos bosquímanos foram segregados pelo apartheid em territórios supostamente autónomos dentro da África do Sul. [N. da T.


O camaronês Achille Mbembe (1957) é professor de história e ciência política da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, e na Duke University, nos EUA. É um dos mais originais pensadores contemporâneos nas questões relacionadas à descolonização, à escravidão e ao racismo. É autor de Crítica da razão negra e Necropolítica, ambos publicados no Brasil pela n-­1. Este ensaio foi apresentado em Março de 2018 como parte da tradicional série Tanner Lectures on Human Values, na Universidade Yale.
Figura ascendente na arte africana contemporânea, Serge Alain Nitegeka (1983) nasceu no Burundi, mas ainda na infância se viu forçado ao exílio com a família devido a conflitos políticos locais. Passou por vários países africanos até se instalar em Joanesburgo, na África do Sul, onde vive desde 2003. As obras aqui publicadas pertencem à série Ode To Black, cortesia da galeria Stevenson (Cidade do Cabo e Joanesburgo).

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