quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Matadores de borboletas azuis

Javier Heraud
Matadores de borboletas azuis
por Manoel de Andrade
                                
                                   “Pai perdoai-os porque não sabem o que fazem”

"Diante da morte, e do julgamento mais iníquo da história, o inocente Nazareno perdoa incondicionalmente a seus algozes. Mas quem de nós pode perdoar a cruz imposta a Cristo? Como perdoar o desprezo e o falso julgamento de Caifás e as mãos lavadas de Pilatos? 
Estes são os legítimos ressentimentos, as razões daqueles cujas bandeiras estampam as cores da justiça e da verdade. São também, entre tantas, nossas razões de poetas, os motivos pelos quais cantamos, nossas licenças literárias, nosso encanto e desencanto, nosso íntimo e angustiante tribunal. 
Sabem os homens justos e sabemos os poetas que nossas denúncias e testemunhos, nossos líricos veredictos se escorrem, ignorados ou esquecidos, pelos ralos da inconsciência humana. Sabemos que o perdão pessoal é o único passaporte que cruza a fronteira da paz interior e da liberdade do espírito, e por isso a justiça deve ser impessoal e ser entregue aos tribunais inexoráveis da própria vida. Mas ainda não consegui visar esse precioso documento. 
Como perdoar a cicuta imposta a Sócrates, os que gargalharam no Coliseu ante os cristãos devorados pelas feras, como perdoar os crimes de Torquemada e a fogueira acesa a João Huss e a Giordano Bruno?
Nunca poderei perdoar uma Hiroshima arrasada, nem Auschwitz e nem Treblinka, e as crianças ardendo em napalm na Saigon bombardeada. 
A Grande Alma da Índia, abençoando o assassino. Ele perdoou, e você? E o tiro em Luther King? Chico Mendes? Dorothy Stang? Por certo foram perdoados. Mas, na memória de Allende e dos mártires chilenos, não perdoo a Pinochet. 
Não perdoo tanta dor por Caupolican empalado, Tupac Amaru, numa praça esquartejado e Otto René Castillo, durante três dias queimando.

Federico García Lorca…,
já não tinhas mais abrigo, 
campo frio, amanhecendo, 
caminhavas entre os fuzis….
e naquela hora em Granada fomos crivados contigo. 
Morremos com Lord Byron, 
pela liberdade da Grécia. 
Morremos com Victor Jará, 
com Ariel Santibañez
torturados até a morte nas prisões de Santiago. 
Javier Heraud, ainda infante,
cinco livros publicados o poeta guerrilheiro, 
no verde vale do Cuzco, 
com vinte e um anos apenas ele caiu emboscado.
Não perdoo, não perdoo, 
tantos poetas sangrados,
pelas vidas silenciadas nos horrores dos DOI-CODI, 
e os carrascos do Regime, só aqui anistiados.
Não perdoo, não perdoo, os crimes da ditadura, 
a MEMÓRIA não perdoa
e a pátria jamais perdoa seus filhos sem sepultura.

Consola-me acreditar que, apesar da impunidade dos códigos da Terra e da nossa impotência ante a crueldade humana, há uma instância superior da justiça onde se colhe, obrigatoriamente, os frutos amargos dos actos humanos, semeados livremente, mas sem a noção do dever." 
Manoel de Andrade, in "As palavras no espelho"Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda, São Paulo, Brasil, pp. 215-217

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