sexta-feira, 2 de agosto de 2019

De Manoel de Andrade

Hiroshima                      

Hiroshima, Hiroshima
rosa rubra do oriente
fragrância de cerejeira
céu de anil no sol nascente.

Farol de luz no estuário
remanso dos vendavais
porto e escala dos juncos
roteiro dos samurais.

Verão de quarenta e cinco
no dia seis de agosto.
Clareando as águas do delta
a aurora beija o teu rosto.

Surge o Sol, se abre o dia
na luz e no movimento.
Tudo era paz e alegria
e nenhum pressentimento.

Teus colibris revoavam
no fresco azul dos teus ares
eram os casais, eram os ninhos
carícias, trino e cantares.

O arroz na água e na espiga
talo e seiva a palpitar
os rosais desabrochando
e os girassóis a girar.

Vidas...teu rosto eram vidas
nos campos e nos quintais
nos jardins, na verde relva
na algazarra dos pardais.
                                                    
Folguedos, danças, cantigas
tua infância sem receios
teus escolares em flor
correndo pelos recreios.

As horas cruzavam o dia
os pais e os filhos na praça
o povo cruzava as ruas
cruzava o céu a desgraça.

De repente nos teus ares
a Águia do Norte, o Falcão
e num segundo, em teus lares,
gritos, fogo, turbilhão.

O beijo carbonizando
a luz devorando o dia
a carne viva queimando
na instantânea agonia.

No céu... um avião se afasta
na voz... a missão cumprida
no chão... a dor que se arrasta
e  a  cidade  destruída. 

Quem eras tu, Hiroshima
naquele dia distante...?
Eras sonhos e  esperanças
incendiados num instante...

Quantos projetos de vida
mil sonhos acalentados
quantas mil juras de amor
nos lábios dos namorados.

Eras  filhote no ninho
eras fruto no pomar                                        
canteiro de brancas rosas                                
e toda a vida a cantar.
                                                               
Eras mãe, eras criança
e no útero eras semente
ontem eras a esperança
e agora o braseiro ardente

Por que Hiroshima, por quê...?             
o punhal de fogo, a explosão...?           
Por que cem  mil corações
ardendo sem compaixão...?

Tua inocência  cremada
na fogueira do delírio.
Tua imagem retratada
na estampa do martírio.

Teu sangue vive na história
nas cicatrizes ardentes
nas lágrimas,  na memória
na dor dos sobreviventes.

Quem previu tua agonia ?
Quem explodiu tua paz ?
Quem tatuou nos teus  lábios
as palavras: nunca mais!?

Comandantes, comandados...
quem são os donos da guerra...?
e em que tribunal se julgam,
os genocídios da Terra...?

Por tanta dor, rogo a Deus
na minha prece tardia
que guarde no seu amor
os mártires daquele dia.

Hiroshima, flor da vida,
semente, ressurreição.
Fênix, face  renascida.
PAZ, santuário, canção.
                                                          Curitiba, Julho de 2005
Manoel de Andrade, in " Cantares ", Escrituras Editora, São Paulo, Brasil, pp.85-88

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