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sexta-feira, 4 de maio de 2012

Um homem sábio

" Cai a chuva , o vento desmancha as árvores desfolhadas, e dos tempos passados vem uma imagem, a de um homem alto e magro, velho, agora que está mais perto, por um carreiro alagado. Traz um cajado ao ombro, um capote  enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente caminham os porcos, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. O homem que assim se aproxima, vago entre as cordas da chuva, é o meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de privações, de ignorância. E no entanto é um homem sábio, calado, que só abre a boca para dizer o indispensável. Fala tão pouco que todos nos calamos para o ouvir  quando no rosto se lhe acende algo como uma luz de aviso. Tem uma maneira estranha de olhar para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede que tem na frente. A sua cara parece ter sido talhada a enxó, fixa mas expressiva, e os olhos, pequenos e agudos, brilham de vez em quando como se alguma em que estivesse a pensar tivesse sido definitivamente compreendida. É um homem como tantos outros nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria que não pôde ser nunca. Recordo aquelas noites mornas de Verão, quando dormíamos debaixo da figueira grande, ouço-o falar da vida que teve, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia, do gado que criava, das histórias e lendas da sua infância distante. Adormecíamos tarde, bem enrolados nas mantas por causa do fresco da madrugada.  Mas a imagem que não me larga nesta hora de melancolia é a do velho que avança sob a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. A não ser a morte. Este velho, que quase toco com a mão, não sabe como irá morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia  terá o pressentimento de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos  frutos que não voltará a comer. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória não o ressuscitar no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a eterna interrogação dos astros. Que palavra dirá então?"
José Saramago, in " As pequenas memórias", Editorial Caminho

segunda-feira, 19 de março de 2012

O filho a dar o nome ao pai

" Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago. Que esse Saramago não era um apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a família era conhecida na aldeia. Que indo  o meu pai  a declarar no Registo Civil da Golegã o nascimento do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário ( chamava-se ele Silvino) estava bêbado ( por despeito , disso o acusaria sempre meu pai) , e que , sob efeitos do álcool e sem que ninguém se tivesse apercebido da onomástica fraude, decidiu, por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacónico José de Sousa que meu pai pretendia que eu fosse. E que, desta maneira, finalmente, graças a uma intervenção por todas as mostras divina, refiro-me claro está, a Baco, deus do vinho e daqueles que se excedem a bebê-lo, não precisei de inventar um pseudónimo para, futuro havendo, assinar meus livros. Sorte, grande sorte minha, foi não ter nascido em qualquer das famílias da Azinhaga que, naquele tempo e por  muitos anos mais tiveram de arrastar as obcesnas alcunhas  de Pichatada, Curroto e Caralhana. Entrei na vida marcado com este apelido Saramago sem que a família o suspeitasse, e foi só aos sete anos, quando , para me matricular na instrução primária, foi necessário apresentar certidão de nascimento, que a verdade saiu nua e crua do poço burocrático, com grande indignação de meu pai, a quem , desde que se tinha mudado para Lisboa, a alcunha desgostava. Mas o pior de tudo foi quando ,  chamando-se ele unicamente José de Sousa, como ver se podia nos seus papéis , a Lei, severa, desconfiada, quis saber por que bulas tinha ele então um filho  cujo nome completo era José de Sousa Saramago.  Assim intimidado, e para que tudo ficasse no próprio , no são e honesto, meu pai não teve outro remédio que proceder a uma nova inscrição do seu nome , passando a chamar-se,  ele também, José de Sousa Saramago. Suponho que deverá ter sido este o único caso , na história da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai. Não nos serviu de muito, nem a nós nem a ela, porque meu pai, firme nas suas antipatias sempre quis e conseguiu que o tratassem unicamente por Sousa."
José Saramago, in " As pequenas Memórias", Editorial Caminho, Outubro de 2006