quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Trasladação de Eça de Queirós para o Panteão

A trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós efectiva-se hoje, após um processo  longo de alguma controvérsia.  
Eugénio Lisboa discordou dessa trasladação, tendo escrito  vários textos , onde vertia essa opinião.
Republicamos quatro desses textos que , juntamente com outros sobre o mesmo assunto, publicámos em 2023.
 

EÇA NO PANTEÃO NÃO TEM ADESÃO
por Eugénio Lisboa
“Somos um país de modas mais ou menos efémeras. De vez em quando, descobrimos uma moda nova e pomo-la de serviço, sem rei nem roque.
Durante décadas e décadas, nunca ninguém se preocupou com o Panteão, nem sequer se lembrou de que ele existia. Mas quando alguém se lembrou dele, já nem sei a propósito de quê ou de quem, o Panteão passou a ser o prato de arroz doce de todos os banquetes culturais. Estar ou não estar no Panteão, eis a questão. Quando uma personalidade de algum destaque cultural, científico, desportivo, militar ou político morria, aqui d’El-Rei que deve ir para o Panteão. À falta de melhor manjar, a comunicação social pegava neste e os opinantes ganhavam o dia. Tema qualquer serve, como diria a grande Irene Lisboa.
Propunha-se levianamente despachar para aquele sítio feioso e pouco acolhedor os restos mortais de alguém, sem realmente se ter em conta se esse teria de facto sido um desejo do falecido ou dos seus próximos, em representação dele. Ora não é difícil supor que um Pascoais preferiria, de longe, ficar no Marão, um Régio, em Vila do Conde, um Ferreira de Castro, em Ossela ou Sintra, um Camilo, em S. Miguel de Seide ou Porto, um Torga, em São Martinho da Anta  e um Eça, em Tormes. Isto, para dar só alguns exemplos. Se a autorização final deve caber ao Parlamento, a iniciativa da trasladação deve competir aos familiares, em consulta com os conhecedores profundos da obra e das idiossincrasias do falecido.
Pensar que o Panteão é o desejo ardente dos notáveis é ignorar o enorme poder de atracção que outros locais, carregados de magnetismo emocional, possam ter tido para o ilustre falecido. Por exemplo, ser enterrado na terra natal, ou na terra em que se foi feliz ou junto do companheiro ou companheira de toda uma vida. Tais sítios são polos de atracção muito mais poderosos do que um Panteão álgido, hostil e escassamente visitado. Um Panteão, perdoem-me a franqueza rude, é mais um depósito pouco atraente do que um lugar aprazível, para final de percurso.
A grande maioria dos grandes de França não se encontram sepultados no Panteão, estão no Père Lachaise ou noutros cemitérios onde preferiram ficar sepultados.
Esta gritaria recente, para se enviar Eusébio, Amália, Sophia, para o Panteão, faz parte do nosso irredimível provincianismo, que não é capaz de ver para além de falsos cenários.
Em Portugal, quando verificamos TODAS as personalidades de alto relevo, que nunca tiveram lugar no Panteão Nacional, apetece mesmo lá não estar.
A anunciada e próxima futura trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós para o Panteão Nacional é uma perfeita aberração e, ao que sei, não obteve a devida aprovação de quem de direito. Foi uma ideia oportunista e provinciana de alguém que é hoje ministro e que provavelmente conhece mal a obra e a personalidade do autor de O CRIME DO PADRE AMARO, mas conhece bem a arte de se tornar visível, à boleia de uma péssima ideia.
No Panteão de Paris, estão apenas os restos mortais de 75 personalidades, e a esmagadora
maioria dos grandes escritores franceses não está lá. Dos escritores do século XX está lá só UM, André Malraux, e não estão lá Anatole France, André Gide, Marcel Proust, Henry de Montherlant, Romain Rolland, Paul Valéry, Paul Claudel, Colette, Georges Duhamel, Roger Martin du Gard, François Mauriac, Julien Green, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Aragon, Jean Giraudoux, Marcel Aymé, Maurice Barrès, Antoine de Saint-Exupéry, Jean Anouilh, Raymond Queneau, Jacques Prévert, Jules Supervielle, Saint-John Perse, Jean Giono, Georges Simenon, etc.
NÃO ESTAR no Panteão está portanto longe de ser uma humilhação ou apenas razão de melancolia. Digamos que a melhor companhia até está cá fora e é cá fora, em Tormes, que Eça deve ficar. E ficará muito bem: estou certo de que assim o diria, se pudesse falar.”
Eugénio Lisboa, 27.04.2023
O PANTEÃO
por Eugénio Lisboa
O Panteão de um escritor são os seus leitores. Se estes não continuarem a existir, não há Panteão que os salve. Eça está, há muito e para sempre, no seu feliz Panteão: os leitores que o admiram e, na sua afiada e inovadora língua, se banham.
Uma das grandes forças da visão e da estilística de Eça foi sempre uma elegante e nobre distanciação da pompa, que considerava cómica e apenas bom material para uma desenfastiada chacota. Quem leu as inesquecíveis e contundentes páginas de UMA CAMPANHA ALEGRE, se tiver alguma sensibilidade e algum pudor, ficará assustado ao antecipar o que vão ser as palavras eriçadas que as “entidades” de colarinho engomado lhe vão fazer chover em cima (caso isso aconteça…), no próximo dia 27. Eça vai ter de dar muitas voltas, no túmulo, a tentar destemidamente evitar que lhe remexam nos ossos. E não vale a pena invocar a autoridade de eminências académicas, para justificar o injustificável: os textos e a vida do escritor falam por si. Deixemo-nos de hesitações eruditas e de talvez mas contudo: Eça abominaria ir para o Panteão. Bolas, leiam-lhe a obra com olhos de ver e ler! E deixem-se de pedir a opinião de “autoridades” académicas: consultem os textos! Arre!
 
P. S. – Entrou, ontem, em tribunal. uma Providência Cautelar, para travar esta idiota trasladação. Vamos ver se a festa se azeda.
Eugénio Lisboa, 20.09.2023
Eça de Queirós não era “pessoa de bem”
por Eugénio Lisboa
“Meter Eça no  Panteão, para o amaciar, é o mesmo que ter metido Santana Lopes no governo para o calar. Aos reguilas, é costume querer domesticá-los, dando-lhes presentes, sinecuras, ministérios, academias e penduricalhos. Meter o Eça no Panteão é querer fazer crer que ele não escreveu A RELÍQUIA ou A CAPITAL (talvez a obra-prima do “roman noir”, em Portugal). Panteonizar Eça é intrujar as pessoas, fingindo que o Eça não é o Eça. É querer enterrá-lo, definitivamente, numa falsa “respeitabilidade”, que ele nunca teve nem quis ter (não me perguntem onde ele “diz” isso, toda a sua magnífica obra O DIZ por ele). Não concebo nem um Juvenal nem um Jonathan Swift, num Panteão romano ou inglês, caso estes existissem. Há escritores, músicos, pintores que não são misturáveis com a pompa solene dos Panteões. Não se trata de se não merecerem uns aos outros: trata-se tão só de não serem COMPATÍVEIS, tal como a água e o azeite não serem miscíveis, mesmo sem se discutirem os seus méritos). Eu não vejo o intemerato Swift a ser benzido por um cardeal aparatoso, como não vejo um gato a obedecer a um cão. E gosto muito de gatos e de cães. Molière nunca entrou na Academia e Stendhal também não. A “vieille guarde” de Napoleão disse “merda” ao general Wellington e preferiu ser trucidada a render-se. Eça, diplomata nunca vendido ao discurso suave, jamais se rendeu ao bempensismo. Querem capturá-lo agora, depois de morto. Querem fazer dele “pessoa de bem”, segundo os códigos de comportamento da gente de extrema-direita. A mesma gente a que Bertrand Russell chamava “nice people”, da qual fez o mais demolidor diagnóstico de que tive conhecimento. Eça não era “pessoa de bem”, selon Ventura, como não eram “pessoas de bem” Aristófanes, Juvenal, Voltaire, Molière (sobretudo o de TARTUFO), Bocage, António Vieira, entre outros.
O que um escritor “diz” não é só ou não é, sobretudo, o que ele diz explicitamente. O que ele realmente diz é o que toda a sua obra inculca. Eça não diz ostensivamente que não quer ir para o Panteão, mas toda a sua obra o grita. Isto, que não tem validade jurídica, devia tê-la para os seus herdeiros, se, improvavelmente, tivessem lido, com mão diurna e nocturna, a obra do seu antepassado. Conversei um dia com um descendente de Eça, que tinha Eça de Queirós no seu apelido, o qual descendente me confessou, com toda a candura, não ter lido um único livro do seu ilustre antepassado. Não seria interessante fazer um miúdo escrutínio às leituras dos dezasseis bisnetos favoráveis à trasladação? Aqui fica, grátis, a sugestão.”
Eugénio Lisboa, 26.09.2023
TRASLADAÇÃO DOS RESTOS MORTAIS
DE EÇA DE QUEIROZ PARA O PANTEÃO
por Eugénio Lisboa
“O Supremo Tribunal Administrativo decidiu a favor dos herdeiros de Eça de Queiroz, que desejam a trasladação dos seus restos mortais para o Panteão Nacional. A lei, bem ou mal interpretada por esse tribunal, deu-lhes razão. A razão dos herdeiros, apoiada na lei jurídica, ganhou. A justiça à memória do escritor, não. A lei escrita obriga, muitas vezes, à injustiça. Não é a primeira vez que lei e justiça se opõem. E não será a última. E já vem, pelo menos, dos tempos remotos de Antígona.
O funeral do autor de O CRIME DO PADRE AMARO vai, provavelmente, ter os ritos da trasladação abençoados, com a aprovação comovida dos que herdaram o nome, mas não o espírito, do grande escritor, por um qualquer dignitário da Igreja. E o criador do Conselheiro Acácio vai ter de ouvir, lá no assento etéreo, onde se encontra, as beatas e conselheirais palavras de um qualquer orador que ali vai buscar os seus quinze minutos de glória. Espero que, na urna onde os seus ossos se encontrarem, haja espaço suficiente para ecoar o som da inconfundível gargalhada que ali se vai percutir.
É bem verdade: os grandes homens nem sempre têm os herdeiros que os conhecem e os merecem. Por isso, o grande George Steiner propunha que as viúvas desses grandes homens – no sentido muito lato de “viúvas” – deviam, à cautela, ser lançadas à pira, para evitar desacatos. É uma proposta que merece a mais séria consideração das mentes legislativas.”
Eugénio Lisboa, 20.10.2023 

Sem comentários:

Enviar um comentário