A trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós efectiva-se hoje, após um processo longo de alguma controvérsia.
Eugénio Lisboa discordou dessa trasladação, tendo escrito vários textos , onde vertia essa opinião.
Republicamos quatro desses textos que , juntamente com outros sobre o mesmo assunto, publicámos em 2023.
EÇA
NO PANTEÃO NÃO TEM ADESÃO
por Eugénio
Lisboa
“Somos um país de modas mais ou menos efémeras. De vez em quando,
descobrimos uma moda nova e pomo-la de serviço, sem rei nem roque.
Durante décadas e décadas, nunca ninguém se preocupou com o Panteão, nem sequer
se lembrou de que ele existia. Mas quando alguém se lembrou dele, já nem sei a
propósito de quê ou de quem, o Panteão passou a ser o prato de arroz doce de
todos os banquetes culturais. Estar ou não estar no Panteão, eis a questão.
Quando uma personalidade de algum destaque cultural, científico, desportivo,
militar ou político morria, aqui d’El-Rei que deve ir para o Panteão. À falta
de melhor manjar, a comunicação social pegava neste e os opinantes ganhavam o
dia. Tema qualquer serve, como diria a grande Irene Lisboa.
Propunha-se levianamente despachar para aquele sítio feioso e pouco acolhedor
os restos mortais de alguém, sem realmente se ter em conta se esse teria de
facto sido um desejo do falecido ou dos seus próximos, em representação dele.
Ora não é difícil supor que um Pascoais preferiria, de longe, ficar no Marão,
um Régio, em Vila do Conde, um Ferreira de Castro, em Ossela ou Sintra, um
Camilo, em S. Miguel de Seide ou Porto, um Torga, em São Martinho da Anta
e um Eça, em Tormes. Isto, para dar só alguns exemplos. Se a autorização final
deve caber ao Parlamento, a iniciativa da trasladação deve competir aos
familiares, em consulta com os conhecedores profundos da obra e das
idiossincrasias do falecido.
Pensar que o Panteão é o desejo ardente dos notáveis é ignorar o enorme poder
de atracção que outros locais, carregados de magnetismo emocional, possam ter
tido para o ilustre falecido. Por exemplo, ser enterrado na terra natal, ou na
terra em que se foi feliz ou junto do companheiro ou companheira de toda uma
vida. Tais sítios são polos de atracção muito mais poderosos do que um Panteão
álgido, hostil e escassamente visitado. Um Panteão, perdoem-me a franqueza
rude, é mais um depósito pouco atraente do que um lugar aprazível, para final
de percurso.
A grande maioria dos grandes de França não se encontram sepultados no Panteão,
estão no Père Lachaise ou noutros cemitérios onde preferiram ficar sepultados.
Esta gritaria recente, para se enviar Eusébio, Amália, Sophia, para o Panteão,
faz parte do nosso irredimível provincianismo, que não é capaz de ver para além
de falsos cenários.
Em Portugal, quando verificamos TODAS as personalidades de alto relevo, que
nunca tiveram lugar no Panteão Nacional, apetece mesmo lá não estar.
A anunciada e próxima futura trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós
para o Panteão Nacional é uma perfeita aberração e, ao que sei, não obteve a
devida aprovação de quem de direito. Foi uma ideia oportunista e provinciana de
alguém que é hoje ministro e que provavelmente conhece mal a obra e a
personalidade do autor de O CRIME DO PADRE AMARO, mas conhece bem a arte de se
tornar visível, à boleia de uma péssima ideia.
No Panteão de Paris, estão apenas os restos mortais de 75 personalidades, e a
esmagadora
maioria dos grandes escritores franceses não está lá. Dos escritores do século
XX está lá só UM, André Malraux, e não estão lá Anatole France, André Gide,
Marcel Proust, Henry de Montherlant, Romain Rolland, Paul Valéry, Paul Claudel,
Colette, Georges Duhamel, Roger Martin du Gard, François Mauriac, Julien Green,
Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Aragon, Jean Giraudoux,
Marcel Aymé, Maurice Barrès, Antoine de Saint-Exupéry, Jean Anouilh, Raymond
Queneau, Jacques Prévert, Jules Supervielle, Saint-John Perse, Jean Giono,
Georges Simenon, etc.
NÃO ESTAR no Panteão está portanto longe de ser uma humilhação ou apenas razão
de melancolia. Digamos que a melhor companhia até está cá fora e é cá fora, em
Tormes, que Eça deve ficar. E ficará muito bem: estou certo de que assim o
diria, se pudesse falar.”
Eugénio
Lisboa, 27.04.2023
O
PANTEÃO
por Eugénio Lisboa
O Panteão de um escritor são os seus leitores. Se estes não continuarem a
existir, não há Panteão que os salve. Eça está, há muito e para sempre, no seu
feliz Panteão: os leitores que o admiram e, na sua afiada e inovadora língua,
se banham.
Uma das grandes forças da visão e da estilística de Eça foi sempre uma elegante
e nobre distanciação da pompa, que considerava cómica e apenas bom material
para uma desenfastiada chacota. Quem leu as inesquecíveis e contundentes
páginas de UMA CAMPANHA ALEGRE, se tiver alguma sensibilidade e algum pudor,
ficará assustado ao antecipar o que vão ser as palavras eriçadas que as
“entidades” de colarinho engomado lhe vão fazer chover em cima (caso isso
aconteça…), no próximo dia 27. Eça vai ter de dar muitas voltas, no túmulo, a
tentar destemidamente evitar que lhe remexam nos ossos. E não vale a pena
invocar a autoridade de eminências académicas, para justificar o
injustificável: os textos e a vida do escritor falam por si. Deixemo-nos de
hesitações eruditas e de talvez mas contudo: Eça abominaria ir para
o Panteão. Bolas, leiam-lhe a obra com olhos de ver e ler! E deixem-se de pedir
a opinião de “autoridades” académicas: consultem os textos! Arre!
P. S. – Entrou, ontem, em tribunal. uma Providência Cautelar, para travar esta
idiota trasladação. Vamos ver se a festa se azeda.
Eugénio Lisboa, 20.09.2023
Eça
de Queirós não era “pessoa de bem”
por Eugénio
Lisboa
“Meter Eça no Panteão, para o amaciar, é o mesmo que ter metido
Santana Lopes no governo para o calar. Aos reguilas, é costume querer
domesticá-los, dando-lhes presentes, sinecuras, ministérios, academias e
penduricalhos. Meter o Eça no Panteão é querer fazer crer que ele não escreveu
A RELÍQUIA ou A CAPITAL (talvez a obra-prima do “roman noir”, em Portugal).
Panteonizar Eça é intrujar as pessoas, fingindo que o Eça não é o Eça. É querer
enterrá-lo, definitivamente, numa falsa “respeitabilidade”, que ele nunca teve
nem quis ter (não me perguntem onde ele “diz” isso, toda a sua magnífica obra O
DIZ por ele). Não concebo nem um Juvenal nem um Jonathan Swift, num Panteão
romano ou inglês, caso estes existissem. Há escritores, músicos, pintores que
não são misturáveis com a pompa solene dos Panteões. Não se trata de se não
merecerem uns aos outros: trata-se tão só de não serem COMPATÍVEIS, tal como a
água e o azeite não serem miscíveis, mesmo sem se discutirem os seus méritos).
Eu não vejo o intemerato Swift a ser benzido por um cardeal aparatoso, como não
vejo um gato a obedecer a um cão. E gosto muito de gatos e de cães. Molière
nunca entrou na Academia e Stendhal também não. A “vieille guarde” de Napoleão
disse “merda” ao general Wellington e preferiu ser trucidada a render-se. Eça,
diplomata nunca vendido ao discurso suave, jamais se rendeu ao bempensismo.
Querem capturá-lo agora, depois de morto. Querem fazer dele “pessoa de bem”,
segundo os códigos de comportamento da gente de extrema-direita. A mesma gente
a que Bertrand Russell chamava “nice people”, da qual fez o mais demolidor
diagnóstico de que tive conhecimento. Eça não era “pessoa de bem”, selon
Ventura, como não eram “pessoas de bem” Aristófanes, Juvenal, Voltaire, Molière
(sobretudo o de TARTUFO), Bocage, António Vieira, entre outros.
O que um escritor “diz” não é só ou não é, sobretudo, o que ele diz
explicitamente. O que ele realmente diz é o que toda a sua obra inculca. Eça
não diz ostensivamente que não quer ir para o Panteão, mas toda a sua obra o
grita. Isto, que não tem validade jurídica, devia tê-la para os seus herdeiros,
se, improvavelmente, tivessem lido, com mão diurna e nocturna, a obra do seu
antepassado. Conversei um dia com um descendente de Eça, que tinha Eça de
Queirós no seu apelido, o qual descendente me confessou, com toda a candura,
não ter lido um único livro do seu ilustre antepassado. Não seria interessante
fazer um miúdo escrutínio às leituras dos dezasseis bisnetos favoráveis à
trasladação? Aqui fica, grátis, a sugestão.”
Eugénio Lisboa, 26.09.2023
TRASLADAÇÃO
DOS RESTOS MORTAIS
DE EÇA DE QUEIROZ PARA O PANTEÃO
por Eugénio Lisboa
“O
Supremo Tribunal Administrativo decidiu a favor dos herdeiros de Eça de
Queiroz, que desejam a trasladação dos seus restos mortais para o Panteão
Nacional. A lei, bem ou mal interpretada por esse tribunal, deu-lhes razão. A
razão dos herdeiros, apoiada na lei jurídica, ganhou. A justiça à memória do
escritor, não. A lei escrita obriga, muitas vezes, à injustiça. Não é a
primeira vez que lei e justiça se opõem. E não será a última. E já vem, pelo
menos, dos tempos remotos de Antígona.
O funeral do autor de O CRIME DO PADRE AMARO vai, provavelmente, ter os ritos
da trasladação abençoados, com a aprovação comovida dos que herdaram o nome,
mas não o espírito, do grande escritor, por um qualquer dignitário da Igreja. E
o criador do Conselheiro Acácio vai ter de ouvir, lá no assento etéreo, onde se
encontra, as beatas e conselheirais palavras de um qualquer orador que ali vai
buscar os seus quinze minutos de glória. Espero que, na urna onde os seus ossos
se encontrarem, haja espaço suficiente para ecoar o som da inconfundível
gargalhada que ali se vai percutir.
É bem verdade: os grandes homens nem sempre têm os herdeiros que os conhecem e
os merecem. Por isso, o grande George Steiner propunha que as viúvas desses
grandes homens – no sentido muito lato de “viúvas” – deviam, à cautela, ser
lançadas à pira, para evitar desacatos. É uma proposta que merece a mais séria
consideração das mentes legislativas.”
Eugénio Lisboa, 20.10.2023
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