sábado, 25 de janeiro de 2025

Visão da Madeira

Da viagem que Raul Brandão realizou de Junho a  Agosto de 1924,  de Lisboa  ao encontro do Arquipélago dos Açores, a bordo do navio S. Miguel, registou  o que viu no  maravilhoso livro As Ilhas Desconhecidas.  No regresso,  passou pela Ilha da Madeira , constituindo as notas sobre esta ilha,   o último capítulo do livro.
No início desta obra,  o autor apresenta-a, em poucas linhas, ou seja, em três linhas, apelando os seus amigos dos Açores:
AOS MEUS AMIGOS DOS AÇORES
EM TRÊS LINHAS
"Este livro é feito com notas de viagem, quase sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a frescura às primeiras impressões. Tinha ouvido a um oficial de marinha que a paisagem do arquipélago valia a do Japão. E talvez valha... Não poder eu pintar com palavras alguns dos sítios mais pitorescos das ilhas, despertando nas leitores o desejo de os verem com os seus próprios olhos!... "
   1926
Raul Brandão

VISÃO DA MADEIRA
por Raul Brandão
13 de Agosto
"Nunca mais me esqueceu a manhã virginal da Madeira, e as cores que iam do cinzento ao doirado, do doirado ao azul-indigo – nem a montanha entreaberta saindo do mar diante de mim, a escorrer azul e verde...
Levanto-me a bordo, à procura da luz – de outra luz em que fui nascido e criado e de que começo a sentir cada vez mais a falta. Anseio por a tornar a ver, a luz sem nuvens, a luz doirada, a luz pura e viva. Mas o dia está ainda nublado: as mesmas nuvens, talvez mais leves, em pequenos toques delicados de pincel, e no mar pálido bóiam riscos esbranquiçados. Quatro da tarde: – suponho que vejo lá para o fundo, sobre as ondulações da vaga, uma faixa de outro azul – do azul que se respira. Como despedida, caem ligeiros chuviscos. Para os Açores continuam a amontoar-se nuvens mais escuras: – correm todas, atraídas para as ilhas, como quem tem um destino a cumprir...
Ao fim da tarde começa a erguer-se diante de mim uma coisa azulada e indistinta com uma grande nuvem cinzenta acachapada em cima. O sol que bate nos altos ilumina o cone dum monte e esguicha de entre as névoas sobre a extremidade dum morro quase negro. Já se distinguem as nodosidades disformes da terra e paredões, envoltos em fumaça que entra em rolos pelas fendas abertas da pedra; destacam-se, com majestade, do horizonte plúmbeo. Acentua-se a dureza, as chapadas, as ravinas, os cortes perpendiculares e cor de ferro, adivinha-se o drama que deve ter sido este parto, cheio de convulsões e de desmoronamentos, quando o grande cataclismo dilacerou e desmembrou o continente submerso, deixando patentes, neste resto, feridas que ainda hoje sangram. E nos bocados de cisco, que por acaso caíram e alastraram à beira-mar, agarraram-se meia dúzia de casinhas que têm por pano de fundo a massa espessa erguida logo pelo lado de trás. Seis horas: – tudo avança e se impõe em roxo, com riscos verdes de culturas e cumes doirados de montanhas; para o norte fixou-se uma aglomeração de pastas solenes que escondem a terra.
E a costa caminha, direito a mim, cada vez mais violenta e mais negra. Mete medo. Mal se distinguem as florestas nos altos enevoados, e os vales profundos por onde a água no Inverno deve cair em torrentes. O navio segue encostado à falésia, que deste lado da ilha não tem fundo, mostrando-nos a Madeira cortada por um machado que a abriu de lés a lés, atirando com a outra parte para o fundo do mar. É um bronze severo e trágico, que contrasta com a entrada do Funchal e a outra costa da ilha. Vou olhando para as povoações – Jardim do Mar, Paul do Mar, agarradas às muralhas, onde só distingo escorrências de zinavre. Só o homem! só o homem é que se atreve a cultivar socalcos abertos a fogo na perpendicularidade da falésia! (Vamos tão perto de terra que ouço os galos cantar.) Madalena do Mar, esmagada entre dois morros, que se reflectem em negro no veludo da água, Ponta do Sol e Cabo Girão, que a noite torna mais espesso e maior... Todo este panorama, na cinza do crepúsculo, recortado em negro num céu cor de chumbo, transformado pelas nuvens que baixam ainda mais, e desdobrando-se em sucessivos recortes sobre a tinta parada das águas, assume proporções extraordinárias. Já mal distingo a terra até à ponta desmedida da Cruz, por trás da qual nos espera o porto de abrigo. A cada momento que passa, mais alto e mais escuro se me afigura o paredão que nos intercepta o mundo. Só há uma vaga claridade para o lado do mar; o resto é negrume alcantilado e monstruoso colaborando com a espessura da névoa e o indistinto da noite. Uma luzinha se acende na imensa solidão e na mancha cada vez mais opaca. É o homem, subvertido, duas vezes isolado entre a montanha e o mar. É uma alma. E essa pequenina luz humilde chega a ser para mim extraordinária de grandeza: é uma estrela que me faz cismar.
14 de Agosto
De manhã acordo em terra. Abro a janela e entra-me pela janela dentro o cheiro a trufa. Corro tudo no primeiro momento as vielas animadas, as ruazinhas calçadas de seixos ensebados, onde deslizam carros de bois sem rodas, pintados de amarelo, com toldos frescos e cortinas de ramagem apartadas ao meio. Olho para as casas brancas e amarelas, de beirais caiados de vermelho e gelosias pintadas de verde, que dão ao Funchal um carácter familiar e íntimo. Tudo me surpreende: o calor, a luz forte, o jardim com fetos e um grande jacarandá de flores roxas, arbustos penetrados de satisfação, que na imobilidade e no silêncio vão desfolhando sobre a terra e deixando um charco rubro em roda. Uma gota de água cai ali para o fundo sobre outra água imobilizada.
O ar é um perfume gordo. Sento-me sob os grandes plátanos que nos recebem ao desembarcar do porto – mancha impenetrável e deliciosa. Subo: um largo irregular e depois a igreja, grande cofre de sândalo com doirados e incrustações em madre-pérola. Lá dentro cheira a incenso e a madeira preciosa; cá fora, por cima dos telhados, descobre- se sempre a carcaça denegrida da serra. Vou ao mercado – o mercado atrai-me: pequenino, com duas ou três árvores e uma fonte, todo ele transborda de fruta como um cesto cheio – cachos de bananas amarelas, alcofas de vindima a deitar fora, com damascos, figos pretos sumarentos e entreabertos, a destilar sumo. Toda a fruta aqui é deliciosa e a banana deixa na boca um perfume persistente para o resto da vida. Ao som da fonte de mármore que reluz em fios com uma Leda no alto agarrada ao seu voluptuoso cisne, isto forma um quadrinho todo em manchas coloridas, com sol às mãos-cheias por cima. À primeira vista, confunde: tem a gente de colocar-se a distância, como nas pochadas, para distinguir as uvas doiradas, as papaias, o vermelho dos tomates, as araras e as aves exóticas penduradas nos troncos, e sob os toldos, entre guinchos de macacos de S. Tomé e o falatório cantado do povo da Madeira, as mulheres de lenço branco na cabeça e botas de cano alto e rebuço, que preparam farnéis para a festa do Monte, os homens tisnados e secos, as inglesas de cabelo curto, vestidas de branco, cortadas pelo mesmo padrão que a Inglaterra agora fabrica e exporta para todo o mundo. A vista falha e perturba-se, o cheiro entontece. É preciso meter o pincel para aqueles fundos para dar as sombras roxas com muito azul, o verde-negro das couves, o quadro estonteante orvalhado pela fonte. Reparem como a própria sombra é luminosa e palpita. Com ela palpita o doirado das bananas, o amarelo dos melões, o vermelhão intenso das malaguetas enfiadas em rosário. E se um cesto sai da sombra para a luz, então os frutos faíscam, ardem e adquirem transparências extraordinárias. E a água cai aos pingos, a refrescar o quadro, misturada com sol reluzindo, que pincela aqui, pincela ali, por entre as árvores. Mas para ver a cidade e os subúrbios em conjunto sobe-se ao Pico de Barcelos. À medida que me afasto do centro, vão aparecendo casinhas isoladas entre jardins, e as largas folhas das bananeiras, ainda em botão roxo ou onde pende já todo o regime amadurecido. Lá do alto descobre-se enfim o majestoso anfiteatro. É uma grande concha, que termina dum lado no Pico do Garajau e do outro na Ponta de Santa Cruz, com o fundo de serra ondulado. Os vales e as linhas dos talvegues vêm lá de cima rasgados pelos enxurros sobre um leito de pedras em estilhaços, escorregadias e azuladas. Isto escuro, plúmbeo, porque o céu forra-se de nuvens que envolvem os montes. 
Para o espectáculo completo é preciso escolher a manhã, a tarde, ou os dias puros de Inverno, porque o céu da Madeira anda quase sempre nublado, correndo a fumaceira pela barreira imensa que toma todo o horizonte do lado da terra e desce até ao mar em rampa retalhada de culturas e povoada de casinhas que se vão aproximando e apinhando ao chegarem à cidade branca e sensual. Tudo que se avista, à excepção dos cumes denegridos, foi dividido em hortas, em poios de cana muito verdes, em quintalejos de rama, donde irrompem tufos de bananeira, numa amplidão que entontece e deslumbra. São léguas de fertilidade, de jardins, de campos e culturas, que nos impõem o recolhimento e o silêncio. À direita, a serra estende-se até Câmara dos Lobos. Só depois que me afaço – os olhos afogaram-se-me em azul – é que distingo os riscos violetas das encostas, as vivendas lá no alto entre vinhas e pomares, os prédios rústicos pendurados na rocha e agarrados à montanha, aberta ao meio por um rasgão violento e romântico. O carácter desta paisagem bem o procuro... Atrai-nos por todos os sentidos e só tem um desejo – amolecer-nos e decompor-nos... Espreito os jardins dos palácios, onde tudo se conserva alinhado e correcto, e as casinhas rústicas, que são o meu enlevo. Passo e entrevejo um banco. Às vezes basta um muro caiado com meia dúzia de vasos e flores – para ter uma sensação de encanto que não encontro aqui. Falta uma pontinha de melancolia, aquela alma de certos recantos portugueses que, com dois campinhos, uma igreja, um pinheiral e um sopro de erva, nos comunicam uma impressão deliciosa de repouso e saudade. Faltam-me as manhãs enevoadas e pálidas, os dias loiros e desconsolados com algumas sardas. Esta paisagem não se contenta com duas ou três árvores, o ar fino e pouco azul derretido: é exigente e pesada. É materialista e devassa. Ao mesmo tempo é bela.
As palavras pouco exprimem nestes casos: o principal na Madeira é a luz que cria e tanto amadurece o panorama como os frutos, porque a única imagem que encontro para este conjunto é a dum fruto maduro que tomou pouco a pouco, com os vagares de quem não tem mais que fazer, as cores do Sol, as da manhã e do poente, e que chegou a um estado perfeito que delicia e perfuma ao mesmo tempo. A terra emerge da tinta azul com os tons quentes do ananás, que é o morango dos trópicos – paraíso sem frio nem calor, a que se ajunta ainda o sabor dos vinhos bebidos aos golos e cuja transparência se avalia através do vidro erguendo-o para a luz. A luz! dar a luz, seria tudo, mas só um pintor encontra este doirado – azul diluído que envolve toda a paisagem deitada a nossos pés como as mulheres que oferecem os seios duros com impudor e inocência ao mesmo tempo. As próprias árvores que irrompem de todos os lados – estranha vegetação tropical misturada com todas as outras: ciprestes, cactos, plantas envernizadas, entre grupos de pinheiros mansos e grandes seres imóveis e fortes, estendendo a ramaria sobre as ruas, são de carne. Aprendi na escola aquela santa história dos três remos da Natureza – mas aqui as árvores, vigorosas e duma verdura gorda, pertencem sem dúvida nenhuma ao reino animal.
15 de Agosto
Todas as noites não pude pregar olho. Duas, três horas sem dormir. Na rua passam guitarras e rodam automóveis com mulheres. A noite é uma volúpia e o ar deste clima tropical uma carícia logo que desaparece o Sol. De manhã bato para a serra.
O Funchal para o Sul a costa é quase sempre cortada a prumo: Santa Cruz, e lá no alto o Senhor da Serra; uma fenda enorme por onde entra o mar – Machico, e logo o Caniçal à beira de água e o relevo caprichoso da Ponta de S. Lourenço. Para lá do cabo começa a costa norte, a parte mais selvática, mais verde e talvez a mais bela desta ilha tão variada e decorativa. Ao fim da tarde os morros formidáveis, vistos de bordo, sucedem-se num cenário espesso, que se desenrola em manchas escuras, com um resto de fuligem de sol pegada àquela imensidade, que nessa hora ainda parece mais vasta. 
A Madeira é um maciço de serras cortadas a pique na costa oeste, descendo até ao mar na costa norte e mais cultivado nos vales e gargantas inundados pelas águas. O interior da ilha é montanha em osso, com excepção do Paul da Serra. A parte onde se fazem as culturas ricas, a mais agasalhada e onde não cai neve, a que eles chamam folheto, é o Sul, que produz a cana no litoral e a vinha nas encostas. No Curral das Freiras – cordilheira central –curioso vale de erupção, ravina enorme apertada entre vertentes alcantiladas, com profundidades que metem medo e que vão até oitocentos metros, deparam-se povoaçõezinhas perdidas, o Livramento, a Fajã Escura, o Curral, etc. Este sitio revolvido e dilacerado explica talvez a formação da ilha, onde se encontram mais vestígios de crateras, com indícios de erupções relativamente recentes, nos charcos do porto Moniz, na Caniça, no Caniçal, etc. Desfilam ainda diante de mim as gargantas apertadas, só sombra, e uma encosta iluminada a toda a luz – profundas vertentes alcantiladas, num rasgo a prumo – cerros pedregosos gerados pela erupção, a ribeira que escorre no sopé dos picos Ruivo e Canário – aldeiazinhas tão isoladas no alto de morros – o Pico da Figueira, o Curral, a Fajã Escura – barrancos formando o leito de torrentes – terrenos desolados e pedregosos, por onde deve andar o diabo em dias de vento. Depois, outra vez a paisagem se modifica: os montes figuram castelos arruinados e ferozes da Idade Média. É outra a vegetação – loureiros e o til nos fundos onde encharca a humidade. Desolação e surpresa, contrastes, amplos cenários de serra e mar, como no alto do Senhor da Serra, onde os pulmões são pequenos para se encherem daquela atmosfera perfumada. Agora o sítio triste entre penedia negra, e cheirando a peixe, da Câmara dos Lobos, logo algumas aldeias, à beira de pequenos retalhos cultivados, com molhos de lenha secando à porta das choupanas. Às vezes um açude para a rega, a greta donde escorre a água, e lá para o fundo o abismo, com um espigão tremendo ao lado, que faz sombra e pavor: há sítios destes no Curral onde o sol só entra durante cinco ou seis horas por dia.
Percorro as estradas e os caminhos à primeira luz ou à tarde, quando o Sol se afunda atrás dos montes, aureolando-os. Surpreendo os recantos, as casas enegrecidas das aldeias, a vida rural e a vida marítima e as culturas variadas, porque na Madeira todos os climas são possíveis, desde o do Norte, cheio de frio, até ao tropical – e recolho uma variedade de quadrinhos que só eles formariam um volume compacto...
Para viajar no interior da Madeira só há dois processos cómodos – o da rede suspensa por uma vara às costas de dois homens, que caminham apegando-se a paus, e o carro de bois. Mas a rede faz sono, o carro é melhor. Assente em travessas de madeira, os cursões, este lindo meio de transporte tem dois sofás de verga forrados de paninho com pequenas flores azuis e ê protegido do sol e da chuva pelo toldo com cortinas. Ao lado vai o homem, de aguilhão em punho, que fala aos bois, e à frente um pequeno bojeiro. É o meio mais original de correr as ruas e as estradas, e ao mesmo tempo o mais rápido, porque os bois trotam e galopam quando é necessário. Sem a brutalidade inexpressiva da máquina nem a rapidez estúpida do automóvel, o carro do Funchal, que nos permite ver e comentar, dá-me a impressão de que voga e de que regressámos aos tempos primitivos e heróicos – é conjuntamente carro e barca.
Lá vamos pela calçada, subindo sempre entre castanheiros altos como torres. O castanheiro é uma árvore prodigiosa. Sempre que os encontro, estremeço e paro. Castanheiros e água que corre, água que salta e vem ao nosso encontro pela calçada abaixo e nunca mais nos deixa até lá acima, regando ora uma, ora outra quinta, distribuída por canais – água que vem da serra e todas as manhãs dá os bons-dias casa a casa: – olá, olá, olá! – fala a todas as árvores e presta novo viço às flores exaustas. Castanheiros e palmeiras agitam no ar as comas delicadas. Cheira-me tanto a fruta que espreito para dentro das casinhas impenetráveis: só distingo manchas coloridas de flores e pomares de rainhas-cláudias, que o sol amadurece e trespassa. Um muro dum e de outro lado. E isto ainda não basta: gelosias ciumentas tornam ainda mais cerradas e poéticas as habitações solitárias. Que se passa ali dentro? Um grande amor ou um grande sonho? Isto fez-se para se viver isolado com uma mulher e volúpia, entre as paredes das quintas sumptuosas, donde a verdura trasborda, e até nos casebres, tão ricos como palácios. Duns e de outros se assiste ao espectáculo extraordinário do mar e da serra, num cenário luxurioso e sensual. É um panorama que lembra carne viva; é um panorama, Éden de volúpia, que nos entra pelos olhos e pelo nariz ao mesmo tempo. As ramadas baixinhas, vergando ao peso dos cachos, oferecem-nos as telas doiradas, a folha esguia da cana sobre as leiras, a bananeira atira-nos os cachos amadurecidos ao sol vivo e forte que cai a jorros. Lá em cima apetece a gente deitar-se sob as árvores, penetrar em todas as quintas ainda adormecidas, estender-se em todos os esconderijos verdes que agitam as folhas no ar tépido, no ar mágico, que respiro com sofreguidão e onde anda misturado o cheiro a fruta, o pique a mar, a alma dos vegetais e um silêncio cheio de vida.
– Iá! iá!
O cursão desliza sobre os seixos. O rapaz vai adiante dos bois com o enxota moscas na mão, e ao lado caminha o homem, que fala aos bichos:
– Iá! iá!
Não os aguilhoa, nem é preciso: com um cuidado extraordinário, pondo os pés e retesando os músculos, vão subindo os degraus sucessivos da calçada íngreme que é o caminho do Monte. De quando em quando o rapaz mete o rolo de pano ensebado debaixo do cursão, para as travessas da caranguejola deslizarem melhor.
– Iá! iá!
O largo da Fonte, um grande terreiro e meia dúzia de plátanos enormes, que enchem de majestade, de frescura e de sombra este sítio suspenso entre o céu e o mar, onde fica a igreja do Bom Jesus e aos lados os casarões dos sanatórios. Só estas árvores valem um império.. Por ora não quero olhar para trás... Entramos numa região mais severa, escura de pinheiros, e vou reparando em quem passa a esta hora matinal... Nas primeiras tintas da manhã já as inglesas se deixam escorregar a toda a velocidade pela calçada, dentro do cesto de verga que o homem guia, impele ou detém, manobrando com os pés. Passa por mim uma velha levando os frangos para o mercado nos cursões, rapazes com molhos de lenha e lavradores que empregam o mesmo meio de transporte para as carradas de mato. Entre a fita que decorre depara-se-me um casal antigo, ela feia e encarquilhada, com a velha capa de recortes, ele seco, de barrete de borla na cabeça e a volta com que no Inverno agasalha as orelhas, ambos compenetrados e solenes como quem vai cumprir uma missão. São de outros tempos e comovem-me. Encontro depois pela calçada, entre o ruído das regas – as águas correm sempre na va1eta ao lado do
caminho estreito –, mulheres carregadas à cabeça e apegadas a varas, moços com cestas de batata-doce ou de semelhe, leiteiros com o pau que tem o jeito curvo dos ombros e no qual levam duas bilhas, uma a cada ponta...
Chego ao Terreiro da Luta e aí volto-me. A primeira impressão é só de luz, de luz doirada e de montanha verde que emerge do mar violeta. Poucas tintas e êxtase. Nem uma nuvem nem um átomo de poeira. Uma luz delicada e moça, um ar que se bebe a plenos haustos e ao mesmo tempo não sei o quê de puro e de sensual que sobe à cabeça e que a gente olha com receio e ternura. Esta manhã é um momento delicioso na vida, diante do conjunto perfeito que saiu agora das mãos de Deus e que voga extasiado no éter. É imenso e é nada: é um mundo, e a gota de água suspensa, e que reflecte a luz do universo, dura um segundo e vai cair para sempre. A ilha, com a sua verdura tropical, sai do mar violeta e lá no fundo o Funchal, todo branco, acorda e espreguiça-se ainda tonto de sono..."
Raul Brandão, in As Ilhas Desconhecidas, Quetzal Editora

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