O
carro, a jardineira , a calçada
por
Carlos Drummond de Andrade
“No
momento, a situação nas calçadas de Copacabana está mais ou menos refletida
neste diálogo de mil vozes:
—
Ei, tira essa jardineira daí.
—
Pra botar cano no lugar dela?
—
Tira também o carro, ué.
—
Pra botar aonde? Noutra calçada?
—
Melhor deixar a jardineira e o carro, cada um na sua fatia de calçada.
—
E o pedestre?
—
Esse já foi tirado há muito tempo.
—
E por que não o carro, a jardineira e o pedestre, com lugares marcados?
—
Precisa deixar espaço pros carrinhos de bebê. Bebê ainda não é pedestre.
—
Mas babá é.
—
Então vamos repartir a calçada entre o carro, a jardineira, o pedestre, o bebê
e a babá.
—
Deixando uma área pras cadeiras dos bares de praia, no calçadão.
—
Assim não dá. Só se houver revezamento.
—
E meu pequinês, onde é que meu pequinês vai parar quando tiver necessidade?
—
Afinal de contas, a calçada é ou não é do povo?
—
Não. É dos bacanas que moram nos edifícios e não deixam a gente estacionar na
calçada.
—
Mas o cano também é dos bacanas.
—
Só que de outros bacanas que não moram nos edifícios daquela calçada.
—
Então é uma guerra entre bacanas.
—
Eu não sou bacana. Sou povo e estou pagando meu carro financiado. Onde é que eu
vou estacionar?
—
Em cima das flores.
—
O senhor parece que não gosta de flor. Prefere gasolina.
—
Ora, meu amigo, quem gosta de flor plante elas no vaso, dentro de casa. Eu
também gosto de música, mas não vou curtir meu som na calçada.
—
A jardineira é medonha, o cano é funcional.
—
Sem essa. O cano polui, e toda planta é legal.
—
Bobagem, a Celurb apreender as jardineiras. Os próprios canos liquidam com
elas.
—
Se fosse só com as jardineiras. Um deles, em cima do passeio, mandou minha tia
para o hospital.
—
Eu não digo que calçada é muito perigoso? O mais seguro é não sair de casa, sob
pretexto algum.
—
É, mas cano na calçada tem uma vantagem. Não deixa bicicleta atacar. Bicicleta
é fogo: olha só esta cicatriz na minha canela.
—
Não estou interessado na sua canela. Quero saber é quem vence esta parada: a
maquina ou o homem?
—
A máquina também faz parte do homem, é prolongamento dele, do corpo dele. O
homem está dos dois lados, brigando, chateando-se.
—
Não terá um terceiro lado, o lado da paz?
—
Tem sim, vovó. Tem a Praça da Paz, que fica em Ipanema.
—
Engraçadinho. Vê lá se tem paz na Praça da Paz. Tem é cano.
—
Viu? Foi a conta de fundir o Estado do Rio com o Rio, e carros de Barra do
Piraí vem atochar nossas calçadas. Só carioca é que não tem direito.
—
Separatista! As calçadas também devem ser fundidas!
—
Ah, meu Deus! Eles estão roubando nossas jardineiras! Essas folhagens! Nossos mini espaços verdes!
—
Numa hora dessas, com o rapa levando as jardineiras, médico nenhum é bobo de
aparecer!
—
As jardineiras estão impedindo o progresso do País!
—
Amanhã plantarão bosques na calçada e botarão leões e tigres, jacarés e
cascavéis lá dentro, pra devorar a gente!
—
Sempre achei que esse negócio de flor na calçada é sabotagem contra a indústria
automobilística nacional!
—
Perdão, mas alecrim e espada-de-são-jorge são muito mais nacionais do que os
automóveis fabricados por aí!
—
Pelo visto, a confusão é geral.
—
A confusão já era. Isto é a super confusão.
—
Qual, o Rio de Janeiro não existe.
—
Agora é que você percebeu isso? “
Carlos
Drummond de Andrade, in
Boca de luar”, Editora Record, Rio de Janeiro (RJ), p 37
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