segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Tempo irrecuperável

Tempo irrecuperável
por Irene Lisboa
“Hoje, em que tudo desapareceu da sua vida, e se vê aleijada, e não pode ter a mínima confiança em si própria, nem sequer nos outros, ainda se acha capaz de sorrir, que é o que está fazendo, às loucuras da sua incipiente imaginação.
A imaginação a consumiu e a perdeu, tem disso a certeza, a desencaminhou, talvez.
No entanto, ela sabe que escrevendo isto se contradiz interiormente. Que pensa o contrário em muitas outras ocasiões.
Mas que somos nós mais que uma contradição permanente?
A verdade espreita-nos, ora do seu avesso, ora do seu direito. A verdade, ai, ai...
Enfim, a imaginação ora nos socorre, ora nos desequilibra.
O doce fantasma de Maria Antónia, que tanto a excitava, também lhe tornaria patente, e amarga decerto, a inferioridade da sua posição.
Era filha de pais incógnitos, a velha lho dava a entender sempre que podia; não tinha direitos; os seus antigos direitos aquelas estranhas lhos tinham usurpado. A dona Felismina, que podia fazer a dona Felismina, tão acabadinha e sem vontade própria? Ela não tinha nada, já, nem ninguém.
* * *
Ia-se abeirando o Entrudo.
O Entrudo do campo, como ela o conheceu, enfadonho e estúpido. Andavam os cães com latas atadas ao rabo, cainhando, e os gaiatos atrás deles a fazer uma grande matinada. Os homens, esses punham-se dos altos a lançar pulhas, de mão – na boca para reforçar a voz:
– Lá vai mais esta... e é que vai e torna a ir...
Para remate saía uma achincalhada qualquer, dirigida especialmente às mulheres.
O Cocó perdia as suas noites nas brincadeiras, armadas num lugar e noutro.
Era trigueiro, de olhos pretos, grandes, ramalhudos. Parece que prendia as saloias mais ariscas.
Nestas brincadeiras, mesmo no pino do Inverno se morria de calar. As mulheres levavam os filhos com elas, até os de mama, e os homens não largavam o varapau, em que tão de uso ensarilhavam a perna. O Cocó, sobre duas ripas altas, que lhe armavam a um canto, tocava a fio. A dança, quando se armava, num círculo cada vez mais apertado, toda aos encontrões, era bem suada e pisada. Mas quem deixaria de correr léguas e léguas só para apanhar uma brincadeira?
A Delmira não as perdia. Nos dias que se lhes seguiam a velha escutava-a. Até a um bailarico da vila a rapariga desta vez foi. E lá calhou encontrar o filho de uns seus antigos patrões.
Que conversas teriam eles tido? E que peitas se seguiriam depois entre a velha, a Delmira e ele? O certo é que o rapaz, pouco tempo passado, se aventurou de bicicleta até à quinta para a ver, a ela...
– É para a menina, não no entende? – bichanava-lhe a Delmira. Eu sei, eu sei.
A mesma Delmira lhe meteu nas mãos uma carta dele, dias decorridos.
* * *
Este era o primeiro homem que ela via andar para cima e para baixo à sua espreita; desmontar-se da bicicleta e levá-la docemente à mão...
Já fizera os catorze anos havia dois meses. E ele tinha vinte e um.
Um homem, quanto a ela, que por isso a amedrontava. O Antoninho da Varosa, em sua mente, é que estava numa idade juvenil e luminosa, ideal, uma idade que os acompanhara sempre, desde a mais tenra infância, e os identificava.
Aquele não passava de um homem; até usava uma capa de estudante, sem o ser.
Também tinha o cabelo encaracolado e quase loiro: defeitos, insuficiências... para ela, decepções. A cor morena é que era a bonita!
Bagatelas... mas só vistas à distância de uma vida, como agora.
Mas para que as há-de escamotear, anular, se lhe ocorrem? Não faz um romance, entretém-se. E hoje, afinal, que lhe interessa, que procura ela? Entender, melhor que há perto de cinquenta anos, talvez, a importância de tais bagatelas, das coisas mínimas. Arrimando-se à memória, à insuficiente, infiel memória. De que se tiram farrapos de coisas, tão cheia de luzeiros como de trevas... Que sacará ela da incrível poeirada que poisou sobre a sua recuada infância e adolescência? Oh! nada afinal que se compare com o claro, vivo miado do seu actual gato; esse, sim, que é incisivo, verdadeiro. O bicho mia-lhe à porta e ela sabe que lha há-de abrir.
Porém, antes de dar os precisos passos para a porta já o está vendo, perfeito.
Ou perfeitamente.
Quanto às outras coisas...
* * *
Têm-lhe dito que o seu gato é arraçado de gineto. E será.
De facto, ele mostra-se bravio, brincando arranha e os seus belos olhos deitam por vezes chispas ferinas. Mas de tão presente que é, de tão integrado na sua vida actual, ela entende-o, desconfunde-o até de qualquer outro pelo simples miado.
É certo que o amor que lhe tem e a graça que lhe acha se tornam especialmente actuantes, lho afirmam.
Afirmam! Palavra própria ou imprópria?
As palavras, ai, as palavras... e dá-lhe vontade de esfregar as mãos, como a dona Mariquinhas, ou de dar uma volta com a direita no ar... as palavras são o que nós queremos que elas sejam, falam à nossa moda, à moda de cada um de nós; a gramática delas é sempre muitíssimo pessoal.
Aquela dona Mariquinhas, dos seus vinte anos, ser encantador! Bom, bom, vê que já está misturando alhos com bugalhos... Que se desmanda, que se precipita.
E poisa a pena. Retoma-a enfim, para assentar:
Aquela idade perdida, aquela gente, aquele tempo à força de os querer fazer reviver mata-os, matá-los-á, sem dúvida. Não há lá palavras para eles, nem gramática válida. Perderam-se.
A capa, a cor do cabelo de um homem, que é, que são? e como lembrá-los? dar-lhes o tom?
* * *
Júlio Brás era o nome do seu namorado. Feio nome.
Ela não engraçava com o nome, nem nunca gostou dele. Das suas feições mal se lembra. Aliás não são as feições em conjunto nem em separado o que melhor assinala uma criatura. É o jeito do cabelo, o olhar, qualquer coisa da boca, o riso, a seriedade, o andar e até o som da voz.
Mas dele que lhe ficou, em suma? Quase só uma espécie de repugnância. Não física, em especial, mas total. Hoje morta...
Lembra-se de correr pela quinta fora até o mirante da estrada, quando o ouvia passar de bicicleta. A velha ou a Delmira a preveniam, ou ela mesmo o sentia.
Chegava ao tal poiso e sentava-se no murinho, de lado; ele parava na estrada, em baixo. E nada tinham que se dizer... Ela dava-lhe então, atirava-lhe uma rosinha de toucar ou um martírio do caramanchão.
Tão estranhos se sentiam um ao outro que ainda hoje pensa que a pura imaginação é que alimenta o amor dos adolescentes, e que o pobre Júlio não tinha o poder de lhe despertar a sua.
De outras vezes falavam-se por entre as grades de um portão do meio da quinta. Ele beijava-a na boca e ela permitia-o, sem o mínimo interesse nem efusão. Cerebralmente considerava aquilo próprio do amor. Todos os romances dos caixotes de Esperancinha descreviam o beijo como a mais fina substância do amor.
Mas quando o namorado, um dia, sob a larga capa, lhe segurou a mão e a puxou ao seu corpo, ela teve uma sensação inqualificável. Nunca, nunca a revelou a ninguém. Pensa que são coisas que toda a vida se guardam, se reservam. Foi uma sensação aflitiva, afrontada, de ofensa e de repugnância. O amor, aquele que lhe andava na cabeça, pelo menos, era de uma outra natureza.
* * *
Entretanto o pai, desconfiado ou prevenido, tentava surpreendê-los. E uma bela tarde, destas do começo da Primavera em que já se estava (encontravam-se ambos ao portão fechado), mostra-se-lhes o velho, de cima. Não explodiu imediatamente, mas a ela o seu aspecto aterrou-a e deu-lhe asas.
O portão de dois batentes, a que se encostavam, abrangia e terminava, entre altos muros, uma bela rua que atravessava a quinta quase a pique e a dividia em dois largos lençóis de vinha.
Correr por aquela rua acima como uma lebre, foi o que fez.
O pai, com a verdasca atrás das costas – o seu braço torcido o demonstrava – seguia-a andando. Mas não a apanhou nem capaz foi de dar com o seu esconderijo: uma arvorezinha nova ou anã, de ramos a rojar pelo chão, sob que se agachou. Ali passou o resto do dia e parte da noite. Não tinha medo.
Deu-lhe a ternura, a excitação aplacada, para pensar na árvore, que havia de amar toda a vida...
Tanto pensou nela, ou nela se incorporou com a sua paixão romanesca, própria da idade, ou do temperamento, que a arvorezinha lhe ficou gravada em mente. A árvore e o sítio. Julga que se à quinta tornasse os identificaria.
Tola! A árvore estará velha, como ela... De uma outra velhice, é certo.
O sítio era o das cerejeiras, que apenas ali havia. Por entre carreiros pouco pisados partia-se de lá para um canavial basto, um canavial que falava. Que gemia e tinha outros dons do seu conhecimento, suspeitos ou reais. Mais adiante, nos braços de uma árvore terrivelmente esgalhada, de folha dura, uma árvore sem trato e até hostil, bem podia o pobre Absalão ter sido colhido pelos cabelos. Sempre que os passos a levavam para aqueles lados assim pensava. A fatal fuga do Absalão, tão formoso! A má árvore...
* * *
Procuraram-na. Andava a dona Adélia, acompanhada pelo Luís das Canas com uma laterna acesa, a espreitar por entre as cepas, já enfolhadinhas de novo, as moitas e os esconsos dos muros. Ela saiu do seu esconderijo, mas a velha atemorizou-a:
– Cala-te, cala-te... Foi lá um dia de juízo... Se não fosse a dona Esperancinha!
Ela é que deitou água naquela fervura toda...
Entraram as duas pela porta da cozinha, e pé ante pé seguiram pelo corredor, virando a uma escada, que a meio dele se abria e dava para o sótão, grande e dividido como um casa.
– Tu agora dormes aqui, mas não podes fazer bulha, vê lá! A Delmira cá te vem com a comida.
* * *
Naquele sótão, tão seu conhecido, se guardava a fruta, os antigos caixões largos e fundos, carunchosos, de grandes fechos arrombados, dados ao desprezo, os baús encoirados e pregueados, recheados de velharias, e até uma dobadoira nunca servida desde que ela se entendia! Uma dobadoira cuja derradeira serventia era a de encorpar ou materializar histórias muito antigas, vagamente poéticas, que lhe contavam umas senhoras pobres de Vila Franca. Duas irmãs acanhadas, destas visitas que se perpetuam nas casas, toleradas pelas famílias de certa abastança; artistas de mãos, especiosas, acomodatícias.
Aquelas histórias, as figuras unidas das duas irmãs, uma mais alta e outra mais baixa, de fato escuro e de cara macilenta, – bem como uma espécie de flor, uma dália, que elas faziam e desfaziam de um lenço, como os prestidigitadores, – na hora presente, assomadas assim de súbito à sua memória, só lhe parece surdirem dela como um graça, uma partida, um gracejo furtivo do tempo morto. Enfim, uma negaça do tempo irrecuperável.”
Irene Lisboa,  in Voltar Atrás para Quê?, Editorial Presença, 1994

Sem comentários:

Enviar um comentário