A Europa ficara em cacos
por Eugénio Lisboa
"Acabávamos de
sair de uma guerra (lá fora, é certo, mas acompanhada, de perto, “cá dentro”). Nesse contexto, tocaram‑me, profundamente, dois
livros, dos tais que meu pai me trouxe quase à socapa: um deles, Arco‑Iris, de Wanda Wassilewska,
sobre a invasão da URSS pelas tropas de Hitler. O livro – um romance – foi
galardoado com o “Prémio Staline” de 1943,o que não o impediu de ser traduzido
e publicado no Portugal de Salazar, pela “Livraria Tavares Martins”, do Porto,
em 1945. E de ser um extraordinário êxito de vendas nos Estados Unidos da
América. Wanda Wassilewska era uma jornalista e escritora polaca, nascida em
Cracóvia, em 1905, e filha de um ilustre filólogo polaco. Depois de um
brilhante curso universitário, dedicou‑se, por algum tempo, ao ensino, mas o
jornalismo atraiu‑a definitivamente. Quando os alemães invadiram a Polónia,
Wassilewska atravessou o seu país, refugiando‑se na União Soviética. E foi aí,
como jornalista, que acompanhou os exércitos russos, como correspondente de
guerra. Dessa experiência, nasceu Arco‑Iris, poderoso fresco da tragédia horrorosa que é a guerra e
que foi aquela guerra. O livro tem cenas quase intoleráveis,
não fugindo a nenhum dos horrores que o homem é capaz de congeminar para lançar
os outros homens no inferno. Não sei se terá ficado como um dos grandes “romances
de guerra”, como, por exemplo, o Nada de Novo na Frente Ocidental, de Erich Maria Remarque ou o Capitaine Conan, de Roger Vercel, ambos relativos à
1.ª Guerra Mundial. Em mim, o impacto foi fundo e durável. Eis outro livro, que
sobreviveu a todos os baldões da sorte, a todas as viagens e tumultos da vida.
Tenho‑o aqui, à minha frente, no momento em que escrevo estas linhas. Copio‑vos
uma breve passagem, para que fique convosco, qual medalha que fica para a vida:
“No dia do
combate em que foi morto nevara abundantemente, um desses nevões que paralisam
e petrificam instantaneamente os cadáveres. Nesse dia nada teriam podido
arrancar aos mortos. E contudo, tinham‑lhe tirado tudo: o capote, as botas, as
calças e até as peúgas; apenas lhe deixaram o dólman e as cuecas azuis, que se
tinham fundido de tal maneira com o corpo que dir‑se‑ia serem manchas de giz azul
sobre madeira negra; contrastando com a face enegrecida, os pés tinham‑se
mantido brancos, duma brancura argilosa, pouco natural.”
Isto não é
imaginação de romancista: ninguém é capaz de imaginar estas coisas. É o
resultado de se ter estado lá e de se ter visto."
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