sábado, 18 de janeiro de 2025

Ter lá estado e ter visto


A Europa ficara em cacos
por Eugénio Lisboa
"Acabávamos de sair de uma guerra (lá fora, é certo, mas acompanhada, de perto, “cá dentro”).  Nesse contexto, tocaram‑me, profundamente, dois livros, dos tais que meu pai me trouxe quase à socapa: um deles, Arco‑Iris, de Wanda Wassilewska, sobre a invasão da URSS pelas tropas de Hitler. O livro – um romance – foi galardoado com o “Prémio Staline” de 1943,o que não o impediu de ser traduzido e publicado no Portugal de Salazar, pela “Livraria Tavares Martins”, do Porto, em 1945. E de ser um extraordinário êxito de vendas nos Estados Unidos da América. Wanda Wassilewska era uma jornalista e escritora polaca, nascida em Cracóvia, em 1905, e filha de um ilustre filólogo polaco. Depois de um brilhante curso universitário, dedicou‑se, por algum tempo, ao ensino, mas o jornalismo atraiu‑a definitivamente. Quando os alemães invadiram a Polónia, Wassilewska atravessou o seu país, refugiando‑se na União Soviética. E foi aí, como jornalista, que acompanhou os exércitos russos, como correspondente de guerra. Dessa experiência, nasceu Arco‑Iris, poderoso fresco da tragédia horrorosa que é a guerra e que foi aquela guerra. O livro tem cenas quase intoleráveis, não fugindo a nenhum dos horrores que o homem é capaz de congeminar para lançar os outros homens no inferno. Não sei se terá ficado como um dos grandes “romances de guerra”, como, por exemplo, o Nada de Novo na Frente Ocidental, de Erich Maria Remarque ou o Capitaine Conan, de Roger Vercel, ambos relativos à 1.ª Guerra Mundial. Em mim, o impacto foi fundo e durável. Eis outro livro, que sobreviveu a todos os baldões da sorte, a todas as viagens e tumultos da vida. Tenho‑o aqui, à minha frente, no momento em que escrevo estas linhas. Copio‑vos uma breve passagem, para que fique convosco, qual medalha que fica para a vida:
“No dia do combate em que foi morto nevara abundantemente, um desses nevões que paralisam e petrificam instantaneamente os cadáveres. Nesse dia nada teriam podido arrancar aos mortos. E contudo, tinham‑lhe tirado tudo: o capote, as botas, as calças e até as peúgas; apenas lhe deixaram o dólman e as cuecas azuis, que se tinham fundido de tal maneira com o corpo que dir‑se‑ia serem manchas de giz azul sobre madeira negra; contrastando com a face enegrecida, os pés tinham‑se mantido brancos, duma brancura argilosa, pouco natural.”
Isto não é imaginação de romancista: ninguém é capaz de imaginar estas coisas. É o resultado de se ter estado e de se ter visto."

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