O 7.º ano ia ser o último ano de vida em Lourenço Marques
por Eugénio Lisboa
"O 7.º ano ia, pois, ser o último
ano de vida em Lourenço Marques. Mas, naquelas idades, um ano é muito mais do que
um ano: é uma eternidade. No princípio de Setembro (1946), quando as aulas
começaram, eu sabia, de um saber que não era bem sentir, que, dentro de 12
meses, partiria para Lisboa. Mas 12 meses, como digo, era muita coisa e
portanto eu não sentia ainda a “angústia das partidas”, de que fala o Gide nas Nourritures
Terrestres. Lá muito mais para diante, essa coisa horrível iria acontecer.
Mas, dali, ainda não conseguia vê‑la com muita nitidez! Havia que
fazer o 7.º, com disciplinas novas como Filosofia e
Ciências Geográficas (e também Biologia que, com um senhor doutor Rosa Pinto,
muito alto, muito forte e muito sério – e com ar de muito estudioso – ameaçava
ser coisa de se lhe tirar o chapéu). Felizmente que a Matemática, essa maravilha,
continuava com o “Bimbo” – e isso era festa garantida! Nas Fisico‑Quimicas,
continuava o “Chinó”,
mas perdera‑lhe, por completo o medo e o respeito: não custava nada
ser melhor do que ele, todo confinado na mesma rotina estreita e chafurdando
sempre nos mesmos problemas, tirados sorrateiramente do livro do Mahler! Por fora, fartava‑me
de fazer problemas e ler livros em que o “Chinó” nunca meteria o dente!
Foi um ano bom e cheio e com muita
festa intelectual. Com o sumptuário Cardigos em Geográficas e a diserta e bem
disposta Maria Luísa Soares em Filosofia, mais a Matemática do “Bimbo” – aquilo
não podia ser melhor. Mas não quero ser injusto: o Rosa Pinto, cheio de proa e
altura, afigurava‑se antipático, mas
era um óptimo professor, extremamente actualizado, no campo da Biologia, que
expunha com grande precisão e até sedução. Assumia, porém, sem querer, um ar
distante, frio, magistral, de implacável castigador: não dava confiança. Ainda
no primeiro período do ano (que terminava em Dezembro, no dia 18), o Rosa
Pinto, que tinha ficado interinamente como reitor, introduziu uma novidade
alarmante: pontos de apuramento, sem aviso prévio – o professor chegava, um
belo dia, e dizia, como quem castiga: hoje há exercício de apuramento! Houve um
autêntico levantamento em todo o liceu! Os activistas mexeram‑se
e organizaram uma greve, que foi bem sucedida. As aulas paralisaram por
completo. Embora a medida decretada não se aplicasse aos alunos do 7.º ano,
resolveu‑se que entraríamos na
greve, por razões de solidariedade. Embora eu tivesse dúvidas, quanto à
metodologia – deveríamos, pensava eu, ter pedido “conversações” com o reitor,
antes de se decretar a greve – entrei nela, sem hesitar e até com alguma
alacridade. E paguei a factura devida. O reitor recuou (acho que muitos
professores eram contra a medida), mas, no final do período, o meu
“procedimento” foi classificado como “sofrível”, em vez do “bom” tradicional.
Com esta “nódoa” no “comportamento”, ou antes, no “procedimento”, embora, na
classificação total das disciplinas, eu tivesse um excedente de 14 valores
sobre a soma necessária para o “Quadro de Honra”, aquele “sofrível” impediu‑me,
pela primeira e última vez, de fruir essa “honra”. Em 21 períodos obtive essa
distinção 20 vezes, tendo falhado uma, por grevista... Confesso que me não sinto
mal. O meu pai portou‑se à altura: não me repreendeu, mostrou até um certo orgulho e foi ao liceu
manifestar a sua indignação: que tudo aquilo era uma vergonha e uma completa
falta de senso. Para uma pessoa pacífica e respeitadora das autoridades, aquela
“saída” do meu pai surpreendeu‑me. Também não
foi bonito ver a mal disfarçada satisfação de alguns colegas (os clássicos “da
corda”), ao verem‑me, ao fim de tantos anos, apeado do pedestal. O rufia
do Alto‑Mahé,
afinal, não era imbatível...
Confesso que tudo isso me afectou pouco: o
desprezo que me merecia essa rezinga era total. Por outro lado, o 17 a
Matemática e o resto era consolação que bastava! De aí em diante, seria só a
subir – e isso me chegava! Nesse primeiro período, o meu “Quadro de Honra” foi outro:
ter ido levantar a minha pasta, que ficara encostada à parede da sala de aula,
mesmo nas barbas do “Chinó”, que me sorria com um pasmo aparvalhado, enquanto
lhe voltava as costas e me reunia aos grevistas (de alguns dos quais nem
gostava por aí além, diga‑se de passagem). A greve foi
prolongada, pelo número de faltas que vejo na caderneta, embora uma dessas
faltas deva corresponder a um dia que fiquei doente com uma otite agudíssima.
Não foi esta a minha primeira
greve, mas, na anterior, o reitor, que era o Eurico Cabral e não o Rosa Pinto,
não retaliou. Aliás, o motivo foi outro. As agências tinham noticiado o fim da guerra
e nós exigíamos feriado comemorativo da vitória dos aliados. O reitor aguardava
instruções do Governador‑Geral e, como elas não vinham, nós
perdemos a paciência. Eu, em particular: que diabo, sempre contribuíra para a
vitória, quando destruíra, à fisgada, a montra da loja do Bonk! Lembro‑me
bem – as coisas que a nossa memória regista
com particular acuidade! – lembro‑me bem, dizia, de que, nesse
primeiro dia de greve, fui para casa com o meu colega Alberto Parente, que me
mostrou uma revista, na qual se falava de dois autores que eu não conhecia:
Jean‑Paul
Sartre e Federico Garcia Lorca. O que se dizia da vida e
morte do escritor espanhol e da filosofia do francês, no contexto de uma greve
que devia encanitar o governo – trazia‑nos um gostoso sabor de sedição. Senti‑me, pela primeira vez,
underground! Por fim, relutantemente, acho eu, lá veio a ordem para tolerância
de ponto: com o dia de greve, encaixámos dois feriados. Soube que nem nozes. E
desta vez, como disse, não houve punições: o reitor, como nós, gostava de
comemorar o afocinhanço das tropas do Eixo!”
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula
- Memórias- I - Lourenço Marques
(1930-1947), Editora Opera Omnia, Novembro de 2012, pp. 166-169
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