quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Senti‑me, pela primeira vez, underground!

O 7.º ano ia ser o último ano de vida em Lourenço Marques
 por Eugénio Lisboa
"O 7.º ano ia, pois, ser o último ano de vida em Lourenço Marques. Mas, naquelas idades, um ano é muito mais do que um ano: é uma eternidade. No princípio de Setembro (1946), quando as aulas começaram, eu sabia, de um saber que não era bem sentir, que, dentro de 12 meses, partiria para Lisboa. Mas 12 meses, como digo, era muita coisa e portanto eu não sentia ainda a “angústia das partidas”, de que fala o Gide nas Nourritures Terrestres. Lá muito mais para diante, essa coisa horrível iria acontecer. Mas, dali, ainda não conseguia vê‑la com muita nitidez! Havia que fazer o 7.º, com disciplinas novas como Filosofia e Ciências Geográficas (e também Biologia que, com um senhor doutor Rosa Pinto, muito alto, muito forte e muito sério – e com ar de muito estudioso – ameaçava ser coisa de se lhe tirar o chapéu). Felizmente que a Matemática, essa maravilha, continuava com o “Bimbo” – e isso era festa garantida! Nas Fisico‑Quimicas, continuava o “Chinó”, mas perdera‑lhe, por completo o medo e o respeito: não custava nada ser melhor do que ele, todo confinado na mesma rotina estreita e chafurdando sempre nos mesmos problemas, tirados sorrateiramente do livro do Mahler! Por fora, fartava‑me de fazer problemas e ler livros em que o “Chinó” nunca meteria o dente!
Foi um ano bom e cheio e com muita festa intelectual. Com o sumptuário Cardigos em Geográficas e a diserta e bem disposta Maria Luísa Soares em Filosofia, mais a Matemática do “Bimbo” – aquilo não podia ser melhor. Mas não quero ser injusto: o Rosa Pinto, cheio de proa e altura, afigurava‑se antipático, mas era um óptimo professor, extremamente actualizado, no campo da Biologia, que expunha com grande precisão e até sedução. Assumia, porém, sem querer, um ar distante, frio, magistral, de implacável castigador: não dava confiança. Ainda no primeiro período do ano (que terminava em Dezembro, no dia 18), o Rosa Pinto, que tinha ficado interinamente como reitor, introduziu uma novidade alarmante: pontos de apuramento, sem aviso prévio – o professor chegava, um belo dia, e dizia, como quem castiga: hoje há exercício de apuramento! Houve um autêntico levantamento em todo o liceu! Os activistas mexeram‑se e organizaram uma greve, que foi bem sucedida. As aulas paralisaram por completo. Embora a medida decretada não se aplicasse aos alunos do 7.º ano, resolveu‑se que entraríamos na greve, por razões de solidariedade. Embora eu tivesse dúvidas, quanto à metodologia – deveríamos, pensava eu, ter pedido “conversações” com o reitor, antes de se decretar a greve – entrei nela, sem hesitar e até com alguma alacridade. E paguei a factura devida. O reitor recuou (acho que muitos professores eram contra a medida), mas, no final do período, o meu “procedimento” foi classificado como “sofrível”, em vez do “bom” tradicional. Com esta “nódoa” no “comportamento”, ou antes, no “procedimento”, embora, na classificação total das disciplinas, eu tivesse um excedente de 14 valores sobre a soma necessária para o “Quadro de Honra”, aquele “sofrível” impediu‑me, pela primeira e última vez, de fruir essa “honra”. Em 21 períodos obtive essa distinção 20 vezes, tendo falhado uma, por grevista... Confesso que me não sinto mal. O meu pai portou‑se à altura: não me repreendeu, mostrou até um certo orgulho e foi ao liceu manifestar a sua indignação: que tudo aquilo era uma vergonha e uma completa falta de senso. Para uma pessoa pacífica e respeitadora das autoridades, aquela “saída” do meu pai surpreendeu‑me. Também não foi bonito ver a mal disfarçada satisfação de alguns colegas (os clássicos “da corda”), ao verem‑me, ao fim de tantos anos, apeado do pedestal. O rufia do Alto‑Mahé, afinal, não era imbatível... Confesso que tudo isso me afectou pouco: o desprezo que me merecia essa rezinga era total. Por outro lado, o 17 a Matemática e o resto era consolação que bastava! De aí em diante, seria só a subir – e isso me chegava! Nesse primeiro período, o meu “Quadro de Honra” foi outro: ter ido levantar a minha pasta, que ficara encostada à parede da sala de aula, mesmo nas barbas do “Chinó”, que me sorria com um pasmo aparvalhado, enquanto lhe voltava as costas e me reunia aos grevistas (de alguns dos quais nem gostava por aí além, diga‑se de passagem). A greve foi prolongada, pelo número de faltas que vejo na caderneta, embora uma dessas faltas deva corresponder a um dia que fiquei doente com uma otite agudíssima.
Não foi esta a minha primeira greve, mas, na anterior, o reitor, que era o Eurico Cabral e não o Rosa Pinto, não retaliou. Aliás, o motivo foi outro. As agências tinham noticiado o fim da guerra e nós exigíamos feriado comemorativo da vitória dos aliados. O reitor aguardava instruções do Governador‑Geral e, como elas não vinham, nós perdemos a paciência. Eu, em particular: que diabo, sempre contribuíra para a vitória, quando destruíra, à fisgada, a montra da loja do Bonk! Lembro‑me bem – as coisas que a nossa memória regista com particular acuidade! – lembro‑me bem, dizia, de que, nesse primeiro dia de greve, fui para casa com o meu colega Alberto Parente, que me mostrou uma revista, na qual se falava de dois autores que eu não conhecia: Jean‑Paul Sartre e Federico Garcia Lorca. O que se dizia da vida e morte do escritor espanhol e da filosofia do francês, no contexto de uma greve que devia encanitar o governo – trazia‑nos um gostoso sabor de sedição. Senti‑me, pela primeira vez, underground! Por fim, relutantemente, acho eu, lá veio a ordem para tolerância de ponto: com o dia de greve, encaixámos dois feriados. Soube que nem nozes. E desta vez, como disse, não houve punições: o reitor, como nós, gostava de comemorar o afocinhanço das tropas do Eixo!”
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula -  Memórias- I - Lourenço Marques (1930-1947), Editora Opera Omnia, Novembro de 2012, pp. 166-169

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