Escrevi e publiquei neste blog , em Maio de 2022, esta crónica que reproduzo . Pertencia a uma série de crónicas a que dei o título de Crónicas da Infâmia. De lá para cá , a infâmia continua e numa reprodução alucinante. A dor e a estupefacção têm sido de tamanha intensidade que deixaram a própria infâmia uma palavra menor para dar nome à trágica hecatombe que os tiranos deste mundo têm provocado. Morrem diariamente pessoas, seres humanos de todas as idades, a maioria morta pelo ódio desses abjectos ditadores. Quase quatro anos se passaram desde que o maléfico ditador da Rússia invadiu a Ucrânia. Nesse tempo, a crueldade reinou e a soberba da capitulação do povo ucraniano nunca esmoreceu em Putin. Vê , agora, a oportunidade maior, através da ajuda do seu admirador dos USA, de vergar a Ucrânia aos seus apetites de grandeza territorial. A astúcia e a crueldade escondem-se no esgar matreiro deste antigo serviçal da KGB.
Oxalá a Ucrânia e a Europa saibam discernir com lucidez.
Metalúrgica de Mariupol em pleno ataque pelas tropas russas
Crónicas da Infâmia
10 . Da crueldade assassina
O homem de ontem morreu no de hoje,
o de hoje morre no de amanhã.
Plutarco, De E apud Delphos,18Sofrer é um momento muito prolongado.
Não podemos dividi-lo por estações. […]
Para nós o tempo não progride. Ele gira.
Parece circular em torno de um centro de dor.
Oscar Wilde, De Profundis
De acordo com a tradição popular , o tempo mede-se. É , por tal, mensurável. Tentar tecer qualquer tratado sobre o tempo ou evocar as diversas teorias quânticas que sobre ele circulam, postuladas por clarividentes cientistas, não é esse o propósito. Não, o que me traz e quase me obriga a reescrever é o horror que chega diariamente e se arrasta sem fim, desde 24 de Fevereiro, dia em que a Ucrânia anunciou ter sido alvo de 203 ataques russos, durante doze horas. Tempo que é real , que matou, feriu, destruiu, arrasou. Tempo que gira, circula de ontem para hoje e num amanhã que se anuncia igual ou mais lúgubre.
Por mais que se prometam conversações e se formem mesas de negociação , o fumo da paz não eclode e nem o Vaticano é capaz de o propiciar. O Papa Francisco anunciou ter comunicado a Putin, ao vigésimo dia desta infame invasão assassina, a disponibilidade para um encontro em Moscovo. Putin , lá do fundo do inferno, não ouviu, não respondeu, talvez de tão ensimesmado com o satânico barulho da fornalha e o diabólico prazer de a encher. A miragem de um novo Império russo alteia-lhe o ferino coração e agiganta-o perante a aniquilação dos mais fracos. São assim os déspotas, os monstros que se julgam imortais e acima do Homem.
E os dias sucedem-se num terrífico devir que por mais que nos magoe , continuam indiferentes ao peso da mágoa de cada um. E se ficamos incomodados neste limbo de espectador , não sei como será viver nessa guerra. A morte persegue feroz em desafio constante à vida que se deseja preservar. É uma luta titânica, em estado de autêntica vulnerabilidade e sofrimento.
E há quem argumente que se busca a guerra e não a paz. Como é possível encontrar a paz , quando se é invadido em brutalidade e desmesura no seu próprio país.
Vladimir Pastourkhov, (historiador e filósofo a viver em Londres) recorda que quando esta catástrofe eclodiu , ela não lhe era inesperada . A tendência do regime russo para a fascização desde 2011 ( quando se sentira um esboço de revolução liberal popular, NDLR), era evidente. E acrescenta: -" Publiquei em 2012 uma série de artigos , recebidos então como as meditações de um louco, porque escrevi que a natureza do regime tinha mudado e que a guerra com a Ucrânia estava em marcha . Esta guerra da Ucrânia é a consequência inevitável da evolução do regime putinista, que tendo medo da revolução e desejando preservar o seu poder, utiliza a energia das massas, desviando-as para uma agressão exterior. Putin teve sempre a mesma ideia: preservar o seu poder. E soube expulsar a revolução para o exterior à custa da guerra, para dirigir a energia das massas para o estrangeiro."
A finalidade está exposta e confirmada. Putin tem como ambição a conquista de novos territórios. A Rússia, que sonha , terá de ser o antigo império perdido. E a Ucrânia é o território que lhe serve agora. A guerra feita pelo seu exército faz da sua pequenez, uma força. Violar, esquartejar, esventrar, envenenar é o alimento que o sustenta . Sendo um espírito fraco encontra na tirania a sua fortaleza .
Chegámos ao sentimento do não valor da existência quando compreendemos que ela não pode interpretar-se, no seu conjunto, nem com a ajuda do conceito de fim, nem com a do conceito de unidade, nem com a do conceito de verdade. Não chegamos a nada, não logramos coisa nenhuma dessa espécie, dizia Friedrich Nietzsche.
Que resta, então, à Ucrânia? Render-se e entregar o seu território aos apetites sanguinários de Putin?! Que fazer perante tal iniquidade? O mundo observa. A Ucrânia resiste, com o seu território a ser destruído , qual Cartago saqueada, incendiada, quase regada com o mesmo sal.
E as pessoas que sobrevivem em caves, em bunkers improvisados, nos túneis húmidos e agora fétidos de uma metalúrgica bombardeada , fustigada pela cruel cegueira das bombas, na cidade destruída de Mariupol? E as crianças sem infância , à mingua dos dias de fome? E os idosos, frágeis, vulneráveis entre ruínas ? Que fará o mundo? Espera que todos morram? Que tudo soçobre para Putin reinar.
Não imagino como se possa baixar os braços à sórdida voragem deste facínora invasor.
Será que a história da humanidade pode ser escrita com tal infâmia?!
Que Deus não salve Putin. Viva a Ucrânia.
4 de Maio de 2022
Maria José Vieira de Sousa


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