sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Páginas do meu Diário

Eugénio Lisboa
Eugénio Lisboa será sempre um príncipe das Letras. Digo-o , roubando-lhe as palavras que ele utilizou para classificar o seu amigo e grande poeta David Mourão Ferreira. Fascina em todos os registos quer sejam de poesia ou de prosa  como as Memórias - Acta Est Fabula, espraiada em sete volumes ou os Diários - Aperto Libro. À medida que se estabelecem laços com esses registos , vamos entrando num mundo rico e fascinante. O memorialista ou o diarista alarga-se por outros horizontes e vai produzindo verbetes ou entradas que são puros ensaios de uma soberba profundidade. Acompanhando-o, concluímos , inequivocamente, que se trata de um precioso documento de quase um século e de um registo singular de um homem culto, erudito e de uma grandiosa sensibilidade .Com Eugénio Lisboa, nunca será possível esgotar-se, em nós, o prazer da descoberta , da aprendizagem, do encantamento. Reforça e valida, em magnificência, as palavras de Jorge Luís Borges: A verdade é que ninguém passa por nossa vida em vão. A diferença é que algumas pessoas são possibilidades de felicidade, outras de lições.
Do seu tempo de Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal em Londres, extraímos estes saborosos verbetes.

Páginas do meu Diário  (1986)
por Eugénio Lisboa
17.8.86 – (…) “O passado é um país estrangeiro”, assim começa o romance de L. P. Hartley, The Go-Between. Eis um belo modo de se começar um romance, tão belo como a célebre frase de abertura do romance de Proust ou como o lindíssimo abrir do romance de Stendhal: “A cidadezinha de Verrières pode passar por uma das mais bonitas do Franco-Condado.” Mas a frase de Hartley é, das três, a mais pungente. Ponho-me a olhar o passado, em Lourenço Marques, no Largo João Albasini ou, um pouco mais tarde, na Estrada do Zixaxa – e tenho quase dificuldade em aceitar o percurso desde então. Há rostos já sem nome e nomes a que não ponho um rosto.  E sinto-me quase como se, ao esquecer o pormenor vivo desse passado, eu tivesse cometido um crime e fugido, a salvo, para um país diferente. O passado é um país estrangeiro… Nesse país estrangeiro, ficou enterrado o meu pai e o meu irmão mais velho. De certo modo, eu próprio ali fiquei enterrado, ou, pelo menos, uma parte importante de mim.

19.8.86 – Ontem, almoço no Arts Club, com Bernard Denvir, responsável pela revista Arts and Artists. Denvir vai a Portugal dentro de dias e pensa dedicar um número da sua revista mensal às artes plásticas do nosso país. É gago e faz caretas penosas para conseguir “espremer” as palavras.
Conversa franca, à bâtons rompus. Pergunto-lhe, para fazer conversa, quais são, em sua opinião, os melhores pintores ingleses da última geração. “Sei lá!”, responde, quase agastado. “Vejo, por ano, seis mil quadros e duas mil esculturas. Odeio arte!” Di-lo com a convicção de quem está realmente farto e já não está para fingir. Diz ter a certeza de que mais de 90% das pessoas que vão a exposições detestam arte e só ali vão por razões de fachada. Diz que não tem a mínima certeza de que os seus critérios de avaliação tenham algum valor. Acho que tem perto de 70 anos e foi professor de arte. Pergunto-lhe se alguma vez pintou: faz uma careta horrível, sacode negativamente a cabeça, com veemência, e repete: “I hate art!”
Quantos críticos de arte sentirão o mesmo sem serem capazes de o dizerem em voz alta?

Malraux a Edmund Wilson: “Sartre n’a jamais inventé rien!” E ainda: “Sartre n’a aucun sens de la politique!” Contar isto ao Vergílio Ferreira: vai ser bonito por a opinião vir de quem vem…
 
(...)
13.9.86 – Fiz há pouco 56 anos. Aos 56 anos, Milton completou o seu Paradise Lost, que publicou dois anos depois. Jean Renoir, com a mesma idade, dirigiu The River, filme que me fascinou. Handel produziu o Messias. Cézanne foi “descoberto” aos 56. Com esta idade, William Gilbert publicou, em 1600, o seu famoso livro Of the Magnet and Magnetic Bodies, no qual se usa, pela primeira vez, a palavra “electric”.  (…) Erwin Schrodinger publicou o seu (…) O que É a Vida. E William Oughtred publicou, pela primeira vez, quando os 56 lhe bateram à porta (1631), os signos matemáticos de x, sen, cos e tg. Haja, pois, esperança!
Ontem à tarde, visita de um editor inglês, por causa de um livro da autoria de uma controversa princesa inglesa, de origem alemã. Diz-me que o livro não foi escrito por ela, mas sim por um “ghost writer”, para o caso, um padre. Dá-me notícias atrás de notícias. Por exemplo, o libro Battle of Britain, do autor de “best-sellers” (thrillers), Len Deighton, não foi escrito por ele, mas sim por um jornalista inglês conhecido. Deighton não tinha tempo (os seus compromissos correntes davam para os próximos seis anos), mas aceitaria um “ghost” que considerasse meritório. Assim se fez: o “ghost” escreveu o livro e recebeu 6000 libras. Deighton não o escreveu e recebeu 30 000 (pelo nome, claro)..
Outro caso, este, mais picante: o Prémio Nobel William Golding, autor do celebrado romance Lord of the Flies, foi convidado, logo após a recepção do Prémio – e enquanto a aura deste durava – a escrever um livro de uma viagem pelo Nilo. Aceitou mas exigiu um “steamer”, durante uma semana, só para ele e para a mulher. Deram-lho, fez a portentosa viagem, não tirou um único apontamento, o tempo foi passando e o livro acabou por ser escrito – como sendo de Golding – pelo editor (o tal que me visitou e contou a história), o qual suou, para lhe imitar o estilo. O livro saíu sob o nome do recente laureado do Nobel… Assim vão os editores, assim vão os autores e assim vai o público que os compra e os lê.
Pergunto: o que pode levar um homem conhecidamente rico, como Golding, a fazer uma coisa destas? Resposta do editor: o dinheiro. Quanto mais têm, mais querem e não olham a meios.
Pergunto-lhe: “E Graham Greene?” Não, Greene escreve os seus próprios livros, sabe ortografia, sabe gramática, exige pouquíssima intervenção editorial. Grande parte dos autores editados não sabe uma coisa nem outra e menos, ainda, como se constrói um livro: os manuscritos têm que ser reescritos de uma ponta à outra.. Para exemplificar, puxa da mala um dáctilo-escrito sobre jardins do Islão, indicando-me períodos inteiros a modificar, parágrafos a cortar, coisas a acrescentar… Vai apontando com o dedo: “This is rubbish. All this is rubbish. Out. Out. Out.” Por que me terá contado tudo isto? Terá adivinhado que escrevo um diário?"
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias -IV- Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo. Londres. (1976-1995), Editora Opera Omnia, Outubro de 2014, pp.349, 350, 351, 352

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