sábado, 30 de agosto de 2025

Nesse verão

5 - Nesse Verão
por Maria José Vieira de Sousa
"Crescera e a hora da entrada no colégio já estava marcada há muito. Nesse verão, que antecedeu a sua entrada, foi uma azáfama na casa. A costureira sob as orientações da mãe ou da Augusta ia fazendo o enxoval que o colégio exigia. Por vezes tinha de fazer provas, já que algumas peças de vestuário e do uniforme eram também da responsabilidade das alunas. Assim, procuravam-na pela quinta , obrigando-a a perder momentos preciosos que estava tentando prolongar na companhia de Antero.
Nesses dias, os dois, sentindo aproximar-se a separação, tinham ingenuamente celebrado um acordo de ligação eterna. Deitados na relva, entrelaçando as mãos e fechando os olhos murmuraram o juramento que Antero preparara e lhe ensinara:
Sol que nos aqueceis, Luz que nos guiais,
e vós, Terra, Ar, Água que nos amais
vede e guardai este laço que mantemos
de juntos nosso destino sempre vivermos.
Acreditavam que, embora temporariamente separados pela força da entrada no colégio, estariam destinados um ao outro para sempre. Para eles sempre e eterno tinham o mesmo significado. Naquela idade, a percepção da dimensão temporal era diferente e construída frequentemente pelo devir cénico das “estórias” que recheavam os livros que iam lendo! O universo da quinta era então povoado por mil e uma aventuras onde os grandes heróis enfrentavam múltiplas adversidades que, após duras e prolongadas lutas, acabavam por vencer, alcançando gloriosas vitórias. E assim viveriam eternamente unidos e felizes.
Era um mundo fantástico e fantasioso que lhes enchia a cabeça e os fazia correr um para o outro, a cada dia que passava. A saudade era permanente quando não estavam juntos. Como seria estar longe?
E a saudade da separação começava a desenhar-se à medida que a partida iminente para o colégio se ia impondo pela presença cada vez mais volumosa das malas e das caixas que se iam amontoando na sala de costura! Até lençóis e toalhas lá tinham sido colocados com o seu nome bordado a ponto de cruz e com um estranho número 74 que viria mais tarde a descobrir ser o seu número de identificação no colégio.
Chegara a temer nunca mais voltar à quinta, pois o enxoval era tão grande que mais parecia ser o da despedida definitiva. A mãe sossegou-a, quando lhe mostrou a lista imensa que o colégio lhe enviara.
Naquele dia, acordara ainda mais cedo. Foi à cozinha e Benta, que já acendera o enorme fogão de lenha, assustou-se com a sua chegada repentina. Pediu-lhe silêncio e roubando uma fatia de pão do cesto que já estava em cima da grande mesa rectangular da cozinha, dirigiu-se para a porta. Entendendo o que a sua menina pretendia fazer, Benta encheu de imediato uma caneca com o leite ainda morno obrigando-a a bebê-lo.
- Não se demore menina! Hoje é dia de partir cedo. O carro já está carregado, pelo que os senhores não tardam a aparecer para a levarem ao colégio.
Sem mais para ouvir, desatou a correr para o encontro, junto ao rio. Diria adeus às árvores, aos pássaros, às flores, ao rio e decerto perderia o coração na hora de deixar a quinta e Antero, o seu amigo.
Antero já lá estava. Também ele acordara mais cedo e veio esperá-la. Tinha um presente: uma pulseira entrançada em fio de arame com feno e caules verdes que fizera em segredo. Trazia o cheiro da terra. Guardá-la-ia para sempre.
Foi dolorosa a despedida. Os irmãos ficaram a acenar no portão com a Augusta e a Benta que teimavam em disfarçar a lágrima que tentava  assomar no canto dos olhos. Até os cães pareciam choramingar de cabeça baixa e orelhas murchas não reagindo sequer à passagem do carro.
Soube, então, que a saudade era uma dor que lhe esmagava o coração. Encostou-se à mãe e fechando os olhos chorou para dentro para que ninguém visse. E era assim que, ao longo da vida, choraria!
Nessa noite, grande e dominadora, aprendeu também que a saudade seria a sua mais constante e fiel companheira.
O colégio era enorme. Foi entregue à Directora que declarou velar por ela e zelar para que a sua aprendizagem se desenvolvesse eficazmente.
Os pais prometeram visitá-la logo que voltassem à grande cidade, bem como escrever-lhe semanalmente. Quando eles partiram, uma vez mais sentiu o coração doendo !
Como naquele tempo os estabelecimentos de ensino tinham separação de sexos , aquele colégio só admitia raparigas.
A recepção às alunas era feita progressivamente das mais novas, que chegavam pela primeira vez ao colégio, até às mais velhas dos anos cimeiros de ensino que, por serem já experientes e conhecedoras das normas que o regulavam, tinham apenas uma sessão de boas vindas
Com o tempo foi apreciando o primeiro dia de entrada no colégio pela vivacidade e informalidade que continha o reencontro com as colegas. Todas traziam segredos e acontecimentos para partilhar. E havia muita alegria que catalisava a tristeza da saudade da partida ! Era sempre o primeiro dia do resto dos dias longe de casa."
Maria José Vieira de Sousa, in O Lugar, memórias de um romance, pp. 21-23, Junho de 2008

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