sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Os inquietos

 
I. O prelúdio de Hammars
        Um mapa da ilha
 
Só podia utilizar mapas imaginários
ou as suas recordações de mapas reais,
mas isto bastavalhe.
John Cheever — «O Nadador»
 
“Ver, recordar, compreender. Tudo depende de onde te encontras. Na primeira vez que fui a Hammars, tinha pouco mais de um ano de idade e nada sabia acerca do grande amor revolucionário que me tinha levado até ali.
Na verdade, havia três amores.
Se existisse um telescópio que pudéssemos apontar para o passado, eu poderia dizer: olha, aqui estamos nós, foi assim que aconteceu. E sempre que duvidássemos se aquilo que recordo correspondia à verdade, ou se aquilo que recordas correspondia à verdade, ou se aquilo que aconteceu de facto aconteceu, ou se sequer existíamos, poderíamos juntar‑nos e espreitar o passado.
Numero, ordeno e catalogo. Afirmo: eram três amores. Tenho agora a idade que o meu pai tinha quando nasci. Quarenta e oito anos. A minha mãe tinha vinte e sete, e na altura parecia em simultâneo muito mais velha e muito mais nova do que era.
Não sei qual dos três amores chegou primeiro. Mas começo com o que surgiu entre os meus pais em 1965 e que terminou antes de eu ter idade suficiente para o recordar.
Vi fotografias e li cartas e ouvi‑os falar do tempo que passaram juntos, e ouvi também relatos de outras pessoas, mas a verdade é que não se pode saber muito sobre a vida das outras pessoas, em especial dos próprios pais, e sobretudo se esses pais fizeram questão de transformar a sua vida em histórias que desde então contam com uma naturalidade que advém de não se preocuparem minimamente com o que é verdade e o que não é.
 O segundo amor é um prolongamento do primeiro e concerne um casal de namorados que se tornaram pais e a rapariga que era sua filha. Amava os meus pais sem reserva e dava como certa a sua existência, como a das estações do ano ou dos dias, ou das horas, um era a noite e o outro era o dia, um terminava onde o outro começava, eu era filha dela e filha dele, mas, tendo em conta que eles também queriam ser crianças, facilmente se percebe que nem sempre era fácil ser sua filha. E há mais uma coisa. Eu era filha dele e filha dela, mas não era filha deles, nunca fomos três, e, quando vejo a pilha de fotografias que tenho à minha frente na mesa, não encontro uma única imagem em que apareçamos os três juntos. Ela e ele e eu.
Essa constelação não existe.
Queria tornar‑me adulta o mais depressa possível, não gostava de ser criança, tinha medo das outras crianças, da sua inventividade, da sua imprevisibilidade, das suas brincadeiras, e, para expiar a minha própria infantilidade, costumava imaginar‑me capaz de me dividir e de me transformar em várias pessoas, de me converter num exército de liliputianos, e nós tínhamos muita força — éramos pequenos, mas éramos muitos. Dividia‑me e marchava de um para o outro, do meu pai para a minha mãe e da minha mãe para o meu pai, tinha muitos olhos e muitos ouvidos, muitos corpos magros, muitas vozes agudas e muitas coreografias.
O terceiro amor. O lugar. Hammars, ou Djaupadal, como se costumava chamar antigamente. Era o lugar dele, não dela, não das outras mulheres, não dos filhos, não dos netos. Durante algum tempo, senti que pertencíamos àquele lugar, que era o nosso sítio. Se é verdade que todos têm um lugar — não é verdade, mas se o fosse —, aquele seria o meu lugar, em todo o caso mais meu do que o nome que me deram, porque passear por Hammars não era tão angustiante quanto passear pelo meu nome. Reconhecia o cheiro do ar e o mar e os rochedos e o modo como os pinheiros se dobravam ao vento.
Dar um nome. Dar e receber e ter e viver e morrer com um nome. Gostaria de ter escrito um livro sem nome. Ou um livro com muitos nomes. Ou um livro onde todos os nomes fossem tão normais que os esqueceriam de imediato, ou que soassem tão semelhantes que fosse impossível distingui‑los uns dos outros. Os meus pais deram‑me (após muita hesitação) um nome, mas nunca gostei desse nome. Não me reconheço nele. Quando alguém me chama pelo nome, sobressalto‑me como se me tivesse esquecido de me vestir e só então me apercebesse de que estava na rua e rodeada de pessoas.
No outono de 2006 aconteceu algo que posteriormente entendi como um eclipse — um escurecimento.
A astrónoma Aglaonice, ou Aganice de Tessália, como também é conhecida, viveu muito antes de o telescópio ser inventado, mas conseguiu, apenas com a ajuda dos seus olhos, calcular com precisão quando ocorreriam os eclipses lunares.
Consigo atrair a Lua até mim, disse ela. Sabia aonde e quando ir.
Sabia o que iria acontecer e quando. Estendia os braços ao céu, e o céu ficava negro.
Nos seus Preceitos Conjugais, Plutarco adverte para o perigo daquilo a que chama bruxas, como Aglaonice, e instiga os recém‑casados a ler, aprender e a manterem‑se informados. Uma mulher que domina a geometria, escreve ele, não sentirá necessidade de dançar. Uma mulher instruída não se deixa ludibriar pela insensatez. Uma mulher sensata e com conhecimentos de astronomia rir‑se‑á à gargalhada sempre que outra mulher a tente convencer de que é capaz de atrair a Lua até si.
Ninguém sabe ao certo quando Aglaonice viveu. O que sim, sabemos, e que Plutarco de algum modo reconheceu, ainda que se lhe tenha referido com tanta condescendência, é que ela era capaz de prever quando e onde ocorreriam os eclipses lunares.
Lembro‑me perfeitamente de onde estava, mas falta‑me a capacidade de prever o que quer que seja. O meu pai era um homem pontual. Quando eu era criança, abriu o relógio de pêndulo que havia na sala e mostrou‑me o seu interior. O pêndulo. Os pesos de latão. Exigia pontualidade a si mesmo e a todos os outros.
No outono de 2006 restava‑lhe pouco mais de um ano de vida, mas eu ainda não o sabia. Nem ele. Esperava‑o junto ao celeiro de pedra caiado de branco e com a porta vermelho‑ferrugem. O celeiro tinha sido convertido em cinema e estava rodeado de campos de cultivo, muros de pedra e umas poucas casas. Não muito longe situava‑se o lago Dämba, um local com uma grande riqueza ornitológica: entre as espécies que o habitavam, contavam‑se os abetouros, os grous, as garças‑reais e os maçaricos‑reais.
Íamos ver um filme. Quando estava com o meu pai, todos os dias víamos um filme, exceto ao domingo, e tento agora lembrar‑me que filme íamos ver nesse dia. Talvez o Orfeu, de Cocteau, um filme tão rico em imagens oníricas e pungentes. Não sei, não me lembro.
«Quando faço um filme», escreveu Jean Cocteau, «é como um sonho, e eu sonho dentro desse sonho. Só as pessoas e os lugares do sonho fazem sentido.»
Tentei uma e outra vez recordar que filme era, mas não me consigo lembrar. Os olhos demoram vários minutos a habituar‑se à escuridão, costumava dizer o meu pai. Vários minutos. Por esse motivo, combinávamos sempre encontrar‑nos às três menos dez.
Nesse dia, o meu pai só chegou às três e sete, ou seja, dezassete minutos atrasado.
Não houve nenhum sinal. O céu não escureceu. O vento não sacudiu as árvores. Não se levantou nenhuma tempestade e as folhas não rodopiaram ao vento. Uma trepadeira‑azul sobrevoou os campos cinzentos em direção ao pântano — de resto, estava tudo em silêncio, o céu nublado. As ovelhas, a que na ilha chamavam sempre cordeiros, independentemente da sua idade, baliam não muito longe  dali, como sempre haviam feito. Quando dou meia‑volta e olho em redor, tudo está como é habitual.
O meu pai era tão pontual que a sua pontualidade vivia dentro de mim. Se cresces numa casa junto à linha de caminho de ferro e acordas todas as manhãs com o comboio que passa a toda a velocidade perto do teu quarto, e que faz tremer as paredes, as pernas da cama e o caixilho da janela, acabas por acordar todas as manhãs com o comboio que passa dentro de ti, mesmo que já não vivas na casa junto à linha.
Não foi o Orfeu de Cocteau. Talvez tenha sido um filme mudo. Costumávamos sentar‑nos cada um na sua cadeira verde e deixar que as imagens, nunca acompanhadas pela música de um piano, flutuassem sobre a grande tela. Ele dizia que se perdera toda uma linguagem com o desaparecimento do cinema mudo. Teria sido A Carruagem Fantasma, de Victor Sjöström? Era o seu filme preferido. Para ele, um só dia equivale a cem anos na Terra. Tem de deambular noite e dia para atender aos assuntos do seu amo. Lembrar‑me‑ia se tivesse sido A Carruagem Fantasma. A única coisa que recordo desse dia em Dämba, além da trepadeira‑azul a sobrevoar o campo, é que o meu pai chegou atrasado. Isso custou‑me tanto a entender quanto às seguidoras de Aglaonice que a Lua tinha desaparecido. As mulheres que, de acordo com Plutarco, não sabiam astronomia e se deixavam ludibriar. Aglaonice disse: Atraio a Lua até mim, e o céu escurece. O meu pai chegou dezassete minutos atrasado e tudo foi como sempre e nada como antes. Atraiu a Lua até ele e o tempo descarrilou. Deveríamos encontrar‑nos às três menos dez, e já passavam sete minutos das três quando estacionou diante do celeiro. Tinha um jipe vermelho. Gostava de conduzir depressa e de fazer muito barulho. Tinha grandes óculos escuros cujas lentes pareciam asas de morcego. Não me deu nenhuma explicação. Não se apercebeu de que chegou atrasado. Vimos o filme como se nada tivesse acontecido. Foi a última vez que vimos um filme juntos.”
Linn Ullmann, in Os Inquietos, Relógio D’Água, 2023
 
Sobre o Livro:
"Os Inquietos é um livro sobre as conversas e recordações que a narradora preservou do seu pai, o realizador e encenador Ingmar Bergman.
Os Inquietos é uma elegia sobre a memória e a perda, a identidade e a arte, e também sobre a linguagem e as narrativas que compõem uma vida. E aceita que «não se pode saber muito sobre a vida das outras pessoas, em especial dos próprios pais».
Ela era a mais nova de nove filhos. Todos os verões, quando era ainda rapariga, visitava-o na sua casa de pedra rodeada de bosques e papoilas, na remota ilha de Fårö, no mar Báltico, onde ele procurara refúgio nos seus últimos anos de vida.
Quando se tornou adulta, ele era já um velho. Bergman considerou a hipótese de escrever um livro sobre os seus últimos anos, porque receava perder a memória e a lucidez. Tentaram escrevê-lo em conjunto. Ela fazia as perguntas e ele respondia, já com dificuldade.
Sete anos depois da morte de Bergman, Linn Ullmann encontrou coragem para escutar as gravações que fizera e preencher as lacunas com as suas memórias, recriando a história do seu pai, da sua mãe e de si própria.

Sobre a Autora:
Linn Ullmann, nascida em Oslo, é autora de seis romances, todos eles premiados, publicados em cerca de trinta línguas.
Os Inquietos, considerado um clássico moderno na Noruega, foi durante vários anos um dos livros mais vendidos na Escandinávia.
Ullmann vive atualmente na capital norueguesa.
Livro: Os Inquietos
Autor: Linn Ullmann
Tradução: João Reis
EAN: 9789897833571
Data de publicação: 22.06.2023
Nº de páginas: 352
Preço: 17,55€
Editora: Relógio D’Água

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