sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

PRODUÇÃO DE VIDAS LIVRES

 
por Guilherme d' Oliveira Martins
 «Morte e Democracia» de José Gil (Relógio d’Água, 2023) é constituído por um conjunto de ensaios que nos permite compreender as virtualidades e as fragilidades da organização da sociedade contemporânea.
 
PRODUÇÃO DE VIDAS LIVRES
A procura da identificação do que torna possível a produção de vidas livres e singulares numa “democracia imanente” constitui o objetivo primordial do estimulante conjunto de ensaios, da autoria de José Gil, Morte e Democracia (Relógio d’Água, 2023). De facto, a necessidade de construir um “plano de imanência” do campo político ao social é condição primeira para a formação de multiplicidades singulares que compreendam a complexidade e o pluralismo. Se hoje falamos justamente de crise de democracia, torna-se indispensável realizar uma reflexão aprofundada sobre as razões para uma perniciosa tendência para a fragilização de uma sociedade que se deseja baseada na liberdade e na cidadania. Não se trata, assim, de reduzir os termos desta reflexão fundamental sobre a sociedade, sobre o Estado de direito e sobre uma cidadania inclusiva a aspetos apenas formais, mas antes de considerar a democracia como um sistema de valores, capaz de integrar e de incluir uma cidadania de respeito mútuo, sem interferências de fantasmas ilusórios, incapazes de suscitar a compreensão de quem somos como seres humanos livres e iguais em dignidade e direitos. Compreende-se, pois, os quatro momentos escolhidos por José Gil, a partir da demonstração dos paradoxos do pensamento da morte e dos postulados que comprometem a sua consideração ponderada e complexa: a imortalidade da alma, a natureza dos espectros que emergem e a noção de Abismo inerente ao termo da vida. O segundo momento reporta-se ao laço indelével entre a crença da imortalidade, assumida por certos grupos-tipo de organizações políticas que se afirmam através de referências da morte, enquanto “experiências do impensável”, reportadas à violência e ao terror (que Hannah Arendt encontra nas raízes do totalitarismo). Segue-se a análise das correspondências entre afetos, formações sociais e políticas e modos de existência dos mortos como referências de negação e de injustiça. E, chegados à quarta reflexão, temos a exploração da possibilidade de substituir a transcendência ilusória pela imanência na prática política da democracia. Nestes quatro pontos, trata-se de situar a vivência democrática, não na lógica de uma sociedade ancorada em referências de eternidade, de suposta perfeição ou de infalibilidade, mas na procura de referências baseadas na concreta relação de pessoas de carne e osso entre si. Para o filósofo, trata-se de denunciar “a dinâmica política atual que as democracias conservadoras afrontam constantemente, sob formas novas, por todo o planeta, ressurgências de velhos e fantasmáticos autoritarismos, fascismos e mesmo teocracias”. Dir-se-ia que encontramos então a situação inversa do “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Para José Gil há a verificação de que as forças que querem a imanência se encontram reprimidas e encarceradas nas estruturas sociais e políticas estabelecidas”. E tal contração reduz as possibilidades de autonomia, responsabilidade e autogoverno. Contudo, “o plano da imanência da democracia tem uma consistência frágil”. Gianni Vattimo, há pouco desaparecido, chegou a conclusão próxima.
A IMANÊNCIA NA PÓLIS
O que distingue as democracias formais dos sistemas autocráticos é contraditório. As primeiras podem favorecer a transcendência do poder do Estado e das instituições, os segundos procuram a dissolução do Estado na figura do líder que se projeta no plano social. Daí a necessidade de distinguir uma imanência de “fusão” por contraponto a uma imanência de “reversibilidade” (o respeito é biunívoco), que encontramos em Claude Lefort e na consideração por este de que o simbólico se torna fundamento da democracia representativa. De facto, o simbólico é finito, está ao nosso alcance. O poder democrático é transitório e efémero na sua indeterminação. A institucionalização de um “lugar vazio” do poder, confere aos cidadãos uma igualdade de direitos na participação no poder democrático. “O vazio criador de possíveis, dispensa a posição da imortalidade”. E Lefort fala, assim, de “institucionalização do conflito”, ou seja, da superação da violência do enfrentamento dual do corpo-a-corpo., que obriga a uma “mediação apaziguadora”, a transformação do conflito aberto em conflito de partidos políticos e de debates jurídicos. Se a vendetta mediterrânica gera uma espiral de confronto e de violência, a mediação permite considerar o tempo e a ponderação. A literatura convoca, assim, os que “partiram”, extraindo daí mais força para se poder viver. É o que encontramos em Platão, no Górgias e no Fédon, mas também nas grandes sagas como a Epopeia de Gilgamesh, Ilíada, Odisseia, Eneida, ou a Divina Comédia, onde se criam “personalidades espectrais”, que projetam o passado no presente. E é oportuna a referência nesse tema a artistas como Lourdes Castro e Jorge Martins nas representações espectrais… Também em Ésquilo, Sófocles, Shakespeare ou Racine encontramos a atração poderosa que as figuras do passado exercem sobre os vivos. O “presente alimenta-se do passado, de um passado móvel, não petrificado”. Os mortos passam a ter um tempo limitado e tornam-se exemplos. A democracia e a cidadania reportam-se, deste modo, à vida comum.
A democracia imanente vai, deste modo, buscar os mortos para os trazer à expressividade da vida. É isso o que encontramos nas tragédias gregas – representando Antígona o confronto entre as leis eternas e a realidade humana. E um dos sinais que José Gil encontra na situação caótica em que vivemos é o desaparecimento de um critério de verdade para o discurso político. As fake news testemunham a incapacidade de os democratas construírem um discurso credível, capaz de persuadir e de mobilizar. Desmoronou-se o passado, os valores da tradição, mas o caos pode trazer possibilidades de criação. O fantasma de Polinices permite ganhar força para pôr em causa as leis terrestres, transformando o sofrimento e a revolta em coragem para lutar contra a injustiça representada por Creonte. Construir a imanência é entrar no mundo e no cosmos e dar continuidade ao desejo de viver. E esse desejo de viver é considerado por José Gil nos quatro modos de envelhecer: uns fecham-se sobre si com medo da morte; outros resignam-se e vão vivendo; outros ainda negam o envelhecimento e querem viver eternamente jovens, seguindo Falstaff e Fausto. Mas ainda há o envelhecimento mais raro – nos casos de uma velhice saudável, não só fisicamente, mas sobretudo espiritualmente. O envelhecimento não quebra o curso da vida, prolongando-o e transformando. É a imanência ativa que prolonga o tempo. "
Guilherme d'Oliveira Martins, artigo publicado no Blogue da CNC (4-10 de Dezembro de 2023.

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