sábado, 25 de maio de 2019

Celebrar o 89º aniversário de Eugénio Lisboa


Os livros não mudam o mundo , quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas.
                                      Mário Quintana
Répétons inlassablement qu’un grand écrivain n’est jamais grand  par sa forme seulement, mais par ce qu’il y met, c’est-à-dire par ce qu’il est.
                                                       Henry de Montherlant

“Quando as férias grandes começavam, tínhamos, à nossa frente, uma vasta planície de tempo a preencher, mesmo que fosse a não fazer nada.[…] Mas onde eu gastava o tempo todo era, sobretudo, especado frente à montra da " Minerva Central " ( propriedade de outro Carvalhinho), a namorar os livros que não fazia ideia de como haveriam de ser meus, um dia...Eram títulos tentadores, da " Portugália",  da " Inquérito", da " Gleba", da " Minerva". Poça, não ter eu um décimo da massa que tinham os Granchas, os Carvalhinhos, o raio que os partisse a todos! E, a esses, se calhar, nem sequer lhes apetecia ler aqueles calhamaços:  O Moinho à Beira do Rio, Guerra e Paz, O Retrato de Dorian Gray, Trovoada à Esquerda, Villette e tantos outros, que me desafiavam... Palavra que não era inveja - era só um bocado de ferro, por a distribuição das riquezas estar tão mal amanhada: dava Deus nozes a quem não tinha dentes e aos que os tinham - e bem afiados - fazia-lhes um grande manguito! Como dizia, poça! “
Acabámos de extrair do volume I, de “Acta Est Fabula”, de Eugénio Lisboa, este vivo e pequeno texto para saudar o seu 89º aniversário, que se celebra hoje. Não poderemos afirmar, com total certeza, que, do conjunto dos sete volumes que compõe as suas Memórias, é este o que mais apreciou escrever. Estamos, porém,  seguros do seguinte: este é o que mais nos tocou . Será, pois, com este primeiro  volume memorialístico de Eugénio Lisboa,  que celebraremos o seu aniversário, no rasto  da criança  que ele foi. E quando o afirmamos  , damos eco à emoção que nos tomou, quando nos confrontámos  com uma criança, cujo sonho era ter uma casa grande, com paredes forradas a madeira, pejadas de livros.  Um sonho singular no coração de uma criança.
Li muito, mas também me fartei de sofrer por causa do que não li, nessa altura : ficavam-me os olhos nas montras da “ Minerva” e da “Progresso”, onde chamavam por mim […] ,livros que só mais tarde viria a ler.
[…] Quantas vezes não desci, do Alto –Mahé até à baixa, para ir namorar as montras das livrarias , praticando aquilo que os ingleses  chamam " window shopping” ( “ comer com os olhos”, dizemos nós…) . Não tinha  dinheiro,  até ao fim do 7º ano do liceu, nunca tive dinheiro de bolso.  Nunca conheci aquilo, que outros mais abastados , recebiam : uma “semanada”. Os livros  da George Eliot, do Dickens , nas monumentais  edições da “Portugália” e da “Inquérito”, ficavam completamente fora do meu alcance, por mais que os namorasse. Lembro-me , como se fosse hoje  - agora! – de uma tarde de domingo, em que saí  do “Scala”, depois de ter visto, emocionado, uma versão cinematográfica do romance de Dickens “ A Tale of Two Cities”, com o Ronald Colman, no papel de Sydney Carton. A caminho da Praça MacMahon, onde ia apanhar o machimbombo para regressar a casa, passei pela Livraria Progresso  e vi, na montra , acenando-me,  uma edição  do romance “Grandes Esperanças”, de Dickens , com uma cinta, que gritava  despudoradamente “ Dickens, o grande Dickens, o maior romancista  inglês de todos os tempos.” Fiquei siderado: acabara de ver um romance  daquele autor, transportado para o écran do “Scala”, e agora , ali, aquele “chamamento”. Era incrível.  Nunca me doeu tanto não ter dinheiro para ir, no dia seguinte, àquela livraria, para poder corresponder a um apelo tão lancinante.

Apelo feito de outros apelos a desafiar a fértil e ávida  curiosidade do adolescente Eugénio Lisboa. E era pelos livros que viajava e conhecia mundo , naquele recôndito bairro (Alto-Mahé) da cidade de Lourenço Marques  , em Moçambique. Foi europeu, americano, russo em  África. Os livros abriam-se-lhe e traziam-lhe a descoberta da vida. Amou pela primeira vez com Stendhal, em "Le rouge et le noir": Madame de Rênal entrou no seu coração para sempre. Um encantamento que nunca deixou de sentir e celebrar.
E quando, aos dezassete anos, tem  de abandonar a cidade capital da sua memória ,  para prosseguir estudos no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, a emoção da despedida  eclode: Fora ali que tudo aprendera , fora ali que fizera  as “grandes leituras”, fora ali que descobrira Florença, Paris , a América de Hemingway, de Saroyan, de O’Neill, fora ali  que  explorara o mundo  dos antigos, pela mão de Plutarco e de Sienkiewicz! Fora ali que, sem aviso prévio , eu encontrara  e amara a Senhora de Rênal, saída do romance de Stendhal, para entrar na minha vida – e nela ficar para sempre!  Aquele mundo estava cheio de vozes e de segredos. Como poderia eu escolher deixá-lo? Fora ali que eu me banhara , com o “Nero”, nas águas grandes e temerosas do Índico. É verdade que, como referi , entre o tesouro das emoções “locais” e o desejo e quase “dever” de ir à aventura , eu optara por esta. Mas, agora, chegado o momento decisivo, a avalanche  emotiva ameaçava tudo submergir.

Decisão que fez do jovem Eugénio Lisboa , um  homem do mundo. O espanto, a curiosidade de uma criança, que se iniciou nos livros, marcaram-lhe  o futuro. Eugénio Lisboa é, na actualidade, o mais erudito e apurado cultor de uma escrita singular . 
Autor de uma vasta e  multifacetada obra, capturou-nos ,ao longo dos anos. E, de chamamento em chamamento, seduziu-nos  nas múltiplas  livrarias.  Cada livro é sempre um apelo irrecusável.  
Acaba de publicar dois livros : Uma conversa Singular , sumptuoso conjunto  de ensaios, e o primeiro volume de um grande registo diarístico: Aperto Libro. Um outro tomo, deste novo magnum opus, está no prelo.
Eugénio Lisboa deu forma ao sonho de criança. Com criteriosa  selecção, encheu de livros, a sua casa. Possui uma biblioteca com mais de 30.000 livros , que doou  à Biblioteca da Universidade de Aveiro, onde foi Professor.
“Sou todos os livros que li , todas as pessoas que conheci, todos os lugares que visitei, todas as pessoas que amei.”, confidenciava Jorge Luis Borges. Lendo a ímpar obra de Eugénio Lisboa, acabamos por concluir que o autor de “Ficções” tem razão. Se o próprio Eugénio Lisboa nos diz que “ Somos muito do que lemos” , não poderemos deixar de lhe prestar homenagem e apresentar o nosso mais profundo agradecimento .
A Eugénio Lisboa, as nossas celebradas felicitações por este 89º aniversário.
Bem-haja!

1 comentário:

  1. É sempre com muita emoção, e profundo respeito, que recapitulamos a obra de Eugénio Lisboa, em especial as suas memórias!.. Dá-se o caso que estivemos - pelo pensamento... - muito perto de quase tudo o que ele escreve. A contemporaneidade e o espaço português têm destas coisas!... É igualmente com enternecido olhar e ansiosa curiosidade que renovamos essa leitura diarística e confessional, a mesma que nos envolve num fraternalismo imensamente doce e cúmplice, e nos torna mais saudosos de um tempo inolvidável, e tão chegado... e mais agora, neste seu querido 89º Aniversário. Parabéns, Eugénio Lisboa! Aquele abraço que nos prolonga este saudosismo incorrigível, meu Mestre e amigo!

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