segunda-feira, 27 de maio de 2019

1968: As barricadas que abalaram o mundo

Manoel de Andrade, no Preâmbulo ao seu livro "As palavras no espelho", questiona e afirma: Quem, dentre os de minha geração, não se lembrará do significado e das proporções revolucionárias da rebelião estudantil de Paris, em maio de 1968, tida por historiadores e filósofos como o acontecimento social mais importante do século XX? Seu estopim incendiou o movimento estudantil em todos os continentes e, no Brasil, os fatos foram marcados por movimentações populares em quase todas as capitais, com destaque para a célebre Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, em 26 de junho daquele ano. Um período em que, para muitos brasileiros, os gritos pela liberdade se transformaram em ecos de dor silenciados pelo suplício e pela morte, legalizados pela repressão cruel do Ato Institucional nº 5, o tenebroso AI-5, decretado em 13 de dezembro de 1968. Suas consequências geraram uma transição longa e sombria, regada pelas lágrimas perenes de mães, viúvas e  órfãos. Creio ser imprescindível reeditar o significado da História, sobretudo quando os fatos marcaram com a crueldade, o desaparecimento e a morte o destino dos vencidos e traumatizaram com o infortúnio a trajetória social, política e cultural de um povo.
E porque acreditamos que o esquecimento da barbárie altera  a História , transcrevemos a última parte  de um conjunto de quatro ensaios, do insigne  autor de "Poemas para a Liberdade", para que a memória desse tempo sujo  o não  permita.
Apresentamos  a Manoel de Andrade , com redobrado apreço, os nossos agradecimentos.
1968: Uma revisão (IV)
1968: As barricadas que abalaram o mundo
O palco da história
por Manoel de Andrade
"Ante o cenário imenso da Guerra Fria e a disputa pela corrida espacial, o mundo, em 1968, parecia um grande teatro onde, bem distante das fronteiras de Saigon, se representavam as dramáticas cenas de muitos outros Vietnames. Por trás do enredo de tantas tragédias, os atores mais jovens, empunhando suas bandeiras de sonhos, disputavam seu inefável território de esperanças contra os velhos generais que defendiam as milenares trincheiras do poder, da ganância e do preconceito. Das barricadas de Paris às agitações de Berlim, de Varsóvia, de Beirute, do Cairo, de Caracas, de Jacarta…; do outono carioca à primavera de Praga; da oratória inflamada de Rudi Dutschke ao lirismo armado de Evtuchenko; da Sexta-Feira Sangrenta ao Massacre de Tlatelolco; da filosofia de Marcuse ao teatro de Brecht; da Marcha sobre o Pentágono, em fins de 67, à Passeata dos Cem Mil, em 68; dos mandamentos da Anti-Cultura aos postulados socialistas; da inconsequência política da geração hippie ao pragmatismo das barricadas estudantis; das trincheiras abertas na América Latina às guerras contra o colonialismo português em África; do Apartheid às lutas contra a segregação dos negros, chicanos e porto-riquenhos nos EE.UU., por tudo isso e muito mais, o ano de 68 marcou historicamente todos os quadrantes do mundo. Todos sabem que os protagonistas, que brilharam na ribalta daquele imenso drama chamado 1968, foram os estudantes do mundo inteiro. Não me estenderei sobre os acontecimentos que antecederam aquele ano, mas acho importante comentar que a revolta dos estudantes em Paris era apenas parte de um longo processo. Tudo isso começou em Roma, em 1960, continuou na agitada Berkeley de 62, seguiu-se 63, em Pisa e Florença, com as primeiras ocupações da Universidade. Em 64, os estudantes americanos, liderados por Mário Selvo, fazem uma imensa manifestação ultrapassando os limites da famosa Universidade de Berkeley. Em junho de 67, por ocasião da visita do Xá da Pérsia (Irão) a Berlim Ocidental, a morte do estudante Benno Chnesorge incendiou a revolta no país inteiro e em dezembro, em Munique, o estudante Rudi Dutschke pintou, num memorável discurso – que já anunciava a sua grande liderança na Europa – a Guerra do Vietname com as cores mais sinistras. Contudo, foi somente no ano seguinte que todo este cenário se incendiou pelas barricadas em luta.

Os primeiros atos
Já em janeiro, essa imensa bronca começou na Polónia, quando interditaram a apresentação da peça Dziady, do grande poeta romântico polonês Adam Mickiewicz. Na última representação, sob o reiterado grito de “liberdade artística”, muitos estudantes foram presos e posteriormente expulsos da Universidade de Varsóvia. Em consequência, na primeira semana de março, os escritores e trabalhadores se reúnem aos cinco mil estudantes no pátio da Universidade para exigir “liberdade de expressão” e entram em choque com a polícia. Nos dias seguintes, a revolta se estende à Gdansk, Cracóvia e outras cidades, onde grandes manifestações marcharam sustentando a bandeira da Polónia e ao som da Internacional Socialista. Em fevereiro, em frente à Ópera de Berlim Ocidental, cerca de dois mil estudantes protestam com veemência contra a Guerra do Vietname e dois deles sobem ao alto de um guindaste onde agitam a bandeira vietnamita. Ainda em fevereiro, uma pesquisa na Universidade de Harvard constatava que 69% dos estudantes procuravam por todas as formas escapar do alistamento para o Vietname. Como se sabe, os estudantes de Harvard, que fecharam o campus da Universidade em 69 pelo comprometimento da instituição com a guerra, estiveram na vanguarda das grandes “marchas da paz” e das marchas contra a segregação racial nos Estados Unidos. Em março, além das manifestações em Varsóvia, ocorrem também revoltas estudantis em Roma, Londres, Milão e Nanterre. Na Espanha, antigas reivindicações ecoaram entre os estudantes quando a Ditadura de Francisco Franco impôs o policiamento interno nas universidades. A Universidade de Madrid é fechada, mas a panfletagem anti-franquista e as grandes barricadas marcam o enfrentamento brutal entre estudantes e policiais nas cidades de Valência, São Tiago de Compostela, Sevilha e outras. No Brasil, em fins de março, a morte do estudante Edson Luiz e a sua missa de 7º dia, no Rio, acenderiam um rastilho de revoltas que explodiram em grandes batalhas campais de estudantes contra policiais em São Paulo, Brasília, Porto Alegre, Belo Horizonte, Fortaleza, quando destruíram o Centro Cultural Brasil-Estados Unidos (Os fatos mais relevantes dessas manifestações no Rio de Janeiro foram descritos nos dois primeiros artigos dessa série: a Sexta-Feira Sangrenta e a Passeata dos Cem Mil).
Em abril, o grande fato político que abalou todo o movimento estudantil europeu foi o atentado, no dia 11 daquele mês, contra o jovem orador Rudi Dutschke, líder da União Socialista dos Universitários da Alemanha (SDS). Planejado pela polícia secreta da Alemanha Ocidental e pelo magnata da imprensa Axel Caser Springer, o atentado provocou violentas manifestações estudantis em todo o país, impedindo a circulação dos jornais do “grupo Springer”. O fato motivou manifestações em Roma, Paris, Londres, Florença e Rudi morreu onze anos depois, em consequência dos ferimentos recebidos. Naquele mês de abril estavam também em pé de guerra os estudantes de Caracas, Bagdá e Beirute.
Os grandes atores
Em maio os atos mais dramáticos da revolta estudantil ocorreram no mais belo palco da cultura do planeta e quem sabe por isso, e também pelo charme parisiense, teve um destaque tão grande. Em poucos dias as manifestações paralisaram a França. Os operários se uniram ao movimento  estudantil entrando em greve e ocupando as fábricas. Os estudantes de Nanterre se tornaram os donos do Quartier Latin. Interrogado sobre os destinos das manifestações pelo filósofo Jean-Paul Sartre, o líder da revolta, Daniel Cohn-Bendit responde:
 O movimento tomou uma extensão que nós não podíamos prever no início. O objetivo é, agora, a derrubada do regime. Se conseguimos isso ou não, independe de nós. Se fosse também esse o objetivo do Partido Comunista, da CGT e de outras centrais sindicais, não haveria problema: o regime cairia em quinze dias, porque ele não tem nada para enfrentar uma prova de força contra todas as forças trabalhadoras.
  Cohn-Bendit, aos 23 anos, celebrizado como líder do Movimento 22 de Março, cursava o 2º ano de Sociologia na Faculdade de Letras em Nanterre. Entre outros líderes como Jacques Sauvageot, com 25 anos e dirigente da União Nacional dos Estudantes Franceses e Jean-Pierre Duteuil, com 22 anos e um dos mais importantes líderes do movimento, Cohn-Bendit era o mais radical. Acreditava que a luta estudantil era apenas o primeiro passo para a contestação de toda a sociedade burguesa. Os estudantes seriam apenas o estopim deflagrador da revolução operária. A revolta estudantil na França teve um curioso desenvolvimento. Suas reivindicações iniciais eram apenas o questionamento das relações opressivas dos professores para com os alunos e as questões relativas à estrutura, gestão e autonomia das Universidades. Mas em face do apoio popular, dos próprios professores e a violência da repressão policial, em duas semanas a situação mudou rapidamente e o que se pôs em cheque foi a política do General De Gaulle e o próprio sistema capitalista promotor da dependência, da alienação e da exploração da classe operária. Em junho, o grande destaque da luta estudantil no mundo foi a célebre Passeata dos Cem Mil nas ruas centrais do Rio de Janeiro. Foi, por certo, o maior movimento de massa que a cidade já teve em sua história. Celebrizou-se pela adesão dos mais variados segmentos da sociedade carioca integrando intelectuais, artistas, professores, jornalistas, religiosos, profissionais liberais e o povo representado pelas mais variadas organizações de classe que de braços dados com os estudantes desfilaram em sucessivos cordões pelas grandes avenidas. O grande destaque foi o papel que teve Vladimir Palmeira,  presidente da UME, por seus vários e inflamados discursos ao longo de todo o percurso e pela sua condição de maior líder estudantil da época.
Em fins de agosto, a Universidade de Brasília foi invadida e com o pretexto de prender estudantes procurados por subversão. Houve espancamento de alunos, professores e até de parlamentares que tentaram intervir. Em setembro, o exército ocupou o campus da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM), a maior da América Latina. Os estudantes foram espancados e presos, e o reitor, como protesto, renunciou. No dia 2 de outubro, os estudantes de esquerda da Universidade de São Paulo entram em conflito com os estudantes de direita da Universidade Mackenzie. Nos violentos confrontos, que se seguiram no dia seguinte, além dos feridos, o estudante Jose Guimarães, de 20 anos, da USP, caiu morto por um tiro na Rua Maria Antônia, no centro de São Paulo. Ainda em outubro, no dia 12, realizou-se em Ibiúna, SP, o trigésimo Congresso da UNE. A polícia faz o cerco da região e prende 920 estudantes. Levados para a prisão, muitos deles, mesmo feridos, são torturados e as mulheres violentadas sexualmente. Os parentes dos estudantes presos são ameaçados e fichados pelo SNI ao entrar com habeas corpus. Foram demitidos do serviço públicos muitos pais de estudantes presos e repórteres que presenciaram cenas de violência tiveram seus equipamentos apreendidos e a proibição de publicar suas matérias.
 
As cenas da tragédia
Contudo, foi ainda naquele mês de outubro, enquanto estudantes da esquerda e da direita se enfrentavam na Rua Maria Antônia que aconteceu o mais trágico e sinistro acontecimento na história dos estudantes em todo o mundo. Em consequência da ocupação da UNAM e da longa repressão policial no governo de Díaz Ordaz, 15 mil estudantes de várias universidades mexicanas saíram numa marcha de protesto no dia 2 de outubro, cruzaram o centro da Cidade do México e no fim da tarde, cerca de 5.000 estudantes e trabalhadores chegaram à Praça das Três Culturas no Bairro Tlatelolco. Os estudantes traziam cravos vermelhos e entoavam canções de liberdade. Ao anoitecer, forças militares e policiais cercaram a praça com carros blindados e tanques, posicionaram-se e começaram a abrir fogo contra a multidão, onde se encontravam não só estudantes mas também mulheres, crianças e transeuntes que atravessavam o local. Apesar de vários corpos caídos ao longo da praça, o som de fuzis e metralhadoras continuou ante a população tentando fugir, mas encontrando todas as saídas da praça bloqueadas. Os policiais invadiam apartamentos do grande bloco de edifícios populares que rodeava a praça em busca de estudantes.
Testemunhas oculares dos fatos relataram que os cadáveres eram tantos que foram recolhidos em caminhões de lixo. Nunca se chegou a um número exato de mortos. Algumas fontes chegaram a calcular em 1.000 mortos, mas há um consenso entre 200 e 300 vítimas. Muitos estudantes foram presos e jamais apareceram (vivos ou mortos). O massacre ocorreu sob o governo do presidente Gustavo Díaz Ordaz Bolaños. O escritor Octavio Paz deixa, naquele ano, o serviço diplomático em protesto contra o massacre. O autor destas linhas passou o primeiro semestre de 1971 no México, morou na praça do massacre e teve contato com pessoas que presenciaram os fatos mas infelizmente o espaço limitado deste artigo não permite que se relate considerações particularizadas sobre aquela tragédia. Em 1971, o presidente do país era Luis Echeverría Alvarez, que fora Ministro do Interior de Díaz Ordaz, e que transmitiu a ordem para reprimir a  manifestação. Durante seu governo se lançou uma forte cortina de silêncio sobre o assunto. Somente em outubro de 1997, foi criada uma comissão parlamentar para investigar o ocorrido. 
Echeverría reconheceu que os estudantes não portavam armas e deu a entender que tudo havia sido militarmente planejado para destruir o movimento estudantil, o qual ameaçava fazer protestos durante os Jogos Olímpicos do México que se realizaram naquele ano de 12 a 27 de outubro. Em junho de 2006, Echeverría foi acusado de genocídio e colocado, sob judice, em prisão familiar. No mês seguinte foi inocentado da acusação com base numa legislação mexicana de exceção. Sobre o massacre muito se tem escrito. A escritora mexicana Elena Poniatowska publicou em 75 La noche de Tlatelolco, e o premiado cineasta mexicano Jorge Fons Pérez, em seu filme Rojo Amanecer, conta, através de uma família mexicana, moradora num apartamento da praça, todo o enredo dos fatos, com base nos depoimentos de vítimas e testemunhas. Sobre o ano de 1968 há muitas outras barricadas além daquelas levantadas pelos estudantes em todo o mundo, mas o espaço que disponho não permite outra linha de  comentários. Quero apenas registar que em fins de janeiro, a guerra do Vietname foi marcada pela grande ofensiva norte-vietnamita contra os americanos e contra 36 cidades do Vietname do Sul. Naquele início de ano, a Checoslováquia tem a sua bela primavera socialista de reformas e liberdade mas em agosto começa a sua estação de horror com tanques e paraquedistas invadindo Praga na calada da noite e, posteriormente, a cidade ocupada por 600.000 soldados, 7.500 tanques e 11.000 canhões. Em abril, assassinam Luther King e infelizmente a sua bandeira de luta ainda tem muitas barricadas pela frente.
A crítica do espetáculo
1968-2008: São quarenta anos de um processo histórico cada vez mais crítico e acelerado e a mobilidade conjuntural desse processo nos pede uma revisão periódica de valores. Nesse sentido é indispensável dizer que nem todas as sementes lançadas nas décadas de 50 e 60 geraram bons frutos. Muitos daqueles atalhos trilhados em viagens para o “paraíso” levaram quimicamente ao “inferno”. “As portas da percepção” – abertas com o aval da melhor literatura – se fecharam, posteriormente, no embotamento e na morte. Por outro lado, a formosa bandeira da emancipação da mulher – desfraldada com inadiável coragem ante uma cultura machista e de dependência – foi, em algumas de suas trincheiras, hasteada somente em nome da mera sensualidade. O que equivale dizer que por trás das intenções inconfessáveis do erotismo, se lutava para dar cidadania a liberalidades que debocharam das razões do coração e jogaram no lixo o significado ontogénico da vida. Desfilando de mãos dadas, na ampla alameda dessas últimas décadas, a anti-cultura e a pós-modernidade exibiram – e ainda exibem – as aberrações conceituais da arte e uma sofisticada linguagem nas letras. Estes falaciosos paradigmas foram paridos pelo puro intelectualismo, pela irreverência e por uma obsessiva concepção de vanguarda. Chegaram afrontando os valores imperecíveis da estesia plástica e do discurso literário, descartando a expressão figurativa da própria arte e, sobretudo, maculando o encanto e o lirismo da poesia…, levando-a ao descrédito no qual se encontra. No campo ideológico nem todas as sementes caíram em terra fértil e muitos daqueles que, há quarenta anos, hipotecaram a própria vida por um estandarte de luta, não resistiram às seduções insinuantes do poder. Poucos foram os que não negociaram suas convicções e se preservaram inteiramente da lama. E eis porque a época que herdamos traz as pegadas de heróis e de vilões. Um tempo em que os que mantiveram seus sonhos são governados pelos “sábios” de coração vazio. E num mundo comandado pela esperteza e pelo hedonismo, é indispensável folhear os anais do pretérito para que as valores humanos, seus militantes e suas trincheiras não sejam esquecidos. O ano de 1968 sobreviveu na memória de uma geração como um legítimo calendário de lutas. Aqueles que alistaram seus gestos e emoções, palavras e pensamentos não limitaram a dimensão de sua entrega. Prisão, tortura, desaparecimento, desterro e morte foi o preço incondicional de um sonho. O movimento estudantil, como um todo, causou um profundo impacto no mundo inteiro e notadamente na política francesa e norte-americana. O que caracteriza o ano de 68 é a sintonia. O misterioso fenómeno de uma revolta partilhada simultaneamente pelos estudantes de todos os quadrantes da Terra. No leste europeu contra o regime soviético e em todo o ocidente contra o capitalismo e seus prepostos militarizados, e contra um inimigo comum identificado pela unanimidade no repúdio a Guerra do Vietname. Quarenta anos depois nos perguntamos: o que ficou de toda aquela paixão pela justiça e pela liberdade? Ficou a mágica paisagem de um inconquistável território, de uma bandeira de luta que contagiou o mundo, mas restou, também, um desnorteado individualismo, um espírito de competição fechando os caminhos da solidariedade humana.

O resgate da história
O individualismo contaminou nossa consciência da realidade. A noção de tempo está adoecendo. O mundo está presentificado, agorificado pela cultura da aparência e por um sofisticado e decadente consumismo. É contra esses vírus que temos de nos vacinar. Essa patologia está se tornando endémica e ela é vital para a sobrevivência dos interesses manipuladores e perigosamente alienantes da globalização. Nossos problemas de hoje não podem ser resolvidos somente no hoje, somente pelas suas implicações imediatas, sem pensar nas suas causas e efeitos. Não somos saudosistas e nem somos descartáveis. Somos antes, durante e depois e por isso não podemos perder nosso sentido de historicidade e de transcendência. Nossa noção de tempo não deve ter um significado meramente cronológico – de um tempo que passa e se esvai – mas uma consciência de duração. O tempo atemporal. O tempo que permanece. O tempo bergsoniano. Os nossos jovens de hoje já não têm mais sonhos, nem caminhos para o amanhã e eis porque se cansam e se irritam tão facilmente com tudo. Estão aprisionados pelo presente, pelas algemas da transitoriedade e pela agenda do entretenimento. E eis porque a vida de muitos se transforma numa aventura sem destino, numa estrada para o desencanto, na busca da liberdade por caminhos equivocados e impossíveis. Esse é, para eles, um momento difícil. Não só para eles, para todos os homens. Todos estamos  vencidos. Vencidos pela insegurança. Vencidos pela corrupção. Vencidos pela impunidade. Essa é a hora da transição e do impasse e é urgente recolocar nas mãos da juventude, uma bandeira. Em alguma parte da pátria, em alguma parte do mundo, alguém deve estar abrindo novos sulcos e, por certo, já existem sementes germinando, mas os media não nos traz essas notícias. Cabe a cada um arar sua própria alma. A psicanálise do nosso tempo deve ser feita sobre o divã da filosofia das ciências humanas e, particularmente, pela História que, como já dizia Cícero, “é a mãe de todas as ciências”. Em todo o continente abrem-se as Caixas de Pandora e temos hoje muitos documentos e bons historiadores que lêem, denunciam e nos ensinam a compreender criticamente o passado, não permitindo que ele seja amordaçado mas sim interpretado dialeticamente como uma nova tese. Nesta ótica dos fatos deve-se salientar que apesar de todos os avanços que ultimamente se tem feito na integração geopolítica latino-americana, apesar da confortável presença de governos populistas na América do Sul e apesar dos governos do Uruguai, Argentina e Chile já terem abertos os escabrosos dossiês de suas ditaduras, é lamentável dizer que o Brasil é o único país da região que, inexplicavelmente, ainda não abriu os arquivos do regime militar. São chegados os tempos de reler a história, de rever nossas ações e omissões e dos pecadores buscarem o confessionário. Quanto aos sobreviventes, devem assumir com humildade essa trégua ou, se preferirem, essa retirada estratégica. As velhas ideologias agonizam em todo o mundo. Estamos no limiar da orfandade e, nessa transição, sequer esperamos por um Messias político. Alguém que nos acene com a redenção social, intelectual e moral da humanidade. Numa época em que nossos arquétipos antropogénicos parecem falar mais alto, é imprescindível redigir um novo código de ética que mostre, implicitamente, a todos nós o próprio significado darwiniano da evolução humana e nos ensine a praticar as imperecíveis verdades do Sermão da Montanha, como queria Gandhi. Somos os sobreviventes da geração de 68, os herdeiros da saudade e da esperança e não sabemos como encontrar a porta de saída desse imenso shopping de ilusões em que se transformou o mundo. Sobrevivemos num tempo de perplexidades, pressentimentos e indagações. Diante desse angustiante impasse, perguntamos: como será o amanhã se já não temos hoje uma utopia? E eis porque é necessário participar com consciência desse torvelinho inquietante que é o tempo em que nos toca viver. É necessário lembrar aos nossos filhos as barricadas levantadas no passado. É também importante dizer a todos que é necessário perseverarem ainda…, porque num mundo sem utopia é imprescindível não esquecer os que sonharam."
Manoel de Andrade, in “ As Palavras no espelho”, Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda, São Paulo, Brasil, 2018, pp. 41-53

4 comentários:

  1. Esse livro Palavras no espelho é maravilhoso. Li ele tão rápido que deu saudade quando acabou! Parabéns ao autor pelo reconhecimento!
    Daniel Andrade

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  2. Muito interessante ver o ponto de vista desse autor sobre os fatos históricos. Os livros são incríveis!!! Parabéns pela publicação!!! Angélica Aguiar

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  3. Uma verdadeira aula de história... essa retrospectiva histórica é fundamental para entendermos nosso presente e evitarmos erros ssemelhantes no futuro. Aprendi muito com este artigo!

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  4. Reflexões mais atuais do que nunca, diante do cenário político atual de desmantelamento da universidade brasileira. Isabela

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