quinta-feira, 30 de maio de 2019

As pequenas utopias

As pequenas utopias
por Nélida Piñon
"Desde sempre ansiei por materializar as pequenas utopias do quotidiano que tinham por fim esclarecer as noções de pátria , de língua. Os conceitos que dão existência aos sentimentos , `cartografia da vida, impondo directrizes inaugurais.
O país do nascimento se faz de contradições e sombras. A língua, que o custeia , fala nos estábulos, nas feiras , nos prostíbulos, no território da cama e do berço, na jazida da paixão, locais que difundem esperança, honra, sangue derramado. Uma língua na qual se espelham as faltas humanas, o fardo histórico que nos circunda.
Tais considerações se devem a ser eu filha da imigração. Do projecto imigratório de quando os galegos , estabelecidos no Rio de Janeiro, eram fantasmas do exílio.  De quando os avós, já instalados na Vila Isabel, enquanto os pais , em Botafogo, ofereciam-me semanalmente a mesa farta. 
Ter nascido de uma família imigrante propiciou.me entender  as perspectivas da Europa no tempo do avô e do pai, que levaram a expulsar seus nacionais de casa. Questionei cedo qual teria sido o destino do continente europeu se não tivesse despejado os milhares de famintos nas terras americanas.  O quanto esta refinada Europa se nutriu do imaginário americano, do ouro e da prata, dos tesouros impensáveis , das batatas, dos tomates, do chocolate, dos mitos maia, inca , tupi-guarani, da narrativa e dos códices das civilizações autóctones.
Escondida às vezes nos recantos da casa dos avós , nunca os vi sangrar. Recolhiam  às pressas alguma eventual gota de suor e sangue. Minha mãe, Carmen, saiu a eles . Jamais a ouvi confessar o que era do âmbito da intimidade. Não admitia haver sofrido alguma desilusão que lesara o coração.Recolhia-se no próprio ser , que albergava com severidade. Seu amparo era subsistir próximo dos que amava. Não aceitava confidências, difundir segredos. Suspeito que o corpo para ela era sagrado. Até agora os efeitos destas vidas se irradiam em mim.
Volto à Europa. Pergunto que critério adoptar para responsabilizá-la pelas falhas existentes na América. Se as carências civilizadoras do nosso continente deviam ser creditadas no epicentro europeu.  Aos povos colonialistas que exerceram um domínio moralmente vergonhoso em África e nas Américas, cuja crueldade não merece esquecimento histórico.
Questiono igualmente se com o vencimento dos anos não é o momento  de nossos próprios países responderem pelas mazelas americanas.  E se não exercemos essa autocrítica é porque seguimos  sendo parte dos despojos desta Europa culta e colonialista.
Sou mestiça e gosto. Convivo com as elites brasileiras e as recrimino vivamente. Audazes no jogo da dissimulação, dos equívocos , eu não os perco de vista. Mas surpreendo-me com seus raros actos de grandeza.  São eles que aliançam, em conjunto com as classes populares , que minhas raízes brasileiras prosperaram a partir do bairro Vila Isabel onde nasci."
Nélida Piñon, in Uma Furtiva Lágrima , Círculo de Leitores, Fevereiro de 2019, pp 101-103

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