sexta-feira, 16 de maio de 2025

Vem comigo

O poema vai na direção do outro. Ele espera juntar-se entregue e desocupado. A obra solitária do poeta escarificando a matéria preciosa das palavras é o acto de expulsar um face a face. O poema torna-se diálogo – ele é frequentemente diálogo perdido,… reencontra, caminhos de uma voz para um tu vigilante.
                              Emmanuel Levinas

Eternidade

Vens a mim
pequeno como um deus,
frágil como a terra,
morto como o amor,
falso como a luz,
e eu recebo-te
para a invenção da minha grandeza,
para rodeio da minha esperança
e pálpebras de astros nus.

Nasceste agora mesmo. Vem comigo.
Jorge de Sena, in Perseguição, Tipografia Atlântida, de Coimbra, 1942

Sem data

Esta voz com que gritei às vezes
não me consola de só ter gritado às vezes.
Está dentro de mim como um remorso, ouço-a
chiar sempre que lembro a paz de segurança estulta
sob mais uma pedra tumular sem data verdadeira.
Quando acabava uma soma de silêncios,
gritava o resultado, não gritava um grito.
Esta voz, enquanto um ar de torre à beira-mar
circula entre as folhas paradas,
conduz a agonia física de recordar a ingenuidade.
Apetece-me explicar, agora, as asas dos anjos.

27/1/42

Jorge de Sena, in Perseguição, Tipografia Atlântida, de Coimbra, 1942

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