quarta-feira, 7 de maio de 2025

Sobre a Tristeza do Pensamento




Dez razões (possíveis) para a tristeza do Pensamento
por George Steiner
" Schelling, entre outros, atribui à existência humana uma tristeza fundamental, inescapável. Mais particularmente, esta tristeza oferece o fundamento sombrio sobre o qual assentam a consciência e a cognição. Este fundamento sombrio deve, na verdade, ser a base de toda a perceção, de todo o processo mental. O pensamento é rigorosamente inseparável de uma «melancolia profunda e indestrutível». A cosmologia atual oferece uma analogia à crença de Schelling. Aquela do «ruído de fundo», dos comprimentos de onda cósmica, esquivos mas inescapáveis, que são os vestígios do Big Bang, do surgimento do ser. Em todo o pensamento, de acordo com Schelling, esta radiação primitiva, esta «matéria negra», é uma tristeza, um pesar (Schwermut), que também é criador. A existência humana, a vida do intelecto, significa uma experiência desta melancolia e a capacidade vital de a superar. Nós somos, por assim dizer, criados «entristecidos». Nesta noção existe, quase indubitavelmente, o «ruído de fundo» do universo Bíblico, das relações causais entre a aquisição ilícita do conhecimento, da discriminação analítica e do banimento da espécie humana do estado de felicidade inocente. Um véu de tristeza (tristitia) cobre a passagem, por muito positiva que ela possa ser, do homo para o homo sapiens. O pensamento carrega em si um legado de culpa.
As notas que se seguem são uma tentativa, inteiramente provisória, para compreender estas proposições, para apreender a título especulativo algumas das suas implicações. Elas são necessariamente inadequadas devido à espiral por meio da qual qualquer tentativa de pensar sobre o pensamento se vê enredada no processo do pensamento, na sua autorreferência. O celebrado «Eu penso, logo existo» é, ao fim e ao cabo, uma tautologia aberta. Ninguém pode estar numa posição exterior a ela. 
Não podemos na realidade saber (in Wirklichkeit) o que é o «pensamento», em que consiste «pensar». Quando tentamos pensar sobre o pensamento, o objeto da nossa investigação é interiorizado e disseminado no processo. Ele é sempre simultaneamente imediato e inatingível. Nem mesmo na lógica ou no delírio dos sonhos podemos alcançar um ponto de vista externo ao pensamento, um ponto arquimediano a partir do qual circunscrevêssemos ou pesássemos a sua substância. Nada, nem mesmo as investigações mais profundas da epistemologia ou da neurofisiologia, nos conduziu para além da identificação proposta por Parménides entre o pensamento e o ser. Este axioma continua a ser, simultaneamente, fonte e limite da filosofia ocidental. 
Temos provas de que o processo do pensamento, da criação de imagens conceptuais, persiste mesmo até durante o sono. À semelhança da respiração, determinados modos de pensamento são inteiramente resistentes a qualquer interrupção que seja. Podemos, durante breves períodos, suster a nossa respiração. Não é de modo algum claro que possamos estar sem pensar. Há quem se tenha esforçado para alcançar esta condição. Certos místicos, certos adeptos da meditação, procuraram atingir o vazio, um estado de consciência inteiramente receptivo porque vazio. Aspiraram a habitar o nada. Mas este nada é ele mesmo um conceito, carregado de paradoxo filosófico, e emocionalmente saturado, quando alcançado por meio da meditação dirigida e de exercícios espirituais, como em Loyola. São João da Cruz caracteriza a suspensão do pensamento mundano como transbordante da presença de Deus. Uma verdadeira interrupção da pulsação do pensamento, exatamente como a interrupção da nossa pulsação fisiológica, é a morte. Durante algum tempo, os cabelos e as unhas de uma pessoa morta continuam a crescer. Tanto quanto nos é dado saber, não se verifica qualquer prolongamento do pensamento, por breve que seja. Daí a sugestão, em parte gnóstica, de que apenas Deus se pode desligar do Seu próprio pensamento, num hiato essencial ao ato da criação. 
Regressemos a Schelling e à asserção de que uma tristeza necessária, um véu de melancolia, se associa ao próprio processo do pensamento, à percepção cognitiva. Poderemos nós tentar esclarecer algumas razões para tal? Teremos nós o direito de perguntar por que não deverá o pensamento humano ser alegre?
George Steiner, in Dez razões (possíveis) para a tristeza do Pensamento, Relógio d'Água Editores, Abril de 2025, pp.11- 13

Sobre o Livro: :
«Schelling, entre outros, atribui à existência humana uma tristeza fundamental, inescapável. Mais particularmente, esta tristeza oferece o fundamento sombrio sobre o qual assentam a consciência e a cognição. Este fundamento sombrio deve, na verdade, ser a base de toda a perceção, de todo o processo mental. O pensamento é rigorosamente inseparável de uma “melancolia profunda e indestrutível”. A cosmologia atual oferece uma analogia à crença de Schelling. Aquela do “ruído de fundo”, dos comprimentos de onda cósmica, esquivos mas inescapáveis, que são os vestígios do Big Bang, do surgimento do ser.»
«As ideias de Steiner revelam imparcialidade, seriedade, erudição sem pedantismo e um charme sóbrio.» [The New Yorker]
«George Steiner é talvez o último humanista. O seu pensamento, não isento de paradoxos e indefinições, revela uma enorme ternura, não apenas pela nossa espécie como um todo, mas pela pessoa. Pelo milagre irrepetível de cada ser humano.» [El Cultural]

Autor : George Steiner
Título: Dez razões (possíveis) para a tristeza do Pensamento
Categoria: Ensaios
Tradução: Ana Matoso
EAN: 9789897835568
Data de publicação:  Nov. /2015
Nº de páginas: 80
Editora: Relógio D'Água

Sobre o Autor:

"George Steiner é considerado um herdeiro de Sócrates no século XX
Nasceu em Paris, em 1929, partindo com a família para Nova Iorque no início dos anos 40 para escapar ao nazismo. Obteve a sua licenciatura em Letras na Universidade de Chicago em 1948. Em 1950, concluiu o mestrado na Universidade de Harvard, onde recebeu o Bell Prize in American Literature. De 1950 a 1952, foi bolseiro da Fundação Cecil Rhodes na Universidade de Oxford, onde se doutorou. Juntou-se à redação do The Economist, em Londres, sendo depois membro do Institute for Advanced Study, em Princeton. Em 1959, recebeu o prémio O. Henry Short Story. Foi professor de Inglês e Literatura Comparada na Universidade de Genebra de 1974 a 1994 e membro da Churchill College em Cambridge a partir de 1969.
Foi também professor de Literatura Comparada na Universidade de Oxford e professor de Poesia em Harvard. Colaborou na The New Yorker, no The Times Literary Supplement e no The Guardian.
Faleceu em Cambridge, em 2020."

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