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| Herculano |
Fomos às Memórias de Eugénio Lisboa .Do volume IV , Acta Est Fabula, Memórias IV, em Notas de Viagem, retiramos as entradas relativas a Nápoles . É com infindo regozijo que passamos a transcrevê-las.
Notas de Viagem
por Eugénio Lisboa
"Andei por todo o mundo e tirei disso prazer fundo e vasto proveito. Vi cidades, campos (“eram campos, campos, campos…”, diz o Manuel da Fonseca, algures, num poema seu…), montanhas, praias. Sobretudo, cidades: é onde gosto de ir porque é onde estão as coisas de que gosto: teatros, cinemas, galerias, museus, salas de concerto, livros. A Rose Macauley, que andou por Portugal, observava: “A grande e recorrente questão no que toca o estrangeiro é: vale a pena ir lá?” A resposta que eu dou, para quase todas as minhas viagens, é: “Sim, valeu a pena.” (Tive a sorte de nunca ter ido à Albânia…)
Em 1989, estive em Zurique, em Lisboa, em Portalegre, em Nápoles e no Maputo. Transcrevo algumas páginas dos meus apontamentos diários, relativos a estas viagens.
Nápoles
24.9.89 – Nápoles. Ontem, visita a Herculano. Duas horas e meia
entre fantasmas, entre opulências que foram e já não são. A vida corria normal,
ao pé do mar. Dezoito horas depois, tudo eram ruínas e uma cidade fantasma para
turistas-a-haver.
No apartamento em que estou (e que é o da Geninha [1]), vê-se, de
um lado, o Vesúvio, do outro, Nápoles e o mar.(...)
1.5.89 – Ontem, visita a Amalfi. Costa deslumbrante, mesmo
debaixo de chuva.
Tenho descansado, dormido e lido, como há muito não fazia. E
um ou outro poema, sob o impacto de Herculano. Amanhã, se o tempo deixar,
Pompeia.
Leio contos de Peter Ustinov. Releitura da Poética da Música, de Stravinsky, como preparação para as lições que vou dar em Lourenço Marques, no final do mês
Hoje, de manhã, passeio pelas ruas de Portici. Os homens
reúnem-se no meio das praças, de pé, aos grupos, falando e convivendo.
Inconcebível, para ingleses, para quem o convívio é no “pub”, emborcando
quantidades inimagináveis de cerveja.
Em Itália e, em especial, em Nápoles, como em Portugal, a mãe
é fundamental: é mesmo o centro do universo. Nos países nórdicos, a mãe é
descartável. É um obstáculo a remover – e a remover, cedo.
Stravinsky diz mais ou menos isto, com que estou de acordo:
as revoluções destroem. E a arte é, por definição, construção. Falar de arte revolucionária é um contra-senso. Inovação é uma coisa; a audácia é uma
coisa; a revolução é outra.
3.5.89 – Ontem, visita a Pompeia. Ruínas, ruínas, ruínas.
Turistas, turistas, turistas (sobretudo alemães: intensos, meticulosos, sem
humor, barulhentos). Talvez por haver tanta gente, o passado não entrou em mim
com a mesma força que se verificara em Herculano (nessa visita, estávamos
apenas eu e a Antonieta [2]). Excepto num ou noutro momento privilegiado, em que o
espectro de uma cidade morta se projectou contra o plúmbeo vivo das colinas em
volta. Aí, a magia voltou: uma magia fúnebre, a um tempo ameaçadora e atraente.
(Um anfiteatro que já não funciona; um teatro onde já se não representa: imagem
do imenso desperdício que é a aventura humana. Ter imaginado; ter construído; e
ter abandonado.)
Hoje, irei ver Nápoles, mais de perto.
Em Nápoles, a manhã toda e parte da tarde. Almoço num
restaurante junto ao Castelo de S. Elmo. Passeio pelas ruas, visita aos
claustros da Igreja de Sta. Clara. Igreja de Jesus Novo. Livros: J. L. Borges,
Giono (Voyage en Italie).
Nápoles: bela, a baía, as colinas, o Vesúvio. Pouca luz,
hoje, apesar das gabarolices dos napolitanos.
Stendhal, falando da cidade: “c’est, sans comparaison, la
plus belle ville de l’univers”. Os napolitanos estão de acordo com veemência.
Alguns nunca daqui saem (o pai do Enzo, por exemplo), a não
ser para
breves férias, ainda mais ao sul (e
sempre em Itália). Têm um paraíso que não trocam por aventuras incertas.
Parecem ter pena da humanidade que vive fora de Nápoles. Goethe dizia que o
napolitano está convencido de estar na posse do paraíso, tendo, portanto, uma
triste ideia das terras mais ao norte: “Sempre neve, case di legno, gran
ignoranza, ma danari assai” (“Sempre neve, casas de madeira, grande ignorância,
mas dinheiro em abundância”).
Claude Roy, falando de Pompeia, sem solenidade: “La vulgarité
romaine et l’Ange de la mort par les cendres et la cave. Ils allaient mourir,
et buvaient, bâfraient, baisaient. Le rond des gobelets sur le comptoir du
marchand de vin, qui n’a pas eu le temps de passer le torchon humide. Bonne
humeur déjà italienne. Pompée c’est du Pagnol sur fond de chants fúnebres.” (“A
vulgaridade romana e o Anjo da morte pelas cinzas e a cave. Iam morrer, e
bebiam, empanzinavam, fornicavam. A marca circular do fundo dos copos no balcão
do comerciante de vinhos, que não teve tempo de limpar com o esfregão húmido.
Bom humor, já italiano. Pompeia é [Marcel] Pagnol sobre fundo de cantos
fúnebres”). Isto é escrito por um homem
[Roy], com um diagnóstico de cancro, isto é, com morte pendente e à vista.
Chapeau bas!
A comida: os napolitanos comem o dobro do que é necessário.
Depois de uma pasta abundante (aperitivo), vai um bife suculento, acompanhado
de incomensuráveis frituras. Sobremesa: que tal um bom e avultado gelado? A
vida é uma alegria. Tudo rima com tudo e a mamã está ali para o que der e vier.
Se, logo à noite, o Nápoles bater o Stutgard (em futebol), Deus existe e o
universo está certinho.
De Nápoles, Flaubert guarda recordações diferentes (talvez
Deus não exista assim tanto…) e mais picantes: “On m’a proposé des petites
filles de dix ans, oui, monsieur, des enfants de bas âge, dont les nourrices
sont sans doute en même temps les maquerelles. On m’a même proposé des mômes, Ô
mon ami. Mais j’ai refusé.” (Carta a Camille Rogier, 11.3.1851).
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias IV, Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo.Londres. ( 1976-1995) , Editora Opera Omnia, Outubro de 2014, pp. 399, 400,403,404,405,406
[1]- Filha de Eugénio Lisboa
[2]- Mulher de Eugénio Lisboa
Nápoles: Os 10 Melhores Lugares para Visitar | 4K, por Epic Explorations TV


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