sábado, 31 de maio de 2025

O julgamento

Lev Tolstoi (1828-1910)

16 de Janeiro de 1910. Iásnaia Poliana.
"Acordei bem-disposto e decidi ir ao tribunal, a Tula. Li as cartas e respondi a algumas. Depois parti. Primeiro, um julgamento de camponeses; advogados, juízes, soldados, testemunhas. Tudo muito novo para mim. Depois o julgamento de um preso político. A acusação era por ter lido e distribuído abnegadamente, à sua custa, ideias mais justas e mais sensatas sobre a organização da vida do que aquela que existe. Senti muita pena dele. Juntaram-se pessoas para me ver, mas não muitas, felizmente. O juramento perturbou-me. Tive dificuldade em conter-me e não dizer que aquilo era fazer troça de Cristo.[...]"
Lev Tolstoi, in Os Últimos Escritos  , 1882- 1910 ( Diários) ,Relógio D'Água Editores, Setembro de 2018, p 294 

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Apontamento biográfico


As sempre belas palavras de Eugénio Lisboa que terão sempre lugar cativo na Literatura Portuguesa.
Lourenço Marques
TOADA ÍNDICA
(Apontamento biográfico
em versos de sete sílabas)


Em tempos de antigamente,
quando andava no liceu,
numa terra que era quente,
com um mar que era meu,
ali sendo o paraíso,
de pouco fazendo tudo,
muito não sendo preciso,
buscando prazer no estudo,
estudando-me já eu,
a descobrir os mistérios
do sexo no apogeu
e dos dramas do império,
nesses tempos, eu dizia,
em que tudo era grande
e o amor descobria
que a vida se expande,
nesses tempos de começo
de um mundo que se abria,
de viagens sem regresso,
num tempo em que já sabia
que a dor também existe
e que o triunfo se paga,
mesmo quando se não desiste,
pelo preço de uma chaga
que o tempo não amacia;
naquele tempo enriquecido
por tudo que acontecia
e era por mim sentido
ser tesouro amealhado,
- eu sonhava, com fervor,
num futuro apontado
à grandeza e ao amor!
Que sonhar, nessa idade,
mesmo sendo o sonho alto,
não é grande enfermidade
nem dá grande sobressalto!
Foi assim que certo dia,
- havia sol e promessa
e meu coração ardia –
parti, com dor e com pressa,
deixando amores e festas,
a caminho do futuro
que eu pensava sem arestas,
radioso e bem seguro!
Quando se deixa um tesouro,
em busca de outro maior,
trocamos talvez um ouro
por outro muito pior.
E foi assim que parti,
nesse dia de Setembro,
saindo de onde nasci
-ai como disso me lembro!
Foi o futuro o que foi,
cheio do bom e do mau,
pleno de tudo o que dói,
logo que saí da nau.
Nas águas de um novo mar,
comecei nova aventura,
aprendi outro voar
e ganhei grande fartura!
Mas foi no outro oceano,
lá longe, no além mar,
que eu abri todo o pano
e me pus a navegar!
15.05.2020
Eugénio Lisboa,
       num regresso ao meu passado Índico, a um tempo mítico que nunca mais esquecerei!
Eugénio Lisboa , in Poemas em tempo de Peste, Guerra & Paz Editores, Setembro de 2020, p 67

Pensamentos para o mundo

"Assim como o mentiroso está condenado a não ser acreditado quando diz a verdade, é privilégio de quem goza de boa reputação ser acreditado mesmo quando mente."
Miguel Cervantes

"O homem descobre-se quando se mede com um obstáculo."
Antoine de Saint- Exupéry

"I with great truth catch mere simplicity;
Whilst some with cunning gild their copper crowns"
William Shakespeare

"Há, actualmente, dois tipos muito diferentes de especialistas em questões políticas. De um lado, os políticos práticos de todos os partidos; do outro, os peritos, principalmente funcionários públicos, mas também economistas , financistas, cientistas, médicos, etc. Cada grupo possui um género de habilidade. A do político consiste em adivinhar quem pode ser induzido a pensar em favor do seu partido; a habilidade do perito consiste em calcular o que é realmente vantajoso contanto que possa convencer o povo.
(...) A habilidade específica do político consiste em saber que paixões pode com maior facilidade despertar e como evitar , quando despertas , que sejam nocivas a ele próprio e seus aliados. " 
Bertrand Russell

" Não há poder. Há um abuso de poder."
Henry de Montherlant

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Espera…


Espera…

Não me digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!

Sou a dona dos místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços…
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!

Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!

Espera… espera… ó minha sombra amada…
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontras neste mundo!…
Florbela Espanca, in Sonetos, Editora Alêtheia
 
John Barry, em  Instrumental Suite

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Há 87 anos nascia uma estrela

    NEW MODEL 2025 Volkswagen Beetle turbo Official Reveal

O Volkswagen Beetle, ou "Carocha" como é conhecido em Portugal, tem uma história fascinante que atravessa décadas e continentes. O automóvel começou a ganhar popularidade devido à sua durabilidade, simplicidade e preço acessível, tornando-se um dos carros mais vendidos da história, com mais de 21 milhões de unidades produzidas entre 1938 e 2003. O nome “Carocha” deve-se à sua forma arredondada, que lembra o insecto. Esta designação espalhou-se pelo mundo, com variações linguísticas como "Beetle" (em inglês). Curiosamente, na sua terra natal, o modelo era conhecido simplesmente como “Volkswagen Typ 1”.
O modelo também conquistou espaço na cultura pop, aparecendo em filmes como Herbie, o Carocha Endiabrado, e influenciando gerações de entusiastas de  automóveis. Nos anos 60 e 70, o Carocha tornou-se um ícone do movimento hippie. Era comum ver Carochas pintados com cores psicadélicas, flores e mensagens de paz, transformando o carro num símbolo de liberdade e contracultura.
Um dos aspetos mais populares do Carocha era a simplicidade do seu motor. Era tão fácil de reparar que muitos condutores conseguiam resolver problemas mecânicos básicos com ferramentas simples. Há até histórias de pessoas que trocaram o motor inteiro na berma da estrada em menos de uma hora.
O "Carocha" também me deliciou na minha juventude. Foi com ele que iniciei a minha carta de condução. Eis um artigo que tece a história da Wolkswagen e deste automóvel.
É fundada a Volkswagen, construtor de automóveis
May 28,1938
"A Volkswagen ganha os primeiros contornos em 1934 quando a “Reichsverband der Deutschen Automobilindustrie (RDA)”, Associação da Indústria Automóvel Alemã, incumbe o engenheiro Ferdinand Porsche de conceber um carro para o povo. Esta vontade, expressa pelo então ditador alemão Adolf Hitler que pretendia acelerar a mobilidade no país com custos acessíveis à maioria dos cidadãos. Desta forma, em 1937 é oficialmente criada com subsídios do governo a “Gesellschaft zur Vorbereitung des Deutschen Volkswagens GmbH” (Companhia para a Preparação dos Carros do Povo Alemão), designação substituída nesse mesmo ano por “Volkswagenwerk (Companhia do Carro do Povo) . Inicialmente governada pela Frente Trabalhista Alemã, ainda chegou a produzir até ao início da II Grande Guerra Mundial (1939) algumas unidades do modelo então designado KDF- Wagen.


Com o avançar da guerra a empresa centrou os seus esforços na construção de veículos militares. Só em 1947, após um difícil período de decadência em que chegou a ser oferecida a diversos construtores automóveis de todo o mundo e rejeitada por todos, por via da celebração de um contrato de exportação com a Holanda, o modelo viria a vingar no mercado europeu. O modelo Beetle passou a representar 23% das exportações da empresa para os países europeus numa altura em que a marca dominava também já o mercado automóvel alemão (64,4%) e começava a revolucionar também o mercado americano (1949), ainda que o Beetle fosse visto apenas como uma segunda opção de veículo. O crescente sucesso possibilitou à marca lançar novos modelos (ex.: Volkswagen Transporter) bem como inaugurar fábricas de carácter multinacional no (Canadá (1952), Brasil (1953) e Austrália (1954).

É na década de 60 que a Volkswagen começa constituir-se enquanto grupo, com a inicial incorporação das concorrentes Audi, DKW e NSU (1964). Mas é apenas na década de 70 que surgem dois dos maiores sucessos da marca alemã, a par do Beelte, que em muito contribuíram para a dimensão que hoje tem – o modelo Passat de 1973 e o Golf de 1974. Apenas 2 anos após o seu lançamento o Golf havia já alcançado o patamar de 1 milhão de unidades vendidas, sendo que em 1997 era o “Fusca” a fazer história alcançando 21 milhões de carros vendidos. A década de 90 volta a ser de expansão com a incorporação no grupo da Seat (1990), Škoda (1991), Bentley (1998), Bugatti (1998) e Lamborghini (1998).


É também em 1998 que a marca lança o Novo Beetle, disponibilizado também em formato cabriolet, que viria a revelar-se, uma vez mais, um sucesso de vendas ainda que menos explosivo do que o verificado com o lançamento do modelo original. Já no século XXI a marca continua o seu legado de sucesso por meio de modelos como o Touareg (2002), Touran (2003) ou mais recentemente o EOS (2006) ou o Tiguan (2007), que continuam a contribuir para que a marca se mantenha como um dos grandes protagonistas mundiais da indústria automóvel."
Artigo retirado do Blog "Cais da Memória", publicado em 28 de Maio de 2018

terça-feira, 27 de maio de 2025

Notas de viagem: Nápoles


Herculano

Amalfi

Pompeia

Fomos às Memórias de Eugénio Lisboa .Do volume IV , Acta Est Fabula, Memórias IVem Notas de Viagem, retiramos as entradas relativas  a Nápoles . É com infindo regozijo  que passamos a transcrevê-las.

Notas de Viagem
por Eugénio Lisboa
"Andei por todo o mundo e tirei disso prazer fundo e vasto proveito. Vi cidades, campos (“eram campos, campos, campos…”, diz o Manuel da Fonseca, algures, num poema seu…), montanhas, praias. Sobretudo, cidades: é onde gosto de ir porque é onde estão as coisas de que gosto: teatros, cinemas, galerias, museus, salas de concerto, livros. A Rose Macauley, que andou por Portugal, observava: “A grande e recorrente questão no que toca o estrangeiro é: vale a pena ir lá?” A resposta que eu dou, para quase todas as minhas viagens, é: “Sim, valeu a pena.” (Tive a sorte de nunca ter ido à Albânia…)
Em 1989, estive em Zurique, em Lisboa, em Portalegre, em Nápoles e no Maputo. Transcrevo algumas páginas dos meus apontamentos diários, relativos a estas viagens.


Nápoles
Nápoles
24.9.89 – Nápoles. Ontem, visita a Herculano. Duas horas e meia entre fantasmas, entre opulências que foram e já não são. A vida corria normal, ao pé do mar. Dezoito horas depois, tudo eram ruínas e uma cidade fantasma para turistas-a-haver.
No apartamento em que estou (e que é o da Geninha [1]), vê-se, de um lado, o Vesúvio, do outro, Nápoles e o mar.(...)
1.5.89 – Ontem, visita a Amalfi. Costa deslumbrante, mesmo debaixo de chuva.
Tenho descansado, dormido e lido, como há muito não fazia. E um ou outro poema, sob o impacto de Herculano. Amanhã, se o tempo deixar, Pompeia.
Leio contos de Peter Ustinov. Releitura da Poética da Música, de Stravinsky, como preparação para as lições que vou dar em Lourenço Marques, no final do mês 
Hoje, de manhã, passeio pelas ruas de Portici. Os homens reúnem-se no meio das praças, de pé, aos grupos, falando e convivendo. Inconcebível, para ingleses, para quem o convívio é no “pub”, emborcando quantidades inimagináveis de cerveja.
Em Itália e, em especial, em Nápoles, como em Portugal, a mãe é fundamental: é mesmo o centro do universo. Nos países nórdicos, a mãe é descartável. É um obstáculo a remover – e a remover, cedo. 
Stravinsky diz mais ou menos isto, com que estou de acordo: as revoluções destroem. E a arte é, por definição, construção. Falar de arte revolucionária é um contra-senso. Inovação é uma coisa; a audácia é uma coisa; a revolução é outra.
3.5.89 – Ontem, visita a Pompeia. Ruínas, ruínas, ruínas. Turistas, turistas, turistas (sobretudo alemães: intensos, meticulosos, sem humor, barulhentos). Talvez por haver tanta gente, o passado não entrou em mim com a mesma força que se verificara em Herculano (nessa visita, estávamos apenas eu e a Antonieta [2]). Excepto num ou noutro momento privilegiado, em que o espectro de uma cidade morta se projectou contra o plúmbeo vivo das colinas em volta. Aí, a magia voltou: uma magia fúnebre, a um tempo ameaçadora e atraente. (Um anfiteatro que já não funciona; um teatro onde já se não representa: imagem do imenso desperdício que é a aventura humana. Ter imaginado; ter construído; e ter abandonado.)
Hoje, irei ver Nápoles, mais de perto. 
Em Nápoles, a manhã toda e parte da tarde. Almoço num restaurante junto ao Castelo de S. Elmo. Passeio pelas ruas, visita aos claustros da Igreja de Sta. Clara. Igreja de Jesus Novo. Livros: J. L. Borges, Giono (Voyage en Italie).
Nápoles: bela, a baía, as colinas, o Vesúvio. Pouca luz, hoje, apesar das gabarolices dos napolitanos.
Stendhal, falando da cidade: “c’est, sans comparaison, la plus belle ville de l’univers”. Os napolitanos estão de acordo com veemência. Alguns nunca daqui saem (o pai do Enzo, por exemplo), a não ser   para breves férias, ainda mais ao sul (e sempre em Itália). Têm um paraíso que não trocam por aventuras incertas. Parecem ter pena da humanidade que vive fora de Nápoles. Goethe dizia que o napolitano está convencido de estar na posse do paraíso, tendo, portanto, uma triste ideia das terras mais ao norte: “Sempre neve, case di legno, gran ignoranza, ma danari assai” (“Sempre neve, casas de madeira, grande ignorância, mas dinheiro em abundância”).
Claude Roy, falando de Pompeia, sem solenidade: “La vulgarité romaine et l’Ange de la mort par les cendres et la cave. Ils allaient mourir, et buvaient, bâfraient, baisaient. Le rond des gobelets sur le comptoir du marchand de vin, qui n’a pas eu le temps de passer le torchon humide. Bonne humeur déjà italienne. Pompée c’est du Pagnol sur fond de chants fúnebres.” (“A vulgaridade romana e o Anjo da morte pelas cinzas e a cave. Iam morrer, e bebiam, empanzinavam, fornicavam. A marca circular do fundo dos copos no balcão do comerciante de vinhos, que não teve tempo de limpar com o esfregão húmido. Bom humor, já italiano. Pompeia é [Marcel] Pagnol sobre fundo de cantos fúnebres”). Isto  é escrito por um homem [Roy], com um diagnóstico de cancro, isto é, com morte pendente e à vista. Chapeau bas!
A comida: os napolitanos comem o dobro do que é necessário. Depois de uma pasta abundante (aperitivo), vai um bife suculento, acompanhado de incomensuráveis frituras. Sobremesa: que tal um bom e avultado gelado? A vida é uma alegria. Tudo rima com tudo e a mamã está ali para o que der e vier. Se, logo à noite, o Nápoles bater o Stutgard (em futebol), Deus existe e o universo está certinho.
De Nápoles, Flaubert guarda recordações diferentes (talvez Deus não exista assim tanto…) e mais picantes: “On m’a proposé des petites filles de dix ans, oui, monsieur, des enfants de bas âge, dont les nourrices sont sans doute en même temps les maquerelles. On m’a même proposé des mômes, Ô mon ami. Mais j’ai refusé.” (Carta a Camille Rogier, 11.3.1851).
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias IV, Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo.Londres. ( 1976-1995) , Editora Opera Omnia, Outubro de 2014, pp. 399, 400,403,404,405,406
[1]- Filha de Eugénio Lisboa
[2]- Mulher de Eugénio Lisboa
 
Nápoles: Os 10 Melhores Lugares para Visitar | 4K, por Epic Explorations TV

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Pensamento do dia

O meu erro foi confinar-me exclusivamente nas árvores daquilo que me parecia ser o lado ensolarado do jardim, e fugir do outro lado por causa das sombras e da escuridão.
Oscar Wilde, em De Profundis

domingo, 25 de maio de 2025

Ao Domingo Há Música


"Não há razão nenhuma para que, no dia 25 de Maio de 1930, “eu” tenha nascido num canto improvável da África Austral.
Nenhum milagre é coisa de somenos.(...)  A Lourenço Marques da minha infância e adolescência, com a praia ali ao lado e o mato muito perto, foi um desses milagres. Foi lá que aconteceu tudo quanto é importante. Foi lá que nasci e foi lá que o mundo começou: o sol descomunal, a chuva grande, as trovoadas de estarrecer, o mar, a noite, o amor, a leitura, o futuro a haver – começaram lá. (...)
 A cidadezinha de Lourenço Marques podia passar por uma das mais bonitas do continente africano – era-o nos anos trinta, que foram os da minha infância e era-o, tanto ou mais, em 1976, ano em que a deixei para sempre. Viver ali, crescer ali, aprender ali, amar ali foi uma dádiva de que, todos os dias, tive aguda consciência. Sabia que era bom e repetia com os meus botões: é tão bom estar aqui, não te distraias, repara, minuto a minuto, como é bom o nascer do dia, o pôr-do-sol, o Índico grande, generoso e ameaçador! Goza, sabendo que gozas! Olha que o paraíso não se repete... O paraíso é isto, este espaço, estas praias, estas ruas, estes cinemas, estas livrarias, esta família, estas árvores a que trepamos com fúria, estes amigos. É isto, foi-te dado uma vez e os deuses não gostam de repetir estes dons. É só uma vez – fá-lo durar dentro de ti. 
Nasci ali, em 1930, num bairro limítrofe, isto é, pobre, não muito longe do cais: o Quebra-Bilhas."
Eugénio Lisboa, in Acta est Fabula, Memórias, Lourenço Marques.1930-1947, Editora Opera Omnia., Novembro de 2012

Eugénio Lisboa faria hoje 95 anos. Deixou-nos há um ano, mas as suas palavras ficarão para sempre nos registos da nossa Literatura. Um extraordinário escritor  que trazia África no coração, com destaque para  a cidadezinha de Lourenço Marques . A cidade mais bela que daria um bom começo de qualquer livro, como sempre afirmou, e que tornou realidade com as  suas Memórias, uma obra  em sete opíparos volumes.
Em sua homenagem e porque sempre nos prodigalizou com a ímpar riqueza dos seus textos,  trazemos-lhe , neste espaço dedicado à música, os sons de África na voz de Miriam Makeba que tanto apreciava.
Parabéns Eugénio Lisboa.

Miriam Makeba, em  Zimbabwe concert (Paul Simon - Graceland land) .
Miriam Makeba ou a "Mama Africa", a cantora Sul Africana , nasceu em Joanesburgo a 4 de Março de 1932 e morreu em Itália, Castel Volturno, a 10 de Novembro de 2008, com 76 anos. Além do valioso legado musical que deixou,  foi um exemplo de coragem na luta pelos direitos humanos e contra o Apartheid na África do Sul. Em 1963, após ter proferido um discurso no Comité das Nações Unidas foi impedida de regressar ao seu país. Nos anos 80, Makeba foi Delegada da Guiné, junto da ONU, que lhe atribuiu o Prémio da Paz Dag Hammarskjöld, país onde residiu durante alguns anos com o activista Stokely Carmichael com quem havia casado em 1968.Com o fim do Apartheid regressa à sua pátria, em 1990, a pedido de Nelson Mandela que a recebeu com honras e gratidão.
 
Miriam Makeba, em  Malaika (legendas  em Swahili e Inglês).
 
Miriam Makeba, em  Mbube.

sábado, 24 de maio de 2025

Ouvir o marulho do mar

 
Ouvir
por Anselmo Borges
"É preciso ver o invisível e vê-lo precisamente no visível. É necessário voltar à terra e ver aí e daí os sinais que Deus nos faz: no céu estrelado, na rosa que dá perfume sem porquê, como escreveu Angelus Silesius, sobretudo no sorriso de uma criança e na visita de qualquer rosto de homem ou mulher e seja qual for a sua origem ou cor...
Mas não basta aprender a ver. É necessário igualmente saber ouvir. Não será por isso que a arte, cujo referente é o invisível no visível, tem as suas supremas expressões na pintura, na escultura e na música? A grande música está aí essencialmente para dizer o indizível, dando-lhe voz...
Entre os primeiros sons que teremos ouvido, está o do bater do coração da nossa mãe. Por isso é que há aquele brinquedo simples, dos japoneses, segundo creio, cuja única façanha é imitar o bater do coração humano. Quando o bebé chora, ao ouvir o bater desse brinquedo, que lhe recorda o coração materno, deixa de chorar, tranquiliza-se. Depois, deram-nos um nome, e, ainda hoje, ouvindo o nosso nome, sabemos que é a nós que chamam. Aprendemos a falar, ouvindo e imitando outros humanos que proferiam sons articulados...
No século XVIII, dizia-se que, se um macaco falasse, estariam dispostos a baptizá-lo: de facto, é pela linguagem que o Homem verdadeiramente é humano. Mas não é suficiente falar. É ouvindo-nos mutuamente que tomamos consciência da nossa igualdade radical enquanto seres humanos. Não há, não pode haver de um lado aqueles que falam e do outro aqueles que apenas ouvem. Portanto, os estudantes devem ouvir os professores, mas os professores também têm que ouvir os estudantes. Que os cristãos ouçam o papa, os bispos, os padres, mas que o papa, os bispos, os padres ouçam também os outros cristãos, que não podem ficar reduzidos à passividade… Os empregados ouvirão os encarregados e patrões, mas estes deverão igualmente ouvir os operários, pois têm algo a dizer e eventualmente direitos legítimos a reclamar. Onde é que estaria a democracia, se os governantes não escutassem os outros cidadãos?
O bebé reencontra a tranquilidade, recordando o bater do coração materno. Todo o ser humano precisa de ouvir palavras de afecto. Mas hoje quem lhas dirige? Todo o ser humano tem necessidade de desabafar, mas quem está disposto a ouvir os velhos, os doentes, os moribundos? E não encontramos pessoas a falar sozinhas nas ruas?
Afinal, a vida familiar não se afunda frequentemente, porque o marido não tem tempo ou disposição para ouvir a mulher e a mulher ouvir o marido? E não será também porque os pais não escutam os filhos nas suas histórias, nas suas perguntas, nos seus anseios, que os jovens seguem por caminhos que levam ao abismo? Ah! Todos a dedar nos smartphones… E quem fala? Quem ouve?
Precisamos de aprender a ouvir o marulho do mar naquele seu desdobrar-se imemorial, e o bater de asas dos pássaros, e o leve murmúrio das folhas das ervas e das árvores tocadas pela brisa... Precisamos de aprender a ouvir música, a grande música, para reencontrar a paz e a voz do essencial indizível.
Se tivéssemos tempo para nos sentarmos e meditar e escutar o silêncio e a voz da consciência, teríamos evitado tantos erros e disparates e tragédias!... Anda por aí um barulho ensurdecedor, mas quem ouve o silêncio no qual se acendem as palavras da sabedoria? 
E se um dia nos dispuséssemos também a ouvir o Divino, que permanentemente se nos dirige?... E a pergunta pelo sentido da vida?"
Anselmo Borges, in Artigo de Opinião, publicado no DN de Dez.2024

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Porquê esta tristeza inescapável?"


Dez razões (possíveis) para a tristeza do Pensamento
por George Steiner

1.
"Tanto quanto estamos disso conscientes, tanto quanto nos é permitido «pensar o pensamento» — regressarei a esta estranha expressão —, o pensamento é ilimitado. Podemos pensar sobre tudo e qualquer coisa. Aquilo que fica fora ou para além do pensamento é rigorosamente impensável. Esta possibilidade, que é em si uma demarcação mental, situa‑se fora da existência humana. Seja como for, não há dela qualquer prova. Perdura como uma categoria oculta de conjetura religiosa e mística.Mas poderá também figu- rar nas especulações científicas, cosmológicas, na concessão de que uma «teoria de tudo» reside fora e para além da compreensão humana. Assim, podemos pensar/dizer: «Este problema, este tópico, ultrapassa as nossas possibilidades cerebrais, seja no momento presente ou para sempre.» Mas dentro destes limites mal definidos, sempre fluídos e talvez contingentes, o pensamento não tem fim, não tem qualquer ponto — orgânico ou formalmente prescritivo — onde se deter. Pode supor, imaginar, reunir, brincar com qualquer coisa (não há nada mais sério e, em certos aspetos, enigmático do que brincar), sem saber se há, ou se poderia haver, alguma outra coisa. O pensamento pode conceber uma tiplicidade de universos com leis científicas e parâmetros inteiramente diferentes dos nossos. A ficção científica gera tais «alternativas». Um bem conhecido enigma lógico postula que o nosso universo não tem mais do que um nanos‑ segundo de existência e que a soma das nossas memórias é embutida no córtex no momento do nosso nascimento. O pensamento pode teorizar que o tempo tem um princípio ou que não o tem (decretar que não faz sentido questionar sobre o momento anterior ao Big Bang tem algo de sofisma despótico). Ele pode produzir modelos de espaço‑tempo delimitados ou infinitos, em expansão ou em contração. A classe dos contrafactuais — dos quais as frases com «se», opcionais e conjuntivas, são a codificação gramatical — é incomensurável. Podemos negar, transmutar, «desdizer» o que é mais óbvio, o mais solidamente estabelecido. A dou‑ trina escolástica, segundo a qual o único limite concebível à omnipotência divina é a incapacidade de Deus para alterar o passado, não é convincente. Podemos facilmente pensar e dizer uma tal alteração. A memória humana executa este truque diariamente. As experiências do pensamento, das quais a poesia e as hipóteses científicas são eminentemente representativas, não conhecem quaisquer limites. Aquela simples expressão monossilábica inglesa «let»(1), que precede as conjeturas e as demonstrações na matemática pura e na lógica formal, representa a licença arbitrária e a ausência de limites do pensamento, do pensamento manipulando os símbolos, do mesmo modo que a linguagem manipula as palavras e a sintaxe. O pensamento humano reflete sobre a nossa própria existência. Suspeitamos, embora sem estarmos disso absolutamente certos, que os animais não o podem fazer, mesmo os primatas que partilham algo como noventa por cento do nosso genoma. Nós podemos modelar e inventar expressões matemáticas para a «morte térmica» do nosso universo em virtude da termodinâmica da entropia. Ou podemos, em oposição, avançar argumentos para a vida eterna, para a ressurreição — um pensamento aterrador — ou mecanismos cíclicos de «eterno retorno» (como em Nietzsche). O axioma da finalidade do zero psíquico depois da morte do corpo foi rejeitado por inúmeros homens e mulheres comuns, mas também pelos criadores das religiões, por metafísicos como Platão, e ainda por determinados psicólogos, como Jung. O pensamento pode percorrer livremente a escala inteira de possibilidades. Ele pode, até antes de Pitágoras, apostar nas transmigrações da alma humana. Seja como for, não há, e não poderá haver, qualquer prova verificável. A infinitude do pensamento é um marcador crucial, talvez o marcador crucial da eminência humana, da dignitas dos homens e das mulheres, como Pascal memoravelmente o declarou («caniço pensante»). Ela assinala o que é inequivocamente humano no homem animal. Permite às gramáticas do nosso discurso articularem rememoração e futuridade, embora apenas raramente nos detenhamos para tentar compreender a fragilidade lógica do tempo futuro. O pensamento possibilita o domínio do homem sobre a natureza e, dentro de certas limitações, tais como a enfermidade e o sofrimento mental, sobre o seu próprio ser. Ele apoia a liberdade radical do suicídio, de 
interromper voluntariamente, e no momento escolhido, o pensamento. Por isso, porquê esta tristeza inescapável?"
George Steiner, in Dez razões (possíveis) para a tristeza do Pensamento, Relógio d'Água Editores, Abril de 2025, pp.15-17
(1)- Em português, o equivalente não é monossilábico: «suponhamos que». (N. T.)

Sobre o Livro: 
«Schelling, entre outros, atribui à existência humana uma tristeza fundamental, inescapável. Mais particularmente, esta tristeza oferece o fundamento sombrio sobre o qual assentam a consciência e a cognição. Este fundamento sombrio deve, na verdade, ser a base de toda a percepção, de todo o processo mental. O pensamento é rigorosamente inseparável de uma “melancolia profunda e indestrutível”. A cosmologia atual oferece uma analogia à crença de Schelling. Aquela do “ruído de fundo”, dos comprimentos de onda cósmica, esquivos mas inescapáveis, que são os vestígios do Big Bang, do surgimento do ser.»
«As ideias de Steiner revelam imparcialidade, seriedade, erudição sem pedantismo e um charme sóbrio.» [The New Yorker]
«George Steiner é talvez o último humanista. O seu pensamento, não isento de paradoxos e indefinições, revela uma enorme ternura, não apenas pela nossa espécie como um todo, mas pela pessoa. Pelo milagre irrepetível de cada ser humano.» [El Cultural]
Sobre o Autor:
George Steiner é considerado um herdeiro de Sócrates no século xx.
Nasceu em Paris, em 1929, partindo com a família para Nova Iorque no início dos anos 40 para escapar ao nazismo. Obteve a sua licenciatura em Letras na Universidade de Chicago em 1948. Em 1950, concluiu o mestrado na Universidade de Harvard, onde recebeu o Bell Prize in American Literature. De 1950 a 1952, foi bolseiro da Fundação Cecil Rhodes na Universidade de Oxford, onde se doutorou. Juntou-se à redação do The Economist, em Londres, sendo depois membro do Institute for Advanced Study, em Princeton. Em 1959, recebeu o prémio O. Henry Short Story. Foi professor de Inglês e Literatura Comparada na Universidade de Genebra de 1974 a 1994 e membro da Churchill College em Cambridge a partir de 1969.
Foi também professor de Literatura Comparada na Universidade de Oxford e professor de Poesia em Harvard. Colaborou na The New Yorker, no The Times Literary Supplement e no The Guardian.
Faleceu em Cambridge, em 2020."

Autor : George Steiner
Título: Dez razões (possíveis) para a tristeza do Pensamento
Categoria: Ensaios
Tradução: Ana Matoso
Nº de páginas: 80
Editora: Relógio D'Água
Preço: 14,40€

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Viajar pela Indonésia

Uma pessoa  só consegue viajar se se deixar ir e aceitar o que todos os locais trazem sem tentar transformá-lo num saudável modelo privativo seu,   e suponho que é essa a diferença entre  viagem e turismo.
Freya Stark, Riding to the Tigris 

  

Indonesia in 4K - Incredible Scenes & Hidden Gems ( Paisagens incríveis e joias escondidas)  4k Films  por Adnan

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Interlúdio Musical


Para fazer uma obra de arte não basta ter talento, não basta ter força, é preciso também viver um grande amor.

Não consigo escrever poesia: não sou poeta. Não consigo dispor as palavras com tal arte que elas reflitam as sombras e a luz, não sou pintor... Mas consigo fazer tudo isso com a música..
Wolfgang Amadeus Mozart
Lang Lang, em  Mozart Piano Concerto No.21 K467 , acompanhado pela  Bavarian Symphony Orchestra, regida pelo Maestro M. Jansons.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Eu ergo a voz

Orfeu Rebelde

Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que ha gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.

Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.

Letreiro

Porque não sei mentir,
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim - meu principal motivo
de insatisfação -,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não me sei conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.

Miguel Torga, in Orfeu Rebelde, 1958,
 Coimbra , Coimbra Editora Lda..

domingo, 18 de maio de 2025

Ao Domingo Há Música


Hum Hum Hum Hum
Sou que nem água 
Solta no chão
Danço nas asas
De um furacão 
Esta é a minha casa 
Eu sigo o destino
Eu sou a estrada 
 Eu sou, Eu sou, Eu sou 

Nem sempre as canções  se impõem  pelas palavras rebuscadas que possam ter. Insinuam-se , por vezes , apenas por uma pequena palavra que legenda um som e nos impulsiona para lá do momento. É o que pretendem as canções que seleccionámos , cantadas em português.

Gisela João, em Que Amor Não Me Engana , do Álbum Inquieta. Canção de José Afonso.
   
 Buba Espinho e Bandidos do Cante, em É Tão Grande o Alentejo.
   
 Calema e Sara Correia, em Respirar.
 
Sílvia Pérez Cruz e Salvador Sobral, em Hoje já não é tarde. Música e letra de Luísa Sobral.
 

sábado, 17 de maio de 2025

A indiferença num povo livre

A indiferença num povo livre
por Antero de Quental
"Um dos piores sintomas de desorganização social, que num povo livre se pode manifestar, é a indiferença da parte dos governados para o que diz respeito aos homens e às cousas do governo, porque, num povo livre, esses homens e essas cousas são os símbolos da actividade, das energias, da vida social, são os depositários da vontade e da soberania nacional.
Que um povo de escravos folgue indiferente ou durma o sono solto enquanto em cima se forjam as algemas servis, enquanto sobre o seu mesmo peito, como em bigorna insensível se bate a espada que lho há-de trespassar, é triste, mas compreende-se porque esse sono é o da abjecção e da ignomínia.
Mas quando é livre esse povo, quando a paz lhe é ainda convalescença para as feridas ganhadas em defesa dessa liberdade, quando começa a ter consciência de si e da sua soberania... que então, como tomado de vertigem, desvie os olhos do norte que tanto lhe custara a avistar e deixe correr indiferente a sabor do vento e da onda o navio que tanto risco lhe dera a lançar do porto; para esse povo é como de morte este sintoma, porque é o olvido da ideia que há pouco ainda lhe custara tanto suor tinto com tanto sangue, porque é renegar da bandeira da sua fé, porque é uma nação apóstata da religião das nações - a liberdade!"
1862 
Antero de Quental, in Prosas da Época de Coimbra, Livraria Sá da Costa Editora, Abril de 1982

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Vem comigo

O poema vai na direção do outro. Ele espera juntar-se entregue e desocupado. A obra solitária do poeta escarificando a matéria preciosa das palavras é o acto de expulsar um face a face. O poema torna-se diálogo – ele é frequentemente diálogo perdido,… reencontra, caminhos de uma voz para um tu vigilante.
                              Emmanuel Levinas

Eternidade

Vens a mim
pequeno como um deus,
frágil como a terra,
morto como o amor,
falso como a luz,
e eu recebo-te
para a invenção da minha grandeza,
para rodeio da minha esperança
e pálpebras de astros nus.

Nasceste agora mesmo. Vem comigo.
Jorge de Sena, in Perseguição, Tipografia Atlântida, de Coimbra, 1942

Sem data

Esta voz com que gritei às vezes
não me consola de só ter gritado às vezes.
Está dentro de mim como um remorso, ouço-a
chiar sempre que lembro a paz de segurança estulta
sob mais uma pedra tumular sem data verdadeira.
Quando acabava uma soma de silêncios,
gritava o resultado, não gritava um grito.
Esta voz, enquanto um ar de torre à beira-mar
circula entre as folhas paradas,
conduz a agonia física de recordar a ingenuidade.
Apetece-me explicar, agora, as asas dos anjos.

27/1/42

Jorge de Sena, in Perseguição, Tipografia Atlântida, de Coimbra, 1942

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Guerras


1ª Guerra Mundial ,(1914-1918)

1ª Guerra Mundial ,(1914-1918)
GUERRAS, GUERRAS, GUERRAS
por Eugénio Lisboa
 
Either man will abolish war,
or war will abolish man.
       Bertrand Russell
 
"A primeira guerra mundial (1914 – 1918) foi uma medonha carnificina, com a qual todos perderam, vinte milhões morreram, entre militares e civis, imensos ficaram mutilados, física e mentalmente, e alguns de boa vontade acharam que este açougue iria servir de vacina contra futuros holocaustos, porventura mais mortíferos. Outros, até, que tinham experimentado o odor fétido da podridão dos cadáveres, nesses esgotos, que eram as trincheiras, infectadas por ratos e piolhos (Barbusse, Vercel, Dorgelès, Remarque, Duhamel, este, como médico), escreveram assinaláveis e inesquecíveis livros, com o objectivo de imprimirem, com vigor, nos imaginários atormentados dos sobreviventes, a recordação do horror que convinha, para todo o sempre, evitar. Jean Giono, grande romancista francês, enorme prosador e destemido ser humano incapaz de matar, andou, contra toda a probabilidade, quatro anos daquela guerra, persistentemente vivo e de espingarda ao ombro, recusando-se a disparar um tiro fosse contra quem fosse. Da sua companhia, sobreviveu ele e o capitão da mesma. Dos seus admiráveis Écrits Pacifistes, extraio esta curta e impressiva passagem: “Eu não consigo esquecer a guerra. Gostaria de a esquecer. Passo, por vezes, dois dias ou três sem pensar nisso e, bruscamente, revejo-a, sinto-a, oiço-a, sofro-a mais uma vez. E tenho medo. Esta noite é o fim  de um belo dia de Julho. A planície, lá em baixo, tornou-se completamente arruivada. Vamos cortar o trigo. O ar, o céu, a terra estão imóveis e calmos. Passaram-se vinte anos. E, vinte anos depois, apesar da vida, das dores e dos momentos de felicidade, não me sinto lavado da guerra. O horror desses quatro anos está sempre comigo. Trago comigo a marca deles. Todos os sobreviventes carregam essa marca.” A marca foi de tal fundura, que Giono jurou nunca mais participar em guerra nenhuma e cumpriu-o. E pagaria a factura pesada por ter recusado fazê-lo, por ocasião da segunda guerra mundial, não tendo esquecido os horrores da primeira: REFUS D’OBÉISSANCE!
Roger Martin du Gard que acabara de ter um respeitável mas modesto triunfo com a publicação do seu romance JEAN BAROIS, no ano anterior, e viria a celebrizar-se com a sua admirável saga familiar, LES THIBAULT, fez a guerra no serviço de ambulâncias, isto é, recolhendo os feridos, estropiados e moribundos, sinistro corolário do pior que a aventura humana tem a oferecer: a guerra, como pífia e mortífera forma de solucionar conflitos de interesses. O contacto quotidiano com essa paisagem de um absurdo goyesco e sangrento, fá-lo-ia, como a Giono, considerar que a guerra era o mal absoluto, não a aceitando, em situação nenhuma, como solução de desentendimentos. E manteve esta resolução, mesmo durante os primeiros tempos da guerra contra Hitler. E só, quando informações fidedignas lhe chegaram ao conhecimento, sobre o que o nazismo significava, decidiu que este talvez viesse a provar ser um mal ainda superior à guerra.
Duhamel, médico e escritor e amigo de Martin du Gard, de asa também ferida, ao contacto com os mutilados e moribundos do conflito, escreveria páginas alucinantes sobre aquele horrível sorvedouro de sangue. A Europa terá, ali, perdido milhares de promissores talentos, pondo fim à sua supremacia no mundo. E terá perdido, até, alguns homens de génio, ainda em embrião. É que a guerra tem só uma virtude: é democrática, mata, por igual, imbecis e homens de valor. A guerra não é EXCLUSIVA, pelo contrário, é assombrosamente INCLUSIVA.
Seja como for, um punhado de homens, um pouco por toda a parte, tentaram dar ardente testemunho de todos aqueles horrores, para tentar que aquela guerra fosse a última das guerras. Porém, vinte anos depois, a humanidade estava envolvida noutra ainda mais mortífera. Será que o inferno não ensina a evitá-lo? Vivemos actualmente, com um sinistro magarefe aqui à porta, que a pretexto de históricos sonhos imperialistas e saudoso do tempo de um império assassino e cheio de boa consciência, encetou uma violação do direito internacional, invadindo um vizinho que o incomodava e dava jeito incorporar no seu seio ansioso por maior volume. Há quem, no Ocidente, use de uma filologia enviesada e assaz masoquista, para justificar todas as agressões, violações e genocídios de um agressor que é alegadamente “pessoa de bem”. Talvez valesse a pena reeditar e mantê-las no mercado, bem à vista, as obras de autores que souberam dar veemente notícia dos horrores da guerra.”
Eugénio Lisboa, 08.10.2023

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Um poema e um abraço


Dai-me um nome

Dai-me um nome, um só nome
para tudo quanto voa:
cardo pedra romã.

Um só nome, para o desejo
ser na manhã corola
de cal, cotovia,

chama subindo
baixando até ser incêndio
de amor rente ao chão.

Um só nome para que tudo,
rosa excremento mar,
possa entrar numa canção.
Eugénio de Andrade, in Os Lugares do Mundo, Assírio &  Alvim Editores, Junho de 2013, p.13
Dá-me um abraço - Miguel Gameiro
Dá-me um abraço

Dá-me um abraço que seja forte
E me conforte a cada canto
Não digas nada, que nada é tanto
E eu não me importo

Dá-me um abraço, fica por perto
Neste aperto, tão pouco espaço
Não quero mais nada, só o silêncio
Do teu abraço

Já me perdi sem rumo certo
Já me venci pelo cansaço
E estando longe
Estive tão perto
Do teu abraço

Dá-me um abraço, que me desperte
E me aperte, sem me apertar
Que eu já estou perto, abre os teus braços
Quando eu chegar

É nesse abraço que eu descanso
Esse espaço que me sossega
E quando possas dá-me outro abraço
Só um não chega

Já me perdi sem rumo certo
Já me venci pelo cansaço
Estando longe
Estive tão perto
Do teu abraço

Já me perdi sem rumo certo
Já me venci pelo cansaço
E estando longe
Estive tão perto
Do teu abraço

Já me perdi sem rumo certo
Já me venci pelo cansaço
E estando longe
Estive tão perto
Do teu abraço

Estando longe
Estive tão perto
Do teu abraço
Miguel Gameiro

terça-feira, 13 de maio de 2025

Ave Maria

Nossa Senhora de Fátima
Neste dia , 13 de Maio, é festejado, em Portugal , o dia de Nossa Senhora de Fátima.  Acorrem a essa localidade milhares de católicos  , enchendo uma praça em fervorosa manifestação de fé .
Existem uma  variedade de composições dedicadas a Maria , ou seja , uma série de Ave Maria  , publicada, ao longo dos anos, pelos  mais recentes  compositores de música ligeira e popular aos mais célebres compositores de música clássica. 
Eis algumas  dessas belíssimas "Ave Maria", interpretadas por grandes vozes. 
 
Amália Rodrigues, em Ave Maria fadista, com Letra de  Gabriel de Oliveira e Música de Francisco Viana ( Vianinha ).
 
Maria Bethânia, em Ave Maria no Morro (Jayme Redondo e Vicente Paiva).
 
1 - Elina Garanca em Ave Maria, de Pietro Mascagni. Esta peça, originalmente conhecida como Intermezzo Sinfonico, faz parte da Cavalleria Rusticana de Pietro Mascagni.
Cavalleria rusticana é uma ópera num acto único de Pietro Mascagni, estreada em 17 de Maio de 1890 no Teatro Costanzi, em Roma. 
2 - Elina Garanca, em Ave Maria, de William Gomez.
Esta Ave Maria foi concebida pelo compositor e virtuoso de guitarra clássica William Gomez, nascido em Gibraltar em 1939. A composição, comumente chamada de Ave Maria de Gomez foi posteriormente arranjada para orquestra por um conterrâneo , o maestro Karel Chicon, e foi cantada pela mezzo-soprano Elina Garanca, esposa do maestro, em vários concertos sinfónicos. Desde a sua apresentação com orquestra e solista, a música alcançaram  admiradores por todo o mundo.
   
Andrea Bocelli, em Ave Maria, de Gullio Caccini, acompanhado pelos coros e Orquestra da Academia Nacional de Santa Cecília, sob a direcção do Maestro Myung-Whun Chung. 
Ária extraída do Álbum Sacred Arias. Na realidade, não foi Gullio Caccini (1551-1618) quem a compôs, mas Vladimir Vavilov (1925-1973) quem editou e registou a sua composição como obra anónima em 1970 e a publicou por si próprio. Gravou-a na editora Melodia em 1972. Foi popularizada por Andrea Bocelli e especialmente pela soprano letã Inessa Galante, que a gravou em 1995.
 
Aida Garifullina, em Ave Maria , de Franz Peter Schubert , compositor austríaco, 1797- 1828 .
   
A beleza da actriz  Olivia Hussey, em Ave Maria , de Michat Lorenc (compositor polaco, nascido em 1955), na minissérie (Inglesa e italiana) Jesus of Nazareth (1977).
  
Luciano Pavarotti , em  Ave Maria {Bach / Gounod}.
Ave Maria é uma oração celebrada nas culturas de origem latina. O compositor romântico francês Charles Gounod sobrepôs a sua melodia a uma versão ligeiramente modificada do Prelúdio nº 1 em Dó Maior, do compositor alemão Johann Sebastian Bach. Esta peça foi publicada em 1853 com o nome "Méditation sur le Premier Prélude de Piano de S. Bach". A composição original de Bach data de 1722.
 

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Pensamento do dia

Patriotismo e Governo
[ 1900]
III
por  Lev Tostoi
 " As classes governantes têm nas suas mãos  as tropas, o dinheiro, a escola, a religião, a imprensa. Nas escolas  atiçam nas crianças o patriotismo, com histórias que descrevem o seu povo como o melhor de todos os povos e sempre justo; atiçam nos adultos esse mesmo sentimento por meio de espectáculos, solenidades , monumentos , de uma imprensa patriótica mentirosa; acima de tudo , atiçam o patriotismo praticando toda a espécie  de injustiças e brutalidades contra outros povos, despertam neles a hostilidade contra o seu próprio povo e usam depois essa hostilidade para excitar a hostilidade no seu próprio povo."
Lev Tolstoi, in Os Últimos Escritos , Relógio D'Água Editores, Setembro 2018, p 74

domingo, 11 de maio de 2025

Ao Domingo Há Música

Maison

Où va-t-on ?

Quand on n’a plus de maison ?

Les fleurs sous le béton,

Maman,

Dis-le-moi,

Où va-t-on ? 


Est-ce qu’un jour on sait vraiment ?

Ou est-ce qu’on fait semblant, tout le temps ?

Où va le cœur quand il se perd ?

Dans les doutes et les hivers ?

Pourquoi les jours se ressemblent ?

Est-ce qu’on finit par voir ce qu’on assemble ?

Maman, dis-le-moi.


Au-delà,

De l’orage il y a

De l’amour, de l’amour, de l’amour,

Quand le ciel s’ouvre,

Tout redevient calme

Et tout va bien.


Où va-t-il ?

Le bonheur, ce fil fragile,

Quand il vacille et se brise ?

Maman, dis-le-moi,

Où va-t-il ?


Pourquoi le monde semble si grand,

Quand on devient un peu plus grand qu’avant ?

Que deviennent les rêves qui s’enfuient ?

Et les souvenirs qu’on oublie ?

Est-ce que j’aurai toujours des questions ?

Peut-être que j’en ferai des chansons.

Maman, dis-le-moi.


Au-delà,

De l’orage il y a

De l’amour, de l’amour, de l’amour,

Quand le ciel s’ouvre,

Tout redevient calme

Et tout va bien.

Lili Poe


Há dias e dias. Uns inspiradores, outros cinzentos e ainda outros que nada são . Cumprem-se porque o calendário o obriga. Mas,  se  o mundo e a vida têm de ser compostos de mudança, como  dizia o poeta,   há dias que nos arrebatam por um simples estímulo. E esse pode ser a música. E nela, uma voz , um som , um compasso ou tudo o que explode em harmonia e sonoridade. Assim é, quando as vozes  se expandem na sua beleza pura  , de uma musicalidade natural e mágica. Foi por elas que aqui venho para partilhar três grandes vozes  que me encantaram. 
Que vos encante também.

Emilio Piano ft. Lucie  , em Maison.
Music: Emilio Piano, Wojciech Urbański, Lili Poe, Józef RusinowskiLyrics: Lili Poe Strings: AUKSO Chamber Orchestra of the City of Tychy under the direction of Marek MośCello solo: Joanna Urbańska-MiksztaOrchestration: Krzysztof FalkowskiStrings recording & mix: Krzysztof Kurek Vocal recording engineer: Julien SabourinSound editing: Łukasz Palkiewicz, Dawid PłonkaMix/mastering: Marcin CisłoMusic producer: Wojciech Urbańsk

 Emma Kok,  aos 16 anos, em  Voilà, na  German ZDF TV Fundraiser 'Ein Herz Fur Kinder'.
   
Amira Willighagen , em  Your Love ( "Once Upon A Time In The West") Dec. 2nd 2017 Amira interpreta  Your Love, tema do filme "Era Uma Vez No Oeste", composto por Ennio Morricone. É acompanhada pela Metropole Orchestra e pelo Inspirational Community Gospel Choir. Este vídeo foi gravado pela emissora pública holandesa Omroep MAX para o  espetáculo anual MAX Proms. Gravado a 2 de Dezembro de 2017 em Utrecht (Holanda) e transmitido a 25 de Dezembro.