segunda-feira, 1 de abril de 2024

O Regresso


Regresso (1)
por Eugénio Lisboa
                                            Árvores e casas e avenidas
                                           Cenário lindo do meu tormento
                                           Quanto desvairo imaginado
                                           Quanto calor quanto frio
                                                 Alberto de Lacerda, Exílio                           

"Nesse dia 21 de Agosto do ano de 1955, entrei no avião da SAS, um pouco atordoado. Quisera deixar Lisboa, desligar-me daquele tumulto e de uma vida que, ali, se me não afigurava já apetecível. Recusara, quase no último momento, um bom emprego em Alverca e decidira voltar a Moçambique. Não conseguia sequer conceber como dar a meus pais, radicados, de havia muito e para sempre, naquela cidadezinha do Índico, a notícia de que não ia regressar. Embora algo de muito profundo me ligasse a Lisboa, a verdade é que Lourenço Marques “puxava” por mim. Apetecia-me “regressar” àquelas avenidas arborizadas, ao calor da família, deixar ali, na minha terra africana, uma pegada qualquer. Estivera lá, de novo, em 1952, durante alguns meses, e gostara de lá estar. Partia, pois, assim mesmo, para Lourenço Marques, sem qualquer oferta de emprego – havia de se ver depois.
Lisboa fora importante, Portugal fora importante, enriquecedor e doloroso, mas  queria sair de lá. Encetara uma boa relação de amizade com José Régio e deixava lá outros bons amigos e outras raízes. Aprendera a gostar de Lisboa e o Porto era-me caro. Em Portalegre, deixara laços fortes, para além do Régio. O Alentejo iria ficar, para sempre, dentro de mim. Mas as minhas raízes – as mais profundas – não estavam, por enquanto, em Portugal.
Quando me sentei no avião, contudo, não sentia em mim a euforia de uma viagem muito apetecida. Antes, uma espécie de atordoamento (e remorso?), por ir deixar algo a que estava, no fundo – e apesar de tudo – muito agarrado, malgrado o desejo de afastamento. Tudo parecia um pouco irreal, quase absurdo. Os últimos tempos em Lisboa, acumulando os estágios de engenharia com a redacção do aparelho crítico introdutório para a antologia que o Régio me encomendara, tinham sido de enorme tensão e densidade. Estava esgotado.
Mal o avião arrancara de Lisboa, veio uma hospedeira de bordo perguntar-me se queria uma bebida. Disse-lhe que sim e quis pagar-lhe com uma nota de vinte escudos. Olhou para ela com desprezo mal disfarçado e disse-me que deixasse ficar: a companhia teria muito gosto em me oferecer o refresco! Ora ali estava, em seu pleno esplendor, o “escudo forte”, de que tanto se orgulhava o Portugal de Salazar. Forte, sim, mas pouco cambiável... Isto deixou-me ainda mais soterrado. A uma mudança de vida profunda, que decidira fazer, acrescentava-se uma humilhação quase cómica, mas que deixava ferida. Em Nice, onde parámos, nem me apeteceu sair do avião. Fiquei no meu lugar, a lamber feridas. Nem ler me sabia bem. Nada me sabia bem. Segui viagem, meio sonâmbulo, até Johannesburg, e ali mudei de avião para Lourenço Marques, onde cheguei, por volta do meio dia. Lá estavam os meus pais à minha espera, mal acreditando no meu regresso...
No balcão da imigração, um Pide mal encarado pediu-me o passaporte, inspeccionou-o com atenção, informando-me, a seguir, de que ficaria com ele. Que fosse de aí a dois ou três dias busca-lo à sede de PIDE. Perguntei-lhe a razão por que me fazia isso. Respondeu-me que o chefe gostava sempre de “falar” com as pessoas que chegavam...  Respondi-lhe que, das outras pessoas que também tinham “chegado”, a nenhuma ele tinha retido o passaporte. Porquê eu? Disse-me, paciente, sem levantar a voz, que os outros tinham ali residência normal, ao passo que eu vinha de novo. Retorqui que Lourenço Marques era a minha terra natal, como podia ver pelo passaporte, e eu não era, portanto, nenhum forasteiro intrometido. Ficámos assim.
Saí, sem passaporte e com não pouco azedume. Mas logo o bafo bom e húmido da minha terra me deu as boas vindas. Senti a profunda comoção dos que se sentem acolhidos, de retorno à paróquia maternal. E lá seguimos, no carro do meu pai, para a casa da Rua Fernandes da Piedade: rua frondosamente arborizada, que descia, da 24 de Julho, até à Av. Miguel Bombarda, intrometendo-se esta entre aquela e a Baixa. Ali, a dois passos de nós, a Polícia, onde, naquela altura, se instalava também, misteriosa, de carão fechado, mas prodigiosamente iletrada e incompetente – vim depressa a percebê-lo – a PIDE.
À nossa espera, a tia Maria, a nossa segunda Mãe, toda corada, num sorriso que nunca mais acabava. Estava também o Ilídio, o meu irmão mais novo, discreto, de sorriso contrafeito, tossicando a sua timidez. Foi bom chegar a casa. Voltar a casa. Ali, parecia que, de repente, todo o perigo se afastara. Ali, estava protegido. Havia, à minha volta, forças benfazejas. Tinham-me reservado um quarto no primeiro andar, com janela para a copa das árvores. Estava outra vez em terra firme. Era a Lourenço Marques da minha infância e adolescência – os deuses, ali, não se atreveriam a fazer-me mal. Ali, eu conhecia bem o terreno e identificava-me com ele. Ia ser bom. Já estava a ser bom.
Meu pai anunciara-me que, para começar, devia haver uma vaga de professor, no ensino técnico, na Escola Industrial, que me serviria para ganhar alguma coisa, antes de me embrenhar nas engenharias propriamente ditas.
No dia aprazado, fui falar com o chefe da PIDE, para recuperar o meu passaporte: era um senhor corpulento, de rosto fechado e razoavelmente sinistro, de nome Roquete. O gabinete dele era uma divisão enorme, totalmente vazia, havendo apenas, mesmo no centro da sala, uma secretária minúscula e tosca, em cima da qual nada se via, a não ser um recorte mal rasgado de um jornal, amarfanhadamente metido numa moldura barata e pirosa. O recorte de jornal continha a fotografia da escritora francesa Christine Garnier a falar, derretida, com Salazar! Fiquei petrificado! Era então aquilo a famigerada PIDE, que tanto medo metia a tanta gente, só de se lhe pronunciar o nome... A julgar por aquela amostra pífia, a sofisticação e a competência não deviam ser de estarrecer. Sobraria em estupidez e brutalidade o que faltava em argúcia e competência técnica...
Depois de um longo silêncio, provavelmente para me deixar nervoso, o Roquete perguntou-me em voz muito baixa e melíflua:
“O que veio cá fazer?”
Respondi-lhe:
“Isso poderia perguntar-lhe eu a si. Eu nasci cá e tenho cá quase toda a minha família.”
Deixou passar a provocação e, após novo silêncio prolongado, deixou cair, sem nenhuma explicação:
“Hermínio Martins...”
Perplexo, perguntei:
“Hermínio Martins, o quê?”
Voltou à carga:
“Hermínio Martins...”
Exasperado, perguntei, em tom agastado:
“Hermínio Martins, o quê? Não percebo a sua pergunta...”
E ele, sempre com a mesma voz melíflua, quase dolorida, quase extinta:
“Conhece?”
Eu sabia muito bem quem era o Hermínio, de muito ouvir falar dele o meu velho professor Reis Costa, com quem abundantemente conversara, nas deambulações, com ele, pelas ruas de Lourenço Marques, quando ali fora, em 1952. O Hermínio tinha sido, dizia ele, um brilhante aluno do liceu (mais novo do que eu, por isso não o conhecera) e constava que se encontrava, agora, em Oxford. Respondi, portanto:
“Não, não tive o privilégio de o conhecer. E tenho pena, pois passa por ser um rapaz excepcionalmente inteligente.”
“Nunca o encontrou?”
“Nunca tive esse prazer. Gostaria muito...”
“Nunca viajou?”
“Fui uma vez a Paris.”
“Só a Paris? Não foi a Inglaterra?”
“Não. Quem me dera! Mas só fui a Paris.”
“Fazer o quê?”
 “Ver Paris.”
“Só?”
“Eas coisas que há em Paris. Museus, galerias, teatros, livros, monumentos, ruas...,”
Porque é que viaja?”
“Porque gosto de viajar.”
“Para quê?”
“Para ver coisas.”
“Nunca se encontrou com o Hermínio Martins?”
“Já lhe disse que nunca tive esse prazer. Mas gostaria muito...”
Ficou longamente a meditar e, por fim, esgotada aparentemente a matéria do interrogatório, entregou-me o passaporte e deu por terminada a entrevista.

Saí dali, completamente intrigado: era então aquilo a PIDE? Gerida por analfabetos boçais e broncos, como aquele temível Roquete, que não fazia a mais pequenina ideia de coisa nenhuma e nem sequer tinha argúcia suficiente para conduzir um interrogatório que levasse a algum lado? E com aquela moldura tosca e pirosamente lasciva a “enfeitar-lhe” a secretária? A Christine Garnier das Vacances avec Salazar! A Christine Garnier, que acabaria divorciada por causa dos amores serôdios que o ditador português entretivera com ela! Era então com aquilo que o chefão da PIDE achava por bem “decorar” o seu “gabinete de trabalho”! Ainda hoje, recordando-a, me parece inconcebível toda aquela sinistra piroseira! Até a produzir terror, o Salazarismo era pífio e pelintra! Que falta de panache! Que falta de tudo! Senti-me roubado e humilhado, por ter tido por inquisidor, um burgesso daquele calibre... Inquisição por inquisição, algo que se visse! Viesse o Torquemada, o Grande Inquisidor! Agora aquilo... (Nesse aspecto, não se progrediu muito, em Portugal, de então para cá. Quando escrevo isto – 2012/2013 – leio, por aí, histórias reinadias de espiões patuscos e sumptuosamente pagos que, com muito melhor tecnologia e bastante mais orçamento, não produzem resultados menos cómicos e patéticos, para não dizer infames, do que os dos Roquetes artesanais de 1955!).
Nos dias que precederam o começo das aulas, na Escola Industrial da 24 de Julho, a dois passos da casa dos meus pais, fui travando alguns conhecimentos: a minha tia Leonette, que trabalhava no Barclay’s Bank, na Baixa, apresentou-me, com muito empenho, a um colega que ela particularmente admirava: o António de Figueiredo, um autodidacta muito informado, que conseguia “colocar” pequenos artigos e notícias na revista americana Time. O Figueiredo era um homem de extraordinária boa disposição, com um sorriso extremamente aberto, de dentes muito ostensivos de latino-americano espertalhão e cúmplice, e uma disponibilidade para os outros, que o tornava muito cativante. Dominava bem o inglês, que falava fluentemente, mas com um sotaque acentuado e uma gramática, às vezes, um tanto “literal”. Foi ele quem me encorajou a ler, regularmente, a Time, apesar de o meu inglês não estar ainda muito capaz dos “maneirismos” estilísticos típicos da revista americana. Mas atirei-me de cabeça e fui-me ajeitando...
O mais singular, no Figueiredo – e era um traço bem pouco português – consistia na sua pouca ou nenhuma inclinação para a melancolia e para a autocomiseração. Tinha uma terrível doença, muito dolorosa e incurável, que lhe afectava toda a estrutura óssea. Já nessa altura, mostrava alguns indícios de corcova e viria a ter que passar longos períodos de internamento hospitalar. Mas nada lhe abatia o ânimo e o gosto de viver. Ria com gosto, lia com gosto e convivia com gosto. Vestia sempre de azul escuro, mas nem sempre andava de casaco. Pendurava-o nas costas da cadeira junto à secretária onde trabalhava, no Banco, dando, com isso, a sugestão de que “andava por ali”. Sorrateiramente, saía e ia dar dois dedos de conversa a amigos que encontrasse no Café Continental, a dois passos do Banco.
Lourenço Marques, elevada a capital, em 1898, e a cidade, em 1887, continuava a ser, quando ali regressei, a linda cidade que sempre fora, debruçada sobre a ampla baía da Lagoa, na qual desaguam seis rios, de nomes saborosamente sonoros: Matola, Tembe, Umbelúzi, Infulene e Maputo.

Lourenço Marques

Conhecida como a “Cidade Jardim”, a Lourenço Marques dos meus dias era assim recomendada aos turistas, pelos autarcas de serviço:

É muito moderna, com as suas avenidas compridas e largas e bem cobertas de alcatrão; e com os seus edifícios atraentes, numa grande variedade de estilos arquitectónicos, alguns destes muito atrevidos, nas suas linhas expostas, à beira das avenidas. As lojas estão muito actualizadas, os principais hotéis muito luxuosos e confortáveis, o nível de vida elevado [para os europeus, entenda-se!]. (...) Os milhares de árvores bem tratadas propiciam uma agradável frescura, à sua sombra, quando o calor começa a apertar e os raios de sol cintilam nas janelas, com os seus caixilhos decorativos, do mesmo passo que os vitrais das igrejas contrariam o monótono alongar das ruas. Finalmente, a maneira de viver continental, que é uma característica desta cidade, é um traço que não cessa de agradar e cativar o turista que a visita.

Ao turista, recomendavam-se os atractivos clássicos daquela cidade plantada à beira do Índico: o Miradouro de Lisboa, bom para se namorar e igualmente bom para se carpirem amores mal correspondidos, enquanto os olhos se enchiam da grandeza lenta e majestosa da Baía; o miradouro do Hotel Girassol (“se não te portas bem, não vais ao Girassol”, avisavam os pais aos meninos tendencialmente mal educados), do qual se via a Baixa, o Estuário Espírito Santo, piscinas convidativas e campos desportivos; o miradouro do Parque Silva Pereira, a que chamávamos, no meu tempo de estudante, o Cabo Submarino (por onde, quando algum professor faltava, nos escapulíamos, barreira abaixo, até à doca dos pescadores...) e o Alto da Malanga, já território da minha infância e adolescência, pobres em dinheiro, mas ricas de outros filtros mágicos!..."
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias - III - Lourenço Marques Revisited (1955-1976) Editora Opera Omnia, Outubro de 2013, pp.15-22

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