quarta-feira, 17 de abril de 2024

A Casa das Tias

A Casa das Tias, desenho a tinta-da-china, de Dana Michaelles

A Casa das Tias

Olho, feita pela Dana
a casa do Alto-Mahé: 
dela , por certo, dimana
memória do que era e é.

Ponho-me a olhar a casa 
que chamávamos " das tias"
e dá-me um golpe d'asa
que me leva aos velhos dias! 

Recordar é adiar a morte
quando olho esta casa,
o passado volta forte
e o frio faz brasa!
                Londres, Dezembro,1994
Eugénio Lisboa

"No Alto-Mahé, no extremo (pouco chic) da Avenida Pinheiro Chagas, ficava a “casa das tias”, as irmãs do meu pai, tuteladas, com mão pesada, pelo tio Tropa, marceneiro habilidoso, dotado de fortes bigodes à Staline e de espessas convicções comunizantes, embora eu nunca tenha averiguado se ele sabia bem o que era o comunismo...
Trabalhava muito e com arte e fazia, com isso, pouquíssimo dinheiro, talvez por escrúpulo em avaliar no seu devido valor a qualidade da sua arte.
A casa do Alto-Mahé, com rés-do-chão e primeiro andar, imortalizada, para nós, num desenho a tinta-da-china, da Dana Michaelles (pintora florentina encalhada em Lourenço Marques), era, a meus olhos de periférico, um palácio mítico, construído, de ponta a ponta, pelo tio Tropa, com contribuição financeira de meu pai e, creio, do meu tio Fernando, irmão de meu pai. Tinha uma imponente – e pesadíssima – porta de entrada, de madeira trabalhada, uma elaboradíssima escada interior, também de madeira, que unia o rés-do-chão ao primeiro andar e, neste, uma varanda com grades de ferro arrebicadamente lavrado. Ainda hoje lá está, maltratada, massacrada, vandalizada, canibalizada, conspurcada... – da última vez que por ali passei, numa das minhas visitas a Lourenço Marques, olhei-a de fugida, com o coração transido, como quem acaba de assistir a uma profanação. A casa das tias era o lugar de peregrinação, que eu e os meus irmãos visitávamos em certas ocasiões, como quem pisa solo sagrado – vivendo nós em residências modestas, do Largo João Albasini ou da Estrada do Zixaxa ou mesmo, mais tarde, da Rua Mendonça Barreto, todas elas sem frigorífico, sem electricidade (excepto a última), sem telefone e sem telefonia (para nós, em Moçambique, “rádio”), a casa das tias parecia ter tudo, incluindo uma telefonia quase do tamanho de um camião. Majestosa, sim, mas, ainda assim, insuficiente para se ouvir, nas ondas curtas, a BBC, em tempo de guerra... "
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias - I - Lourenço Marques ( 1930-1947), Editora Opera Omnia, Novembro de 2012. pp.19-20

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