terça-feira, 9 de abril de 2024

Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa ( 1930-2024)
Morreu Eugénio Lisboa. A nossa inextinguível e sempre celebrada gratidão pelo privilégio de o ter tido entre nós. É com muito pesar e emoção que recordamos este insígne escritor e amigo .
Eugénio Lisboa foi uma das  personalidades  maiores,   senão a mais erudita e sábia, do actual panorama literário e cultural português. Poesia, Crónica, Ensaio, Crítica Literária, Memórias, Diário,  Docência, Diplomacia Cultural e  Gestão  de Companhias Petrolíferas são algumas das áreas a que se dedicou  este homem singular. Engenheiro electrotécnico de formação, Eugénio Lisboa cultivou com argúcia e sabedoria as Humanidades. Não seria um mais brilhante homem da nossa Literatura, se tivesse optado por outra formação académica. Aliou ao sentido claro  e rigoroso da Ciência a beleza de uma subtil sensibilidade humanista  que guindam   a sua elegante escrita a um patamar de excelência. 
Eugénio Lisboa  nasceu a 25 de Maio de 1930, em Lourenço Marques, a capital da  memória, como afirma. Em 1947 , veio para Lisboa, frequentar o IST. Cumpriu o serviço militar em Mafra e Portalegre, onde conheceu José Régio. Licenciado , regressou a Moçambique para ser feliz e, aí,  residir  até 1976.
Em 1977, é colocado na Universidade de Estocolmo, como Professor e coordenador dos cursos de Literatura Portuguesa e responsável do ensino da Língua Portuguesa na Suécia. De 1978 a 1995, vive em Londres, como Conselheiro Cultural da Embaixada Portuguesa no Reino Unido. Em 1995, instala-se definitivamente em Portugal , onde passa a exercer o cargo de Presidente da Comissão Nacional da UNESCO até 1998. Entretanto , foi sendo um académico distinto, leccionando sucessivamente nas universidades de Lourenço Marques, Pretória, Estocolmo, Londres e finalmente Aveiro até 2002.
Recebeu um Doutoramento Honoris Causa  em Letras na Universidade de Nottingham, Inglaterra e outro  da Universidade de Aveiro, em Portugal. 
Tem publicadas várias dezenas de obras ,  quase uma centena, que receberam os mais diversos   Prémios Literários como Prémio da Cidade de Lisboa, Prémio Jacinto do Prado Coelho, Prémio da Literatura Biográfica da APE, Prémio Tributo de Consagração ( 2018).
Homenageado  e celebrado,  foi  distinguido pelo estado português com o grau de Oficial da Ordem do Infante D. Henrique (1980), da Ordem de Mérito (1993) e da Ordem de Sant'Iago da Espada (2019).
A este grande intelectual,   de que seremos sempre devedores de tantas páginas de grande e profunda riqueza literária, repomos, em jeito de homenagem,  a entrevista que concedeu a este blog ( Livres Pensantes) , no dia do  seu nonagésimo aniversário, 25  de  Maio de 2020.
Eugénio Lisboa

Entrevista

EUGÉNIO LISBOA , UM SINGULAR ESCRITOR UNIVERSAL

Livres Pensantes - Há dez  anos,   na época do  seu octogésimo   aniversário, cerca de 70 personalidades   prestaram-lhe  uma homenagem de que resultou o livro, “Eugénio Lisboa: vário, intrépido e fecundo – Uma Homenagem”.
Otília Martins, professora da Universidade de Aveiro, e Onésimo Teotónio de Almeida, professor da Brown University, foram os organizadores dessa obra. Na introdução, apresentam-no  como um “Leitor omnívoro e possuidor de vastíssima cultura, Eugénio lê furiosamente. Lê de tudo porque tudo se dispõe a aprender. E, se privilegia a literatura, é porque acreditou sempre nela como meio especialmente capaz de penetrar na realidade poliédrica do mundo, feita não apenas de números e ideias, mas também das emoções que a arte permite fundir num todo.”
Terá sido este traço importante da sua personalidade que fez de si um escritor?
Eugénio Lisboa - A leitura de grandes escritores, na adolescência – Stendhal, Tolstoi, Dostoiewsky, Turguenev, Thomas Mann, Anatole France, André Gide, Montaigne, Roger Martin du Gard, Oscar Wilde, Eugene O’Neill, José Régio, António Nobre, Camões, entre outros – foi-me, sem dúvida, um grande incentivo e uma espécie de motor de arranque. Quando estes inesquecíveis artistas nos atingem, se o desejo de escrever já então nos desassossega, sonhamos com o dia em que nos poderemos parecer com eles…  Quando li o cintilante teatro de Oscar Wilde – teria os meus quinze anos – imediatamente achei intolerável não poder ser tão brilhante como ele… E nunca esquecerei de que, ao ler a extraordinária novela – Tonio Kröger – , de Thomas Mann, pensei que aquela obra tinha sido escrita para mim, e que, de qualquer maneira, me tinha sido roubada.  A leitura de Le Rouge et le Noir, de Stendhal, numa magnífica tradução de José Marinho, despertou em mim um desejo incontrolável de escrever um romance com a escrita límpida, acerada e voltaireana do grande romancista francês. E o mais grave é que empreendi a escrita de um romance com o título revelador de História de Julião… Não me pergunte o que fiz dele. A diáspora deve ter-lhe dado o destino que merecia!
Mas não só os gigantes nos perturbam e influenciam. Não estaria a ser honesto, se ocultasse que, teria eu os meus treze anos, a leitura do Fel, de José Duro, me levou a querer emulá-lo, pondo-me a escrever sonetos horrivelmente fúnebres. Não tem, afinal, importância. Goethe, do alto da sua grandeza, confessava que tudo o influenciava, até os poetas de quinta categoria…
João Gaspar Simões confessou que o encontro com José Régio foi decisivo para a sua vida literária. Creio que aconteceu o mesmo com Eugénio Lisboa . A aproximação com José  Régio  tornou-se capital também para si?
Eu diria, antes, que foi capital, para mim, não o encontro com José Régio, pessoa, mas sim o encontro com a sua obra de poeta, ficcionista, dramaturgo e ensaísta. Quando, em 1954, conheci, pessoalmente, o escritor, em Portalegre, já conhecia praticamente toda a sua obra publicada até então e já sofrera o forte abalo provocado por esse grande artista. O encontro pessoal com ele foi importante, no entanto, por duas razões: primeiro porque o conhecimento do homem veio confirmar, de modo impressivo, o que a obra já me proporcionara. Valéry aconselhava a nunca confundir o homem que fez a obra com o homem que a obra faz supor. Às vezes têm-se grandes desilusões, quando se conhece o homem por detrás da obra. Benjamin Crémieux, por exemplo, dizia ironicamente, que era um grande privilégio não se ter conhecido Marcel Proust em pessoa… A segunda razão por que foi importante, para mim, privar pessoalmente com Régio, durante um ano, em Portalegre, foi que, ao grande escritor se ficou a dever ter-me eu iniciado na escrita ensaística. Foi um acto de grande generosidade e atrevimento da sua parte.

Escreveu muito apesar de tanta diáspora e de uma dedicação extrema a todas as funções laborais que desempenhou. Como conciliava essa dedicação à escrita com uma actividade profissional tão exigente?
Não me foi difícil conciliar a minha actividade profissional com a escrita, porque nenhuma delas me aborrecia. Ser técnico não era, para mim, menos estimulante do que ser escritor. No liceu fui um óptimo aluno de matemática e de físico-química e gostei sempre, igualmente, de literatura. Claro que, durante os cerca de 20 anos que trabalhei como gestor de petróleos, isto condicionava muito o tempo disponível para o exercício da literatura. A minha actividade literária, nesses vinte anos, em Lourenço Marques, foi portanto mais reduzida. Fiz o que pude. Só a partir de 1977 comecei a dedicar-me mais intensamente à escrita literária.

Escreve sempre à mão e  em cadernos iguais.  Não faz rasuras ou o que  escreve é já o texto final?
Qual o destino que pensa dar a todos esses cadernos? É organizado na gestão dos seus escritos por publicar?
Escrevo sempre à mão e só depois teclo para o computador. Faço correcções tanto no manuscrito como depois no texto já passado ao computador. Comecei já relativamente tarde a servir-me do computador. Nessa altura, estava já tão habituado a escrever à mão, que não colhia prazer em escrever directamente para o computador. Um crítico inglês, fazendo a recensão de um livro de ensaios da admirável Cynthia Ozick, observou que o livro era tão bom, que só podia ter sido escrito à mão… Eu sou muito dessa escola de pensamento!
Quanto ao destino dos meus manuscritos, receio ter de dizer que sou muito desleixado. Da Biblioteca Nacional, já há muito mos pediram, mas eu vou arrastando os pés. Confesso que me não preocupa muito o destino desses papéis.
2018, Eugénio Lisboa, com Jorge Martins e Ernesto Rodrigues,
 no lançamento do seu livro "Aperto Libro -Páginas de Diário I -1977-1990"
Acredita na grafologia? Que pode dizer a sua caligrafia de si?
Sim, acho que a grafologia tem fundamentos sérios. Quanto ao que a minha diz de mim, terá que perguntar aos grafólogos. Eu nunca o fiz.

Que é para si escrever? Um acto de realização pessoal? Uma pulsão incontrolável , um  indelével prazer ou o seu “canto profundo”?
Escrever é, para mim, usar a escrita, com um máximo de prazer, para explorar, interminavelmente, os meus próprios assombros. A tónica no prazer é fundamental. Quem escreve sem prazer não comunica prazer aos outros. Prazer e clareza. Não cultivo a opacidade como um valor. Dizia Wittgenstein que, quando se não consegue exprimir um pensamento com clareza, é porque esse pensamento ainda não está maduro para ser expresso. Dar isto de purga a muita gente…

Utiliza epígrafes em todos os seus textos. Ao lê-lo, sentimo-las sair numa apropriação clara , rica,  exemplar, na exacta medida. São o sinal de um espírito sagaz , culto, quase enciclopédico. Como nos explica essa circunstância?
A epígrafe é simplesmente uma chamada de atenção ao leitor. Está ali para lhe dizer: tem isto em mente, em tudo quanto vais ler a seguir. Quando se leu muito, ocorre-nos facilmente aquela frase que encapsula de modo perfeito o miolo do que vamos escrever.
Livro premiado, em 2000, com o Prémio Jacinto do
Prado Coelho (Associação Internacional dos Críticos Literários).
Tem  títulos das sua obras em Latim , outros retirados de livros de conhecidos  autores. António Osório considera  um  título “ a quinta essência, no sentido medieval , ou seja,  a concentração mais pura obtida  de um corpo. Não só os títulos  dos livros, também os dos poemas devem ser extracto, irradiação, âmago liberto.”
O que é, para si, o título de um livro? Concorda com esta definição? 
Um título é um anúncio: anuncia, de um modo não demasiado preciso, mas muito assertivo, a ideia geral da obra. Por exemplo: Adeus às Armas, Por Quem os Sinos Dobram, As Vinhas da Ira, Em busca do tempo perdido, Histórias de Mulheres, Os Maias, Só, A Comédia Humana.
Alguns títulos são particularmente felizes e expressivos. Régio dizia que quem encontra um título encontra um livro

“Acta est Fabula”, a sua obra memorialística,  está distribuída  por sete volumes. Como é que se preparou para a redacção desta grande obra?
Fui fazendo, ao longo de muitas semanas, uma lista o mais completa possível, de personagens, lugares, situações, acontecimentos da minha vida escolar e outra, leituras, filmes que vi, exposições, peças de teatro, etc. Só depois de estar convencido de que me não esquecera de nada de essencial é que me pus a redigir o texto das minhas memórias. Já depois de publicadas, verifiquei que omitira muita coisa, mas nada há agora a fazer.
Depois, organizei a obra em volumes: o primeiro, para os meus primeiros dezassete anos em Lourenço Marques; o segundo, para os meus anos de Lisboa e Portalegre; o terceiro, para os subsequentes vinte e um anos de Lourenço Marques, após o regresso de Lisboa, em 1955; o quarto, para os anos de peregrinação (Joanesburgo, Paris, Estocolmo e Londres) e o quinto, regresso a Lisboa.
1973, Eugénio Lisboa com a mulher, Maria Antonieta ,
em Port Roya
l
“Epílogo” é o último volume com que termina  as Memórias. Não o tinha previsto. Trata-se de um livro muito  doloroso. Um livro que comove e nos enche de lágrimas.  Por que razão decidiu escrevê-lo?
Em princípio, acabaria as minhas memórias com o quinto volume. Mas, entretanto, deu-se o falecimento de minha mulher, Maria Antonieta, que muito profundamente me abalou. Fora minha inesquecível companheira de vida durante 57 anos. Achei que omitir esse infausto acontecimento nas minhas memórias, não fazia sentido. Foi muito doloroso escrever esse Epílogo, mas senti que tinha de o fazer.

Não é religioso. Não é crente. É ateu ou agnóstico, conforme  afirma no terceiro volume das suas Memórias,  Acta Est Fabula. Aí também escreveu (cito): “ a religião é um tema legítimo , como a guerra ( que também não aprecio) , ou o ódio (que abomino), ou a inveja ( que acho odiosa), ou a luta de classes ( que preferia que não fosse necessária) , ou o racismo ( que detesto).”
O que pretendia transmitir com estas afirmações?
O que quis dizer teve que ver com isto. Muita gente que conheci, e até gente inteligente e culta, estranhava que eu, agnóstico admirasse tanto a obra de José Régio e lhe dedicasse tanto do meu tempo. Creio mesmo que muita da reserva que alguns críticos de esquerda lhe punham tinha que ver com esse carácter “religioso” da obra do grande escritor. Acontece que Régio nem era crente e muito menos católico. Mas que o fosse. A grande pintura, a grande música, a grande escultura, a grande literatura não têm grandes obras impregnadas de preocupações religiosas? Vamos desprezar aquele que considero o mais belo quadro do mundo – A Virgem Santa Ana e o Menino, de Leonardo da Vinci – só por que trata de personagens da tradição religiosa cristã? Se se não objecta à música religiosa de Mozart ou Beethoven, por que se há-de fazer boquinhas à poesia com preocupações da área da religião, de Régio? Acho que há nisto um enorme preconceito e os preconceitos tornam pouco inteligentes as pessoas inteligentes… Todas as vivências e conflitos humanos podem ser temas de obras de arte. Eu não preciso de ser católico para admirar a poesia de Claudel, nem preciso de aceitar a religião dos antigos gregos, para admirar Ésquilo ou Sófocles. Por favor não abram uma excepção só para o Régio…
1989, Eugénio Lisboa com David Mourão-Ferreira
Não faz da análise, do ensaio , da crítica literária um exercício à mercê das correntes ocasionais que atacam e enfermam  a abordagem textual. À   linguagem abstrusa  dos  seguidores dos múltiplos –ismos contrapõe a simplicidade , a clarividência de um espírito culto, inteligente e erudito. É o texto que lhe interessa. Há luminosidade e clareza na sua escrita.  Concorda com a afirmação de  que alterou o  modo como se fazia crítica literária, em Portugal?
Não concordo, porque antes de mim houve notáveis críticos e ensaístas que sempre visaram a clareza, a atenção ao texto, a ausência de preconceitos ideológicos e a despreocupação com “ismos” e escolas. António Sérgio, José Régio, Jacinto do Prado Coelho, David Mourão-Ferreira e José Palla e Carmo foram notabilíssimos críticos e ensaístas literários. Não gostaria de excluir Mário Sacramento, ensaísta de grande valor, que se não deixou dominar, sendo comunista, por qualquer preconceito ideológico.

Com desassombro, impoluto  mas intrépido nunca se reservou ao silêncio, quando presta ou lhe é exigida uma avaliação. A frontalidade , a  independência intelectual marcam-no. Utiliza aquele falar  franco característico de Stendhal. Como lida com a soberba intelectual e com a mediocridade encapotada que grassam no mundo académico e entre a gente das Letras?
Lido mal. A soberba e arrogância dos que julgam descobrir no último “ismo” a solução definitiva para todos os problemas presentes e futuros é geralmente sinal de falta de cultura e de inteligência. A mediocridade é sempre atrevida, mas a mediocridade ressentida é um perigo público. Infelizmente, a ignorância e a falta de respeito por tudo quanto é sério andam por aí à solta nas redes sociais e adjacentes. Mas há quem lhes dê guita. Há por aí proclamados génios, aplaudidos, premiados e traduzidos, que são um autêntico susto.

A voz de EL tem espessura e transmite confiança numa consistência fundamentada e sábia. Considera que foi um continuado espanto, que, desde muito jovem, o desafiou, que  fez de si o celebrado escritor e erudito homem de  cultura  de hoje?
Julgo que o espanto é o motor de arranque para todo o progresso do indivíduo. Quem não se espanta não descobre. Há aqueles para quem tudo é evidente. Ficam para sempre parados e não descobrem nada. E há aqueles, para quem tudo merece ser escarafunchado, para quem as evidências dos outros são para eles cheias de alçapões. Há grandes virtudes em se ficar especado, em não se compreender nada à primeira vista. Os “rápidos” nunca descobrirão uma teoria da relatividade.
2002, Eugénio Lisboa com George Steiner,na Fundação Luso-
-Americana, a ser cumprimentado por Vasco Graça Moura.
Não tenho a certeza se foi sobre David Mourão-Ferreira  de quem alguém  disse que ele tinha dedicado mais tempo às obras dos outros do que à sua própria obra. Apropria-se o mesmo a Eugénio Lisboa. Entregou o seu tempo aos  outros. Tem uma volumosa obra dedicada ao estudo dos mais variados  textos de muitos escritores nacionais e estrangeiros. É o mais notável crítico literário da actualidade.
Foi uma escolha deliberada?  Não sente que limitou a sua própria produção literária? 
Se calhar, sim, limitei. Se pudesse recomeçar, talvez me apetecesse seguir um percurso diferente. Mas como nunca andei muito com os olhos numa posteridade em que não acredito grande coisa, fui fazendo o que fui fazendo. Em todo o caso, até a falar dos outros, podemos ser criativos. Há mais criatividade num grande ensaio de George Steiner do que em noventa e nove por cento do que por aí se apresenta como “criação” literária. Seja como for, um dia estaremos todos mortos.

Será , por isso, que confessou ter ainda por realizar a escrita de um romance? Sei que já o iniciou, há algum tempo?  Pensa completá-lo?
Para ser franco, tenho as minhas dúvidas. Nesta altura do campeonato, falece-me a pedalada. Há muita narrativa nas minhas memórias e nos meus ensaios.

Como leitora , acredito que seria um dos melhores romances do século. Por  que  motivo optou por o não escrever ?
Será então o grande romance do século que nunca foi escrito…

Quem lê  as suas memórias fica preso à narração. É como se de um romance se tratasse.  Não sente ter essa vocação narrativa?
Sem dúvida que sinto. Ela está presente, como disse atrás, nos meus ensaios e nas minhas memórias. Quem primeiro, com muita argúcia, chamou a atenção para isso, ainda em Lourenço Marques, foi a minha amiga Maria de Lourdes Cortez.
1986, Eugénio Lisboa com Fernando Namora,
na sua casa de Londres.
Que é para si um bom romance ?
É um romance que leio e releio durante toda a minha vida, descobrindo nele, de cada vez que lhe pego de novo, coisas novas. Um romance que, uma vez mergulhado nele, me deixa cortado de toda a realidade exterior. Um romance que me deixa sonambulizado, para usar uma expressão de Ortega y Gasset. Por acaso, até não faz mal que o romance conte uma boa história e tenha personagens inesquecíveis que ensinem muito sobre a vida e sobre mim próprio. Um romance que, falando de coisas que eu julgo conhecer, mesmo assim me surpreende. Um romance que eu gostaria muito de ter escrito. Está-se mesmo a ver que não estou a falar do Ulisses, de Joyce…

Ao ler o romance “ Le rouge et le noir” , de Stendhal, enamorou-se de  Madame de Rênal  Que idade tinha? A que atribui esse enamoramento, se era apenas uma criança?
Tinha catorze anos quando li o romance de Stendhal. Apaixonei-me por ela, logo no princípio do romance, quando ela se dirige à portinhola da casa e, perante o jovem seminarista, Julien Sorel, pergunta, com doçura: “Que voulez-vous ici, mon enfant?”  Madame de Rênal é, ao mesmo tempo, beleza, candura, paixão e coragem. E sempre a vi como um misto improvável de mãe, irmã, amante e amiga. Só à hora da morte é que o pateta ambicioso do Julien Sorel se apercebe de que aquela linda mulher era ouro puro.

Era uma criança sonhadora, ávida de leitura e tímida.  Esses traços da sua personalidade tiveram alguma repercussão na sua vida? Pode precisar.
Tiveram, claro, uma repercussão muito grande. A timidez e o afinamento cultural têm imensas consequências. Vou indicar só uma: o meu horror ao poder e aos que gostam do poder. Seja que poder for: político, literário, etc.
1937, Eugénio Lisboa com o irmão Fernando, falecido em 1944,
em Lourenço Marques.
Quando o seu irmão morreu, era ainda criança. Nem sempre a compreensão do espaço de cada um foi entendida. Tem memória do que sentiu nessa época? O contacto com a morte  marcou-o?
Marcou-me profundamente. Tinha catorze anos e ver o meu irmão num caixão a ir para baixo da terra apavorou-me. Depois, naquela época, havia o luto, durante um ano. Não se ia ao cinema, nem a festas, nada. Quem me salvou foi o meu amigo José Tiago Oliveira, que não só me facultou a leitura de um ensaio do poeta Luciano, sobre o luto, como também a leitura dos trágicos gregos que, de algum modo, me “purgaram”. Além disso, com a sua frontalidade característica, disse aos meus pais que se deixassem dessas coisas e nos permitissem que continuássemos a ir ao cinema.  Eles acederam logo. Mas este encontro com a morte, tão perto de mim, deixou-me ver que afinal éramos mesmo mortais.

O seu ensaio “ Morrer de velho”   é uma obra de arte. Publicou-o em Novembro de 1963, no semanário  “ Voz de Moçambique”, sob o pseudónimo A. Vieira  de Sá. Que motivo o levou a esconder a sua identidade?
Nesse ensaio eu glosava, com alguma crueza, à boleia de um notabilíssimo romance de Montherlant, o problema da velhice e da morte. Ora eu tinha alguns amigos idosos, que eram pessoas cultas e que iriam provavelmente ler o jornal em que o meu texto era publicado. Para evitar embaraços de parte a parte, resolvi ocultar-me por detrás de um pseudónimo. O que até me custou, porque eu prezava particularmente esse texto e, em princípio, até gostaria de que as pessoas, em geral, soubessem que era eu o autor.
Eugénio Lisboa , em Paris, no Quai Voltaire-nº25,
residência de Henry de Montherlant, um dos seus "eleitos".
Celestino Marcilla é a personagem principal do romance ”Le Chaos et la Nuit” de Henry de Montherlant, um dos seus escritores de culto. Quando começa o romance , esta personagem tem 67 anos e está prometida à morte, sem que o saiba. Qual foi o fascínio que ele exerceu em si para o levar a escrever , aos 33 anos, este  fabuloso ensaio sobre a morte, “Morrer de velho”?
Embora não morresse velho, a morte de Reinaldo Ferreira abalou-me muito. E, depois, houve, por essa altura, a morte de alguns idosos à minha volta, incluindo um velho jardineiro negro, que trabalhava para a firma em que eu estava. Foi nesta altura que comprei, em Paris, o romance de Montherlant, Le Chaos et la Nuit, em que o autor se purga, com uma lucidez infernal, do pavor do envelhecimento e da morte. Tudo isto se conjugou para me dar um desejo irresistível de me purgar a mim mesmo…

O que o atrai nos escritores do século XX, como Gide, Camus, Montherlant, Proust, Hemingway, Régio, Wilde, Orwell e outros tantos de quem foi e é fervoroso leitor?
São todos eles escritores que souberam correr grandes riscos, na vida e na obra. Grandes perscrutadores da condição humana e cada um deles portador de um estilo pessoalíssimo que veio enriquecer o património universal.
Talvez o menos cuidadoso em matéria de estilo tenha sido Proust, porque, como ele próprio admitiu, não podia dar-se ao luxo de investir muito tempo a afeiçoar a prosa porque sabia que a morte se aproximava. Em todos eles houve uma grande integridade artística. A prosa de Orwell, limpa, clara como cristal e despojada de quaisquer enfeites, é simplesmente admirável e inesquecível. Mas são todos eles grandes senhores da arte de escrever.
1986, Helder Macedo, Eugénio de Andrade e
Luís Miguel Nava, na casa de Eugénio Lisboa , em Londres.
1982, José Blanco e Mécia de Sena, viúva de Jorge de Sena,
amigo de Eugénio Lisboa, na casa deste último , em Londres.
Em poesia, utiliza a métrica  e a forma  com extraordinária perfeição. Salta do soneto para a redondilha  de um só fôlego.
Por que razão preteriu a poesia em prol de uma provada prosa de excelência, embora tenha publicados dois livros de poesia que foram premiados?
Não preteri. Fui escrevendo um ou outro poema, mas, de facto, uma vez que se domina a oficina poética, não me apeteceu “explorar o sucesso”, como se diz em linguagem militar. Sabendo como funcionava a máquina, por dentro, não quis aproveitar-me. Não vi vantagem em publicar um livro por ano. No fundo, o que fica, mesmo dos melhores é, com muita sorte, meia dúzia de poemas que o ouvido não esquece.
1989, Eugénio Lisboa com Craveirinha no Café Continental,
em Lourenço Marques
Sei que neste tempo de peste, um tempo diferente e inesperado, tem produzido, quase diariamente, poemas em métrica e forma variadas. Será que deixou acordar , de novo, o poeta que há em si? Ou é o tempo , que reduz e limita,    o compulsa ao verso que tão bem constrói?
Talvez o confinamento tenha ajudado. E apeteceu-me de alguma forma ajudar a animar os espíritos vergados pela hipocondria. Foi uma espécie de desafio e de dever cívico: levantar o ânimo em tempo de peste. Durante uma peste avassaladora, em Londres, Shakespeare retirou-se para o campo e aproveitou o retiro para aperfeiçoar o texto das suas peças. E Pascal aconselhava-nos a fazermos um bom uso das doenças. Simplificando: deu-me para aí!

Como foi para si este tempo de peste? Tinha imaginado que esta hecatombe se abateria sobre  todo o mundo?  Se tivesse de a traduzir apenas numa frase como o faria?
Foi desmotivador, ao máximo. Não era este fim de festa que eu esperava ter no final da minha vida. Viver cercado por um inimigo invisível, insidioso e altamente mortífero, para o qual se não vê fim rápido, não é grande petisco. Vivemos num mundo extremamente perigoso e liderado, infelizmente, por asnos de grande gabarito.

A quem daria o título de maior estadista  desta nossa era? Que critério utilizou?
Muito provavelmente, Franklin Delano Roosevelt. Como um dia observou o escritor John Steinbeck, a seguir ao terrível desastre que foi o grande “crash” de 1929, só com a entrada em cena de Roosevelt, apareceu alguém que realmente começou a preocupar-se com os desafortunados da vida. Foi um homem de coração e de visão.

Se pudesse escolher a época e o século para viver, qual escolheria? Pode justifcar.
Escolheria o século XX, que foi aquele em que nasci. Por ser aquele em que o avanço da ciência nos deu uma vida de melhor combate à dor e à doença. E foi o século de uma nova grande arte: o cinema.
1982, Eugénio Lisboa com Manoel de Oliveira,
na sua casa de Londres
O fascínio pelos livros e  pelo cinema acompanham-no desde sempre.  Em Moçambique, fundou o Cineclube de Lourenço Marques. Pode falar-nos dessa relação com o cinema ao longo da sua vida?  Quem considera ser o mais brilhante realizador de sempre?
Muito cedo na vida, teria para aí cinco anos, comecei a ir a um cinema novo que se inaugurou no bairro limítrofe do Alto Mahé, em Lourenço Marques. O cinema chamava-se Cine Variedades e foi lá que vi, fascinado, os filmes de “cowboys”, com o Tom Mix, que foi um dos grandes ídolos do público de então.  Aí vi também, com fascínio não mitigado, os filmes de Tarzan, com o inesquecível  Johnny Weissmuller. Depois, no Scala, no Gil Vicente (menos) e no Varietá, enchi o papinho e fui afinando o gosto.  Vi filmes do Orson Welles, do Hitchcock, do John Ford, Robert Siodmak, e por aí fora. Incluindo o mítico Casablanca, que em Moçambique não foi censurado. O cinema cedo se me tornou um alimento essencial e uma arte maior, ao lado das outras Artes. Não fundei cineclube nenhum, mas ajudei a fundar dois e para eles trabalhei bastante, comentando filmes para os sócios e escrevendo artigos para a revista do cineclube de Lourenço Marques. Como estudante, em Lisboa, ia regularmente ao cinema e não me terá escapado nenhum filme de qualidade, fosse ele americano, inglês, francês, italiano ou alemão. E foi sempre assim pela vida fora. Actualmente, vou menos ao cinema, porque não gosto de ir sozinho. Mas sempre vou vendo ou revendo algum filme em casa.
Seria para mim muito difícil destacar um único realizador entre os vários que ponho no topo da escala. Até porque se correm riscos grandes. Ainda há pouco fiquei estarrecido quando soube que um júri qualquer seleccionou o filme de Hitchcock, Vertigo, como o melhor de sempre, destronando o célebre Citizen Kane, de Welles. Admiro Hitchcock, como um senhor que sabe muito de cinema e que mete medo às pessoas com muita eficácia, mas não consigo estar de acordo com o meu querido Truffaut, quando este vê nele magnos e transcendentes significados. Admiro diferentes realizadores por diferentes razões. Mas, de certo, uma curta e exigente lista dos melhores não deixaria de fora Eisenstein, Jean Renoir, Visconti, Kubrick, John Ford, Orson Welles, Kurosawa , Terence Malick,  Ingmar Bergman para não falar nesses dois génios do cómico mudo, Charlie Chaplin e Buster Keaton. Isto deixa de fora uma quantidade de outros que têm feito as minhas delícias, mas a minha “short-list” não deve andar muito longe de ser aquela que indiquei. Desses, escolher um – ser-me-ia impossível.

Qual é a obra que lhe deu mais prazer escrever?
O ensaio “Morrer de Velho”, o meu livro “José Régio – A Obra e o Homem”, alguma poesia e as minhas memórias.
2019, Eugénio Lisboa, na Folio, em Óbidos
O que pensa do panorama literário actual em Portugal?  E no mundo?
Parece-me bastante desorientadora, com a promoção desvairada de gente menoríssima a píncaros inimagináveis.
Perdeu-se completamente o sentido das proporções e andam a inventar-se escritores que me fazem perder o sono. Assim, não.

Considera que , na actualidade, a Cultura está mais enriquecida? Existem grandes homens da Cultura, nesta nossa era? Quer nomear algum?
Grandes homens da cultura nunca há muitos em qualquer época. Mas poderia citar, por exemplo, o Professor Aguiar e Silva, como um grande personagem da nossa cultura.
Estão já editados dois volumes da sua obra diarística “Aperto Libro”. Quando sairá o próximo volume? E  em  quantos volumes prevê a sua edição?
Tenho dois volumes já prontos para publicação e um terceiro em fase avançada. Se tudo estivesse normal, publicaria um volume ou dois este ano. Mas com a pandemia tudo se complicou. Ver-se-á.

Em “ Crónica dos Anos da Peste” tem um extraordinário ensaio sob o título “Artista é sempre plural” . Da  explicitação dessa tese, passo a citar  algumas frases :” todo o grande artista , todo o artista autêntico, seja qual for a espécie de humanidade que aparentemente subjaz à sua obra, é sempre muito mais  do que ele próprio; falando do que parece particular, ele não sabe visar senão o que é  universal ( nem há outro modo  de eficazmente se atingir o universal a não ser por via do particular- em arte).”
Poderia continuar a citá-lo. Não o faço porque todos aqueles que  tiveram o prazer de o ler sabem da universalidade da sua obra. Fez Arte. Na arte, o homem singular torna-se plural.
Assim é Eugénio Lisboa , um singular  escritor universal, a quem muito agradeço esta entrevista.

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