sábado, 20 de abril de 2024

Considerações ao correr da pena

Considerações ao correr da pena
 por Eugénio Lisboa
“Pior do que um poema mau é um poema demasiado longo, com pouca poesia dentro. Um bom exemplo disso é o infernal PARAÍSO PERDIDO, de Joihn Milton.
Pior do que um ensaio crítico mau é um ensaio crítico enviesado. O ensaio mau é só falta de pontaria; o enviesado é falta de pontaria propositada. O primeiro é só inevitável defeito; o segundo é pura malícia.
Um exemplo de ensaio crítico enviesado é o ensaio crítico ideologicamente inflectido. É ler, por exemplo, no admirável CORAÇÃO DAS TREVAS, de Joseph Conrad, os malefícios do colonialismo e não reparar naquela profunda sondagem ao coração das trevas da condição humana. O enviesado tem coisas que não quer ver, a favor de outras que quer ver, com enviesada exclusividade.
O obcecado com livros policiais vê apenas, no REI ÉDIPO, de Sófocles, uma intriga de “suspense”; o obcecado com psicanálise vê, nessa obra-prima, aquilo que serviu a Freud para baptizar um dos seus complexos; o obcecado com o pecado original vê, na imortal peça grega, um exemplo de como o pecado é sempre punido. Cada um tem as suas razões, mas não tem a razão toda que deveria ter.
Estreitar o foco da nossa atenção, para visar apenas uma pequena área de uma grande obra, é a maior ofensa que se pode fazer a um grande autor. Dizer que a CHARTREUSE DE PARME é a história de uma tia apaixonada pelo sobrinho é tão redutor como dizer que Shakespeare era um homem que ganhava a vida a fazer peças de teatro e a representá-las. Mas é isto mesmo que faz a crítica ideológica, seja qual for a ideologia. As ideologias podem ser diferentes, mas todas fazem o mesmo: reduzir o que é complexo.
Não se pode julgar o todo pela parte e não se pode vender a parte pelo todo.
Reduzir a complexidade de uma obra rica a uma pastilha ideológica é próprio de quem prefere chupar um caramelo, em vez de comer uma suculenta refeição. Cada um contenta-se, como pode, com o que tem.
O leitor que só olha numa direcção lê, na obra que lê, não o muito que lá está, mas o pouco que ele quer que lá esteja. E, em vez de escrever, ele mesmo, a obra com que sonha, pendura-se desastradamente na obra de outros, transformando-a no figo seco de sua autoria. O crítico enviesado é um vampiro e, como todos os vampiros, teme a luz do dia.”
Eugénio Lisboa, em Crónica publicada na rubrica Ipsissima Verba da Revista LER, 2023

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